Os Escudos da Psique: Mecanismos de Defesa e a Ilusão de Controle no Vício

A sabedoria latina, com sua concisão e profundidade, nos oferece duas lentes para iniciar nossa investigação sobre a psique do adicto. A primeira, “Corruptio optimi, pessima” (A corrupção do melhor é a pior), adverte-nos sobre como algo inicialmente bom — a busca por prazer, alívio ou transcendência — pode se degenerar no pior dos males. A segunda, “Experientia docet” (A experiência ensina), nos lembra que até mesmo as consequências mais amargas podem se tornar catalisadoras para a mudança. Entre a corrupção do desejo e a lição da dor, ergue-se a complexa fortaleza dos mecanismos de defesa.

A psicanálise nos ensina que o vício não é mantido apenas pela química ou pelo prazer, mas por uma poderosa e invisível muralha de escudos inconscientes. O sujeito não persiste no comportamento autodestrutivo por simples falta de vontade, mas porque sua psique, em uma tentativa desesperada de autopreservação, cria uma ilusão defensiva. O vício emerge como um “sonho protetor” que permite ao ego fugir de uma realidade interna ou externa insuportável. Contudo, essa defesa congela o sujeito, impedindo a elaboração da angústia e perpetuando o ciclo da compulsão. A tarefa terapêutica, portanto, não é atacar a muralha, mas compreender sua função para que, um dia, o próprio sujeito possa abrir seus portões.

1. A Ilusão Defensiva: Negação, Racionalização e a Recusa da Realidade

No centro da dinâmica aditiva, encontramos um conjunto de defesas primárias que distorcem a realidade para tornar a angústia tolerável. Anna Freud, em sua obra seminal “O Ego e os Mecanismos de Defesa”, sistematizou esses processos, que na clínica dos vícios se mostram com uma clareza cristalina:

  • Negação: É a recusa inconsciente em reconhecer a realidade dolorosa da dependência. É o “não, eu controlo”, “não é tão grave”, “paro quando quiser”. A negação não é uma mentira consciente, mas um bloqueio perceptivo. O ego literalmente se recusa a ver a evidência para se proteger de uma ferida narcísica insuportável: a de se admitir impotente perante a compulsão.
  • Racionalização: É a parceira intelectual da negação. O sujeito cria explicações aparentemente lógicas e socialmente aceitáveis para justificar seu comportamento. “Bebo para relaxar do estresse do trabalho”, “Uso drogas para expandir minha criatividade”, “Faço compras porque mereço um presente”. A racionalização funciona como um alicerce que sustenta a negação, oferecendo uma narrativa coerente que mascara o caos subjacente.

O desafio para o terapeuta é imenso. Uma abordagem de confronto direto tende a enrijecer ainda mais as defesas. A escuta psicanalítica, ao contrário, busca acolher a defesa, entendendo-a como a melhor solução que o sujeito encontrou até então. Apenas em um ambiente de segurança transferencial é que a angústia por trás da defesa pode começar a ser verbalizada, tornando o escudo gradualmente desnecessário.

2. “A Persistência da Memória”: Uma Análise Surrealista do Vício em Salvador Dalí

A obra-prima de Salvador Dalí é, talvez, a mais perfeita representação visual da psique do adicto e de suas defesas.

  • O Tempo Deformado: Os famosos relógios derretidos ilustram a temporalidade subjetiva, não-cronológica, que o vício impõe. Para o sujeito imerso na compulsão, o tempo objetivo se dissolve. Horas, dias e semanas podem se fundir em um ciclo de busca, uso e recuperação, onde o único tempo que importa é o que separa uma dose da outra. Essa paisagem onírica e distorcida capta a essência do recalque e da resistência, mecanismos que deformam a percepção da realidade para manter o conflito inconsciente à distância.
  • O Ego Fragmentado: A estranha criatura amorfa no centro da tela, que muitos interpretam como um autorretrato de Dalí, simboliza o ego estilhaçado sob o efeito da compulsão. O vício desorganiza a identidade, fragmenta o eu e dissolve seus contornos. Essa imagem remete diretamente às descrições de psicanalistas como Otto Kernberg sobre as estruturas de personalidade borderline, onde a clivagem (splitting) do ego é um mecanismo central.
  • O Objeto Petrificado: O vício transforma o objeto de desejo em um fetiche. A droga, o álcool ou o celular tornam-se um objeto transicional ilusório (Winnicott) que, em vez de ajudar na passagem para a simbolização, petrifica-se, perdendo sua função e se tornando o centro tirânico de toda a vida psíquica.

