O Cenário, as Facetas e as Razões: Uma Cartografia Psicanalítica do Vício Contemporâneo

Na contínua jornada de sensibilização para a complexa temática dos vícios, a psicanálise nos convida a mapear o território antes de intervir. Não se trata de uma exploração apressada, mas de uma cartografia cuidadosa do terreno onde o sofrimento psíquico floresce. Para isso, nos debruçamos sobre três coordenadas essenciais: o Cenário em que vivemos, as múltiplas Tipologias em que o vício se manifesta, e as profundas Razões que nos convocam a um trabalho de escuta e humanização. Este exercício de mapeamento é o que nos permite abandonar os preconceitos e nos aproximar do fenômeno com a seriedade e a compaixão que ele exige.

1. O Cenário: A Compulsão na Era da Performance e da Tela Digital

O palco do século XXI é digital, e nele, os vícios ganharam novas e insidiosas formas. A compreensão desse cenário é o primeiro passo para uma abordagem relevante.

  • Os Vícios Digitais: A Nova Face da Dependência A compulsão contemporânea encontrou seu habitat ideal na arquitetura da internet. A busca incessante por likes e validação virtual transformou o afeto em métrica, gerando uma nova forma de dependência emocional onde o valor do eu é medido por engajamento. Fenômenos como a nomofobia — o medo irracional de ficar offline ou sem bateria — revelam o quão profundamente o nosso senso de segurança e conexão foi terceirizado para os dispositivos. A hiperestimulação dopaminérgica de jogos e redes sociais vicia o cérebro na gratificação imediata, esvaziando o desejo de sua dimensão de falta e espera, que é o que o torna humano. O consumo ilimitado de pornografia, por sua vez, distorce a imagem do self e do prazer, substituindo o vínculo humano real, com suas imperfeições e negociações, por uma fantasia de satisfação total e controlável, que paradoxalmente leva ao isolamento.
  • O Impacto Psíquico da Performance A cultura da performance digital, com sua obsessão por produtividade e por uma positividade artificial, gera um estado crônico de ansiedade e um inevitável esvaziamento subjetivo. Somos impelidos a performar felicidade no Instagram, sucesso no LinkedIn e engajamento no X (antigo Twitter). A vida, metrificada por indicadores de desempenho, torna-se exaustiva. Esse imperativo, que já era tóxico no mundo corporativo e escolar, agora se espalha por todas as esferas da existência, gerando burnout e baixa autoestima. Nesse contexto, os vícios em jogos online, por exemplo, oferecem um refúgio onde a performance é mais simples e a onipotência infantil pode ser reencenada, negando a elaboração das perdas e frustrações da vida real.
  • A Psicanálise como Resposta Ética e Humana Diante desse cenário ruidoso, a psicanálise se posiciona como um farol de resistência. Ela oferece um espaço para desconstruir o imperativo do eu ideal — o eu produtivo, feliz e sempre conectado — e promover uma aceitação do sujeito desejante, com suas falhas, faltas e contradições. A escuta psicanalítica é um convite para se reconectar consigo mesmo e com o outro para além do barulho incessante do mundo digital, resgatando a dignidade e a humanidade perdidas na performance.

2. As Tipologias: As Múltiplas Facetas do Grito por Sentido

O vício não é uma entidade monolítica. Ele se manifesta em múltiplas facetas, e cada uma delas é um “grito que busca sentido”, uma tentativa desesperada de lidar com angústias e faltas inconscientes. A psicanálise nos ajuda a decifrar essas diferentes expressões.

