Bem-vindos a uma jornada de aprofundamento no complexo universo da sexualidade humana, guiada pela lente da psicanálise. No encontro de hoje, mergulhamos em três forças psíquicas que, silenciosamente, moldam nossa experiência erótica e relacional: a vergonha, a culpa e o onipresente desejo de agradar.
Conforme a proposta deste curso, iniciaremos com uma provocação, uma sensibilização para o tema, para então navegar pelos conceitos-chave, apresentados de forma a incentivar a reflexão pessoal e o estudo aprofundado. A psicanálise não oferece respostas prontas, mas sim um espelho; ela reflete o que vê, permitindo-nos ressignificar sentimentos e desconstruir paradigmas sem escândalo ou choque, sempre sob uma ética de respeito à singularidade, cultura e valores de cada um.
1. O Palco da Intimidade: Vergonha e Culpa como Atores Principais
Toda reflexão sobre o desejo íntimo inevitavelmente esbarra em dois guardiões poderosos: a vergonha e a culpa. Para a psicanálise, é crucial distingui-los:
- A Vergonha: É um sentimento socialmente aprendido. Ela nasce do olhar do outro, real ou imaginado. É o medo da exposição, da inadequação, de ter nossa natureza ou desejo julgados como “errados” ou “impuros”. A vergonha nos diz: “Há algo de errado comigo“.
- A Culpa: É um produto de um conflito psíquico interno. Ela emerge quando transgredimos uma lei internalizada, uma moral que nós mesmos alimentamos. A culpa se manifesta como uma dívida, um tormento que nos diz: “Eu fiz algo errado“.
Quando essas duas forças atuam, o desejo autêntico é silenciado. Em seu lugar, surge uma estratégia de sobrevivência: o desejo de agradar. Para evitar a dor da vergonha ou o peso da culpa, muitos de nós nos submetemos às expectativas do outro. Apagamos nossa autenticidade erótica, abdicamos da iniciativa e passamos a viver em uma fronteira falsa, um limite que não nos pertence, mas que nos protege do julgamento.
A arte, muitas vezes, serve como o primeiro catalisador para essa reflexão. A obra “As Duas Amigas” (1894), de Toulouse-Lautrec, que retrata duas mulheres se acariciando em um bordel parisiense, é um exemplo perfeito. Lautrec não pinta uma cena de vulgaridade para o consumo masculino; ele captura um momento de ternura, desejo e intimidade entre mulheres, subvertendo o olhar voyeurístico e desafiando o tabu de sua época. O quadro nos convida a ver o desejo em sua forma mais delicada, despido do moralismo que gera vergonha.
2. Ressignificando o “Desvio”: O Fetichismo como Linguagem Simbólica
Historicamente, práticas que escapavam à norma reprodutiva eram rapidamente classificadas como “perversão” ou “desvio”. Hoje, a psicanálise nos convida a uma leitura mais sofisticada, especialmente no que tange ao fetichismo.
Outrora visto como uma doença, o fetiche é hoje compreendido como uma expressão simbólica do desejo. Em seus “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud apontou o fetiche como um substituto simbólico de uma perda primordial (o falo materno), um modo de o sujeito lidar com a angústia da castração.
A visão contemporânea expande essa ideia: o fetiche é uma narrativa, uma forma de o desejo ganhar voz, forma e cena de maneira natural e criativa. Práticas como a podolatria (fetiche por pés), o voyeurismo ou o uso de látex são peças de uma montagem singular. O corpo se torna uma superfície criativa, um “Lego libidinal” que atualiza fantasmas e fantasias da cena primitiva, não como um sintoma a ser arrancado, mas como uma linguagem a ser interpretada.
3. O Contrato Erótico: BDSM, Consentimento e a Ética do Desejo
Talvez nenhum campo ilustre melhor a superação do moralismo preconceituoso do que as práticas de BDSM (Bondage e Disciplina, Dominação e Submissão, Sadismo e Masoquismo). Longe de serem atos de violência real, elas representam um erotismo ético, baseado em regras, acordos e segurança emocional.
