A adolescência não é uma mera continuação da infância; é um território de metamorfose, um segundo nascimento, uma travessia perigosa e complexa. Quando o diagnóstico de TDAH atravessa essa fase, seus sintomas – a agitação, a desatenção, a impulsividade – adquirem novos significados e funções. A abordagem clínica, portanto, não pode mais ser a mesma. O oitavo capítulo do curso “Psicanálise e TDAH” nos convida a abandonar a lógica do gerenciamento de um déficit para adotar uma “clínica da aposta e da paciência”. É uma clínica que reconhece que o sintoma, na adolescência, é muitas vezes parte intrínseca do doloroso e necessário processo de se tornar sujeito.
Este artigo propõe-se a explorar essa abordagem, reinterpretando a queixa de TDAH no adolescente como uma “máscara” para as angústias fundamentais da construção da identidade e do despertar da sexualidade. Analisaremos a resistência ao tratamento não como um obstáculo, mas como um movimento saudável de afirmação. Mergulharemos na potente metáfora do pássaro que quebra o ovo para compreender os comportamentos disruptivos como tentativas de um nascimento psíquico. E, por fim, iremos para além da “guerra de trincheiras” entre neurobiologia e crítica social, propondo uma “terceira via” neuropsicanalítica e lançando um olhar indispensável sobre a invisibilidade histórica do TDAH feminino. O objetivo é claro: acompanhar a travessia, garantindo que, em meio à desorganização, a palavra do adolescente encontre um lugar para nascer.
A Máscara do Tumulto: Reinterpretando o Sintoma na Adolescência
Se na infância o sintoma do TDAH está frequentemente ligado às dinâmicas familiares e aos impasses do desenvolvimento, na adolescência ele é cooptado para servir a uma nova e urgente tarefa: a construção da identidade.
- A Queixa como Máscara: A queixa explícita de TDAH, seja vinda do adolescente ou de sua família, funciona frequentemente como uma máscara para angústias mais profundas. O “não consigo me concentrar” pode ser a expressão manifesta de um turbilhão interno que o adolescente não consegue nomear: a ansiedade avassaladora diante das escolhas futuras (“Quem eu sou? O que serei?”), a confusão diante de um corpo em transformação e, crucialmente, o despertar da sexualidade, essa “força primitiva que desestabiliza o corpo e a mente”. A agitação e a dispersão se tornam, assim, uma defesa contra a intensidade dessas novas e assustadoras experiências internas.
- A Resistência como Movimento de Saúde: É comum que adolescentes resistam ao tratamento, se oponham ao terapeuta ou questionem o diagnóstico. A clínica tradicional pode ver isso como um obstáculo. A psicanálise, no entanto, reinterpreta essa resistência como um “movimento saudável de afirmação subjetiva”. Para se tornar um sujeito autônomo, o adolescente precisa se opor, quebrar com as identificações infantis e com os ideais parentais que o “colonizam”. Resistir ao lugar de “paciente” ou ao rótulo diagnóstico pode ser sua forma de dizer: “Eu não sou esse déficit que vocês nomeiam. Eu sou mais do que isso”. Essa postura exige do analista uma “diplomacia clínica”, uma paciência para não entrar em confronto direto, mas para escutar a afirmação de si que se esconde na negatividade.
- A Hiperatividade como Energia Vital: A energia da hiperatividade é relida como a força pulsional necessária para a ruptura. É a energia vital que o adolescente precisa para romper com as estruturas parentais e familiares, para questionar o mundo e para se lançar na arriscada tarefa de construir uma identidade autônoma. Gerenciar ou medicar excessivamente essa energia pode ser o equivalente a cortar as asas de um pássaro no momento em que ele mais precisa delas para aprender a voar.
O Pássaro que Quebra o Ovo: A Metáfora do Nascimento Psíquico
A metáfora mais poderosa para compreender a adolescência, proposta no curso, é a de Hermann Hesse: o pássaro que luta para quebrar a casca do ovo e nascer.
O “ovo” representa o mundo da infância: as identificações com os pais, os ideais familiares, as certezas e proteções do ninho. Para nascer como um sujeito singular, o adolescente precisa romper essa casca. Este é um ato inerentemente violento e disruptivo. Os comportamentos típicos do transtorno, como a impulsividade, a oposição e a agitação, podem ser compreendidos como as bicadas desesperadas do pássaro contra a casca. São “manifestações necessárias da força pulsional” que busca romper simbolicamente com o passado.
