O Labirinto e o Mapa: Elaboração e Perlaboração na Travessia do Burnout

Introdução: In Vino Veritas e a Verdade Sufocada no Trabalho

A antiga máxima latina, in vino veritas — “no vinho está a verdade” —, aponta para uma faceta fundamental da condição humana: a existência de uma verdade subjetiva muitas vezes aprisionada sob as pesadas defesas do ego. A frase alude a estados alterados nos quais, com o relaxamento da censura interna, o que é mais autêntico em nós pode emergir. Em nossa cultura hiperprodutiva, o recurso ao álcool ou a outras substâncias pode ser visto não apenas como fuga, mas como uma tentativa desesperada e destrutiva de aplacar a ansiedade de um superego tirânico, um esforço trágico para acessar um fragmento de si mesmo, esmagado pelas demandas do trabalho.

É nesse contexto de sufocamento que a Síndrome de Burnout se manifesta, não como um mero cansaço, mas como um trauma psíquico profundo, uma ferida aberta pela colisão entre o desejo do sujeito e a lógica desumanizante de certas estruturas organizacionais. A superação desse estado devastador, na perspectiva psicanalítica, não é uma questão de tempo ou de força de vontade, mas um trabalho psíquico árduo e disciplinado. Este artigo explora o método central desse trabalho: a jornada dialética entre a elaboração, o ato de mapear a dor, e a perlaboração, o processo paciente e hercúleo de percorrer esse mapa, vencer as resistências e, finalmente, atravessar as fantasias que nos mantêm acorrentados ao sofrimento.

Seção 1: A Prisão Circular – O Burnout como Trauma Não Elaborado

A psicanálise ressignifica o burnout, retirando-o do campo da gestão de estresse e situando-o na categoria do trauma. É uma ferida narcísica, uma experiência de aniquilação subjetiva que, se não for ativamente elaborada, não cicatriza. A crença de que “o tempo cura tudo” é, aqui, uma perigosa ilusão. Um trauma não simbolizado, não inscrito em uma narrativa coerente, não desaparece; ele se entrincheira no psiquismo e se manifesta através de seu sintoma mais ruidoso: a compulsão à repetição.

O sujeito em burnout se percebe preso em um labirinto circular. Ele muda de emprego, de chefe, de cidade, mas o roteiro trágico se repete: a dedicação excessiva, a dificuldade em impor limites, o sentimento de não reconhecimento, a exaustão final. Esses conflitos recorrentes não são fruto do acaso, mas de um roteiro escrito pelo inconsciente, uma tentativa incessante e fracassada de dominar e resolver a ferida original. O único antídoto para essa repetição cega é a rememoração, o ato consciente de lembrar, nomear e conectar os pontos do sofrimento para quebrar o ciclo.

O filme Feitiço do Tempo (Groundhog Day, 1993) oferece uma ilustração cultural perfeita desse estado. O protagonista, Phil Connors, está preso em um loop temporal, revivendo o mesmo dia indefinidamente. Sua jornada espelha a do paciente no início de uma análise: ele primeiro nega, depois se enfurece, entrega-se a excessos hedonistas e tenta o suicídio, apenas para acordar no mesmo ponto de partida. A sua libertação não vem de uma fuga mágica, mas de um trabalho árduo e repetitivo de perlaboração. Dia após dia, ele trabalha sobre as mesmas circunstâncias, aprendendo, conectando-se e transformando a si mesmo. A superação do ciclo só ocorre quando ele consegue mudar sua posição subjetiva dentro da repetição, transformando a prisão em um campo de aprendizado e criação.

Seção 2: A Cartografia da Alma – O Trabalho de Elaboração

Se a compulsão à repetição é o labirinto, a elaboração é o ato de desenhar o mapa. É o processo inicial de transformar a dor bruta e caótica em material psíquico assimilável. Trata-se de um trabalho de contenção e simbolização, de reunir os fragmentos da experiência traumática e tecê-los em uma narrativa coerente.

A obra da artista franco-americana Louise Bourgeois, especialmente suas famosas “Celas”, materializa esse conceito. Suas instalações são espaços fechados onde ela arranja objetos de seu passado, criando cenas que simbolizam memórias de abandono, medo e conflito familiar. Bourgeois não elimina a dor, mas a organiza, a contém dentro de uma estrutura simbólica e a torna observável. Ao fazê-lo, ela se distancia do trauma bruto, deixando de ser apenas a vítima da experiência para se tornar a autora da sua representação.

Na clínica do burnout, a elaboração funciona de forma análoga. Através da fala, o paciente começa a:

  1. Nomear o Sofrimento: Palavras como “humilhação”, “injustiça” e “invisibilidade” dão contorno a sensações antes difusas e avassaladoras.
  2. Construir uma Linha do Tempo: Identifica-se quando o processo de adoecimento começou, quais foram os eventos-chave e como eles se conectam.
  3. Identificar os Padrões: O paciente mapeia como o “roteiro trágico” se manifestou em diferentes contextos, reconhecendo sua própria participação na trama.

Este é o primeiro movimento essencial: criar uma cartografia da alma. É o ato de mapear as paisagens dolorosas do passado, não para nelas se perder, mas para saber onde se está e, a partir daí, traçar uma nova rota.

Seção 3: O Trabalho de Hércules – A Travessia da Perlaboração

Ter o mapa (a elaboração) é crucial, mas não é suficiente. O insight intelectual, a compreensão de “por que eu faço isso”, raramente leva a uma mudança duradoura por si só. A parte mais árdua do trabalho psíquico reside na perlaboração (do alemão Durcharbeitung, “trabalhar através de”). Este é o processo ativo, repetitivo e muitas vezes frustrante através do qual o paciente integra emocionalmente os insights, superando as resistências inconscientes que o mantêm preso aos velhos caminhos.