- O Teatro Simbólico: A chamada “violência encenada” no BDSM só é possível porque existe uma Lei simbólica que delimita o jogo. Como aponta Lacan, o poder ali não reside no objeto (o chicote, a algema), mas no significante — a palavra, o gesto, a regra que organiza as posições no discurso e garante a segurança.
- O Consentimento como Contrato: O uso de safe words (palavras de segurança), contratos e práticas de aftercare (cuidado após a cena) demonstra que o jogo é simbólico e não violento. A obra de Leopold von Sacher-Masoch, que deu origem ao termo “masoquismo”, já revelava que a submissão consciente não é anulação, mas um contrato simbólico de confiança e entrega mútua.
4. A Era Digital: Novos Palcos, Novos Sintomas e a Urgência da Simbolização
A tecnologia digital ampliou radicalmente o repertório do fetiche e do erotismo. O sexting, plataformas de câmera ao vivo, realidade virtual e avatares criam novas formas de excitação simbólica, permitindo que fantasias antes reprimidas sejam encenadas sem risco físico direto.
No entanto, essa nova era traz seus próprios desafios. A obra “Alone Together” de Sherry Turkle nos alerta para as complexidades da vida conectada. Na era dos stories e do sexting, o fetiche ganha métricas: número de visualizações, emojis recebidos, tempo de resposta. Emerge um “superego digital”, que exige exposição contínua e acelera as interações que antes tinham tempo para respirar e serem elaboradas. É uma área conturbada, que demanda uma nova alfabetização simbólica.
O filme “Crash: Estranhos Prazeres” (1996), de David Cronenberg, é uma produção cultural que captura magistralmente esse mal-estar. No filme, o acidente de carro é deslocado do campo do trauma para o da excitação erótica. O fetiche não é um desvio, mas uma solução criativa diante do vazio da vida moderna. A máquina, a velocidade, a cicatriz e o metal retorcido tornam-se zonas erógenas, um “BDSM sobre rodas”. O corpo se reorganiza pela fantasia, provando a tese freudiana de que qualquer superfície pode se tornar um palco para o desejo.
5. A Voz do Silêncio: A Visibilidade da Assexualidade
Para completar o panorama, é fundamental falar sobre a assexualidade. Este conceito revela que a ausência ou flutuação da libido também é uma variação humana, e não uma falha a ser reparada. Comunidades assexuais, ao elaborarem escalas como “grey-A” (assexualidade cinza) ou “demissexual”, permitem nuances na experiência afetiva que desafiam a pressão cultural por performance.
A visibilidade da assexualidade é um ato político. Ela desloca o eixo do erotismo compulsório e afirma que o direito de não fazer sexo é tão legítimo quanto a liberdade de fazê-lo. Produções como a série BoJack Horseman ou o livro Loveless de Alice Oseman ajudam a dar voz e representatividade a essa experiência, evitando a sua patologização.
Conclusão: Do Sintoma à Singularidade
O percurso que fizemos, da vergonha à afirmação simbólica, nos mostra que a sexualidade é um quebra-cabeça vasto e singular. O objetivo da psicanálise não é impor uma norma, mas instrumentalizar o indivíduo a reconhecer os “scripts” que organizam seu próprio desejo. Ao mergulhar em nossos sonhos, fantasias, práticas e até mesmo em nossas inibições, passamos a entender que o sintoma não é um erro, mas uma resposta singular à tensão entre o desejo e a lei.
Acompanhar a evolução das expressões da sexualidade é fundamental para não perdermos o pé de um território em constante transformação. É um convite para desconstruir medos, ressignificar culpas e, finalmente, permitir que nosso desejo autêntico, em toda a sua riqueza e diversidade, possa encontrar sua própria voz.