3. Os Palcos da Defesa: Análises Culturais de Vícios Específicos

Cada vício utiliza o repertório de defesas de uma maneira singular, como podemos observar em diferentes produções culturais.

  • O Cigarro e a Fixação Oral: O gesto repetitivo de levar o cigarro à boca simboliza uma regressão à fase oral, uma busca pelo “seio materno” que acalma a ansiedade difusa do ego. Como explora Didier Anzieu, o gesto pode funcionar como um ritual que organiza um caos interno, uma “pele” protetora contra a angústia. O filme “Coffee and Cigarettes” de Jim Jarmusch, com sua série de vinhetas onde os personagens se conectam (ou se desconectam) através desses rituais, ilustra perfeitamente essa dinâmica.
  • O Exercício Físico e o Corpo como Objeto: O vício em exercícios transforma o prazer do movimento em um imperativo de perfeição. O corpo passa a ser modificado para sustentar um eu idealizado e frágil. Julia Kristeva, com seu conceito de “poderes da perversão”, nos ajuda a entender como o sujeito pode se fixar em um ideal que exige a expulsão de tudo que é “imperfeito”. O filme “Perfect”, com John Travolta e Jamie Lee Curtis, retrata o culto ao corpo nas academias dos anos 80 como um palco para essa performance narcísica.
  • A Tecnologia e a Extensão do Ego: O celular pode se tornar uma verdadeira extensão protética do ego, preenchendo lacunas relacionais e oferecendo um fluxo constante de validação que evita o encontro consigo mesmo. A dependência digital reorganiza o tempo do desejo em função da resposta imediata. Como analisa a socióloga Eva Illouz, o capitalismo tardio formata nossas vidas emocionais. O filme “Her” de Spike Jonze, onde o protagonista se apaixona por um sistema operacional, é a metáfora definitiva dessa busca por uma conexão perfeita, sem os atritos e as frustrações do encontro com um outro real.

4. A Astúcia e a Arrogância: O Vício no Diálogo Arquetípico da Arte

A psique do adicto muitas vezes exibe traços que ressoam com arquétipos universais, como a astúcia e a arrogância.

  • A Trapaça: A pintura “Os Trapaceiros” de Caravaggio dialoga com o mito de Hermes, o deus astuto dos ladrões e comerciantes. Ambos exploram a dinâmica da enganação e da malícia. Na clínica, vemos essa astúcia nas complexas manobras que o sujeito utiliza para esconder seu vício e manipular seu entorno. A ópera “O Barbeiro de Sevilha” de Rossini, com seu ritmo vivo e intrigas cômicas, evoca musicalmente essa agilidade e sagacidade que podem estar a serviço da compulsão.
  • A Arrogância: A obra “A Lição de Anatomia do Dr. Tulp” de Rembrandt mostra a ciência dissecando o corpo humano de forma meticulosa e fria, uma objetificação que pode remeter à arrogância intelectual. Isso se conecta ao mito de Prometeu, que em sua ousadia desafiou os deuses, acreditando em seu próprio poder. Na clínica, a arrogância pode se manifestar como uma defesa maníaca, uma recusa em aceitar a própria vulnerabilidade e a necessidade de ajuda. A música “Metamorphosen” de Richard Strauss, com sua complexidade contrapontística, pode representar essa meticulosa e por vezes fria análise que mascara uma profunda dor subjacente.

Conclusão: A Herança de Anna Freud e a Tarefa Terapêutica

Retornamos, ao final, à figura de Anna Freud. Foi ela quem sistematizou o estudo dos mecanismos de defesa, demonstrando que, embora possam se tornar patológicos, eles servem inicialmente a uma função adaptativa vital: proteger o ego de angústias insuportáveis. A tarefa do terapeuta, portanto, não é a de um soldado que ataca e destrói as defesas do paciente. Tal abordagem apenas geraria mais resistência. A verdadeira tarefa é a de um diplomata paciente: criar um vínculo transferencial tão seguro e acolhedor que o próprio sujeito, sentindo-se protegido pela relação, possa gradualmente baixar seus escudos. É ajudar a transformar a dolorosa experientia do vício na lição (docet) que finalmente liberta, substituindo a ilusão de controle pela coragem da vulnerabilidade.

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