A raiz da resistência à mudança geralmente se encontra no que a psicanálise chama de fantasma (ou fantasia fundamental). O “fantasma profissional” é a fantasia inconsciente, a cena nuclear que rege a relação do sujeito com o trabalho. Para muitos, é uma fantasia de sacrifício: “Se eu me sacrificar até o limite, serei finalmente amado/reconhecido/salvo”; “Preciso ser o herói que resolve tudo, senão serei descartado”. Este fantasma oferece um gozo masoquista e uma identidade, ainda que dolorosa. Abandoná-lo, mesmo que ele leve à destruição, gera uma angústia profunda, pois significa abandonar o lugar conhecido que, por mais terrível que seja, estrutura o seu mundo.

A perlaboração é o trabalho de Hércules contra essa força. Consiste em, repetidamente:

  • Revisitar os mesmos conflitos e memórias dolorosas, mas com um novo olhar.
  • Identificar a atuação do fantasma em situações cotidianas no presente.
  • Experimentar a angústia de tentar agir de forma diferente (dizer “não”, delegar, descansar).
  • Analisar os fracassos e as recaídas, não como derrotas, mas como informações valiosas sobre a força da resistência.

É um trabalho paciente de percorrer o novo mapa, resistindo ativamente à tentação dos velhos caminhos que levam ao abismo do burnout.

Seção 4: Para Além da Caverna – A Travessia do Fantasma como Meta Final

O objetivo último da análise, o que marca a cura mais radical, é a travessia do fantasma. A Alegoria da Caverna de Platão é, talvez, a metáfora mais poderosa para descrever este processo. Nós começamos nossa vida psíquica na caverna, acorrentados, tomando as sombras projetadas na parede (nossas fantasias, as crenças que nos foram inculcadas) como a única realidade. O burnout ocorre quando a realidade do corpo e do limite se choca violentamente com a irrealidade das sombras que perseguimos (a promessa de sucesso infinito, a fantasia de sermos invulneráveis).

O processo analítico é a jornada de libertação e saída da caverna:

  1. A Elaboração é o momento em que o prisioneiro começa a perceber que as sombras são apenas sombras e se volta para a fonte de luz.
  2. A Perlaboração é a subida íngreme e dolorosa para fora da caverna, um caminho de resistência onde os olhos, acostumados à escuridão, se ofuscam com a luz da verdade.
  3. A Travessia do Fantasma não é chegar a um mundo idealizado de pura luz. É a capacidade de sair da caverna, contemplar o mundo real em sua complexidade e, crucialmente, ser capaz de retornar à caverna sem ser mais prisioneiro dela.

Na prática, isso significa que o sujeito não “elimina” sua fantasia de sacrifício, mas passa a reconhecê-la. Ele a vê como uma sombra, uma construção, e não mais como a realidade que o define. Ele pode identificar o desejo de “salvar a todos” e escolher não agir sobre ele. A travessia liberta o sujeito de sua relação de servidão com o trabalho e abre a possibilidade para novas formas de desejar e existir, tornando-o capaz de habitar quem ele realmente é, e não a pessoa que sua fantasia o obriga a ser.

Seção 5: Do Divã ao Coletivo – A Politização do Sofrimento

Limitar a análise do burnout ao campo individual, no entanto, seria um erro. Inspirado na obra do psicodinamista do trabalho Christophe Dejours, é imperativo politizar o adoecimento. O sofrimento no trabalho não é uma fatalidade, nem primariamente o resultado de uma fragilidade individual. É, em grande medida, o produto de escolhas organizacionais deliberadas e contestáveis: modelos de gestão baseados em pressão, competição e avaliação individual que minam a solidariedade e geram isolamento.

A transformação, portanto, exige uma passagem da resistência individual e silenciosa para uma ação coletiva e consciente. Isso implica a necessidade de uma elaboração coletiva do sofrimento. A principal ferramenta para isso é a criação de espaços de fala seguros e legitimados dentro das empresas, onde os trabalhadores possam verbalizar suas experiências, quebrar o isolamento e construir um entendimento comum sobre as causas de seu adoecimento.

Assim como no nível individual, a mudança externa também exige uma perlaboração coletiva. Não basta um evento ou uma palestra. É preciso revisitar persistentemente os problemas, os bloqueios e as fontes de esgotamento, superando a cultura do medo para estabelecer uma democracia no trabalho. A prevenção real do burnout não é sobre ensinar técnicas de resiliência individual, mas sobre garantir o direito coletivo de participação na organização do próprio trabalho.

Conclusão: O Ponto de Partida

A jornada psicanalítica para a superação do burnout é um trabalho árduo, de longo prazo, que transforma a repetição doentia em rememoração consciente. O método consiste em elaborar os traumas para criar um mapa e, em seguida, perlaborar as resistências para atravessá-lo. O objetivo final, a travessia do fantasma profissional, descontrói a fantasia inconsciente que sustenta a relação de sacrifício com o trabalho.

A psicanálise não promete soluções imediatas nem o retorno a um estado anterior de normalidade. Ela oferece algo muito mais profundo: uma transformação radical da subjetividade. O esgotamento, uma vez elaborado e perlaborado, deixa de ser um ponto final trágico para se tornar o ponto de partida para uma relação mais livre, criativa e prazerosa com o desejo, o trabalho e a vida.

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