  • Vícios Químicos e o Gozo Mortífero: O álcool e as drogas ilícitas são talvez a face mais visível do vício. Do ponto de vista psicanalítico, eles frequentemente funcionam como um anestésico químico que mascara angústias primitivas e recalca traumas. A busca pelo “gozo” — um prazer que vai além do princípio do prazer, um excesso que flerta com a morte — é uma tentativa de apagar a dor psíquica. O sujeito que se entrega a esses vícios, muitas vezes visto como um “fanfarrão”, é, na verdade, um “coitado”, uma vítima de uma dor que não consegue elaborar de outra forma.
  • Compulsões Comportamentais e o Aprisionamento Narcísico: Compulsões como o vício em pornografia e a masturbação doentia revelam um aprisionamento narcísico. A busca por uma cena ideal e um gozo solitário substitui o encontro arriscado e imperfeito com o outro real. É uma forma de evitar o laço social e de se refugiar em uma gaiola onde o sujeito acredita poder controlar todas as variáveis do seu prazer, o que é, em si, uma ilusão. Outras compulsões, como o vício em jogos de azar, reencenam o risco do desejo, apostando a própria falta em busca de um gozo absoluto, enquanto as compras compulsivas (oniomania) e as cirurgias estéticas denunciam a tentativa de preencher um vazio interno com objetos ou com a modificação sacrificial do corpo.
  • Vícios Relacionais e a Repetição da Dor: As “relações tóxicas” são um poderoso exemplo de vício relacional. Elas expõem a compulsão à repetição de padrões de vínculo baseados na dor psíquica original. O sujeito, de forma inconsciente, busca parceiros que reencenem suas feridas narcísicas primordiais (abandono, rejeição, abuso), numa tentativa desesperada de, desta vez, “consertar” o passado. A codependência, nesse sentido, é a materialização dessa tentativa de curar o outro para, simbolicamente, curar a si mesmo.

Até mesmo atos como a autoflagelação ou a limpeza obsessiva podem ser entendidos como vícios: rituais compulsivos que tentam organizar um caos interno e lidar com uma angústia insuportável.

3. As Razões: O “Porquê” da Abordagem Psicanalítica

Diante desse cenário e dessa diversidade, por que insistir em uma abordagem psicanalítica? As razões são fundantes e definem a nossa própria ética de trabalho.

  • O Vício como Sintoma Psicossocial, Não como Falha Moral: A primeira razão é a necessidade de mudar o paradigma. O vício não é uma falha moral, mas um sintoma psíquico e, crucialmente, social. Ele é o resultado de uma cultura que promove o excesso, o consumo e o desamparo. A psicanálise nos convida a abandonar os preconceitos e a compreender o vício como um fenômeno que diz tanto sobre o indivíduo quanto sobre a sociedade em que ele vive.
  • A Psicanálise como Escuta Estratégica do Sofrimento: A medicina reconhece que o tratamento puramente bioquímico é, muitas vezes, insuficiente. A psicanálise se apresenta como uma aliada estratégica, pois ela não pergunta “como parar o comportamento?”, mas sim “o que este vício significa na história deste sujeito?”. Ela busca o sentido por trás do sintoma, e é na nomeação e na elaboração desse sentido que reside a possibilidade de uma transformação duradoura.
  • A Informação como Tríade Libertadora: Aprofundar-se na psicanálise dos vícios é um caminho de libertação que se apoia em uma trilogia: autoconhecimento, empatia e cidadania. É um convite ao autoconhecimento, pois os mecanismos de prazer e compulsão habitam em todos nós. É um treino para a empatia, pois nos ensina a reconhecer que cada queda carrega um pedido de cuidado. E, finalmente, é um exercício de cidadania, pois prepara o clínico e o cidadão para construir uma sociedade mais justa, inclusiva e acolhedora com o sofrimento psíquico.

Conclusão: Rumo a uma Escuta Sensibilizada

Este mapeamento do cenário, das tipologias e das razões é o trabalho essencial de sensibilização. Ele nos prepara para a tarefa clínica, nos descrevendo os personagens, as virtudes e os vícios que encontraremos no palco da vida. Entendemos que por trás de cada compulsão, há um sujeito refém, uma vítima de uma história que o levou a repetir experiências de morte (Thanatos) para fugir do vazio do desamparo. A nossa tarefa, como profissionais e como seres humanos, é entender melhor esse fenômeno, não para julgar, mas para, quem sabe, ajudar a resgatar o calor humano e a liberdade de escolha que foram perdidos.

Deixe um comentário