A questão que se impõe à clínica é crucial: qual será o nosso papel? Seremos os guardiões da casca, tentando remendá-la a cada rachadura com mais controle e medicação? Ou teremos a coragem de escutar, por trás do barulho da quebra, o “grito da subjetividade” do pássaro que luta para nascer? A pressa em patologizar o comportamento disruptivo corre o risco de impedir “o processo natural da individuação que todo adolescente precisa atravessar”.
Para Além da Guerra de Trincheiras: Rumo a uma Terceira Via Neuropsicanalítica
A discussão sobre o TDAH tem sido marcada por uma polarização estéril entre o discurso neurobiológico, que foca no cérebro, e a crítica sociológica, que foca no contexto. Essa “guerra de trincheiras” deixa os pacientes no fogo cruzado. O curso propõe uma sofisticada “terceira via neuropsicanalítica”, que busca um diálogo, fazendo uma distinção fundamental entre o mapa e o território.
- O Mapa (Neurociência): A neurociência nos oferece o “mapa”, descrevendo o “como” e o “quê” dos circuitos neurais. Ela nos informa sobre as bases biológicas da atenção, da inibição e das funções executivas.
- O Território (Psicanálise): A psicanálise explora o “território”, o “porquê” da experiência subjetiva. Ela se pergunta como uma vulnerabilidade neurológica é vivida, significada e tecida na história única de um sujeito.
Nesta terceira via, a atenção deixa de ser uma função cerebral isolada para ser compreendida como um fenômeno intersubjetivo. A capacidade de um adolescente para a atenção hoje é construída sobre o “andaime da atenção recebida” de seus cuidadores na infância. Uma atenção parental ansiosa, intrusiva ou fragmentada cria um andaime frágil, tornando a construção de uma atenção sustentada uma tarefa hercúlea para a criança. O objetivo terapêutico final, nesta perspectiva, é o desenvolvimento de uma “metacognição”, onde o paciente, através da análise, se torna capaz de ser o “analista de sua própria mente”, compreendendo tanto o funcionamento do seu “mapa” neurológico quanto a história de seu “território” subjetivo.
Os Ombros dos Meninos Inquietos: A Invisibilidade Histórica do TDAH Feminino
Nenhuma discussão sobre TDAH na adolescência estaria completa sem abordar a crucial questão do gênero. O curso, de forma contundente, expõe como nossa compreensão do transtorno foi construída “sobre os ombros de meninos inquietos”, ignorando sistematicamente o universo interno das meninas.
A lente exclusivamente masculina do diagnóstico tradicional, focada na hiperatividade física e disruptiva, fez com que as manifestações femininas do TDAH permanecessem por décadas na invisibilidade. Enquanto os meninos manifestam a externalização, as meninas frequentemente desenvolvem uma “agitação interna silenciosa”. Seus sintomas são mais internalizados: ansiedade, labilidade emocional, desorganização mental, dificuldade de foco e uma exaustiva performance de “mascaramento” para atender às expectativas sociais.
As consequências são devastadoras: diagnósticos tardios ou ausentes, e, pior, a patologização de seus sintomas com rótulos depreciativos e misóginos como “dramáticas”, “avoadas”, “histéricas”. A chegada da hora de reconhecer que a ciência médica, inadvertidamente, “reproduziu estruturas patriarcais que custaram décadas de atraso e de sofrimento desnecessário” é um imperativo ético. A clínica com adolescentes precisa estar especialmente atenta a essa invisibilidade, aprendendo a escutar o sofrimento silencioso por trás da máscara da aparente normalidade.
Conclusão: Acompanhar a Travessia e Garantir o Lugar da Palavra
O trabalho com o adolescente com TDAH exige do clínico uma aposta na vida e uma paciência radical. É a aposta de que, por trás do tumulto, existe um sujeito lutando para nascer. É a paciência para acompanhar essa travessia, sem a pressa de rotular ou de silenciar o que precisa ser quebrado.
O papel do profissional, como conclui o curso, não é o de gerenciar um déficit, mas o de ser o guardião de um espaço. Um espaço seguro onde, em meio à desorganização, “a palavra do adolescente encontre um lugar para nascer”. O objetivo terapêutico não é produzir um jovem “normalizado”, mas sim um que tenha conseguido se descolar do rótulo diagnóstico para se engajar na tarefa mais fundamental da vida: a de inventar a si mesmo. A verdadeira cura acontece quando o diagnóstico de TDAH, antes uma sentença, se transforma em apenas um adjetivo, uma característica entre muitas outras na complexa e autêntica história que o adolescente, finalmente, começa a escrever por si mesmo.