No coração da clínica psicanalítica com crianças, reside uma verdade ao mesmo tempo simples e de uma profundidade abissal: a de que a cura não se opera pela supressão do sintoma, mas pela sua transformação. O trabalho terapêutico, nesta ótica, é uma forma de alquimia psíquica, um processo delicado e metódico que busca aprender a converter a “energia bruta da angústia na matéria-prima da simbolização e da história”. E o ateliê, o laboratório sagrado onde esta alquimia acontece, é o brincar. O décimo capítulo do curso “Psicanálise e TDAH” nos convida a um mergulho radical nesta premissa, propondo uma releitura inovadora e comovente: e se o TDAH, em muitas de suas manifestações, não for uma patologia em si, mas uma nostalgia profunda e desesperada pelo território perdido do brincar?
Este artigo propõe-se a explorar esta tese revolucionária em todas as suas implicações. Primeiramente, fundamentaremos a concepção do brincar, inspirados em D.W. Winnicott, como um “espaço de transição sagrado”, essencial para a constituição do verdadeiro self. Em seguida, iremos desdobrar a provocadora ideia de que estamos, em nossos consultórios, “medicando a saudade”, ao tratar como déficit neurológico o que na verdade é uma busca da criança por um direito existencial que lhe foi roubado. Detalharemos, então, a ludoterapia como um método clínico rigoroso, capaz de ler a “gramática do inconsciente”. Por fim, situaremos esta prática no centro da “guerra paradigmática” contemporânea, defendendo que a restauração da capacidade de brincar é não apenas a mais potente das intervenções, mas um ato político e ético em defesa da humanidade da criança.
O Território Sagrado: A Teoria Winnicottiana do Brincar como Espaço Transicional
Para compreender a centralidade do brincar, precisamos abandonar a noção de que ele é mera recreação ou um escape da realidade. Inspirado em pensadores como Friedrich Schiller, que afirmou que “o homem somente é um homem completo quando brinca”, D.W. Winnicott eleva o brincar ao status de uma atividade existencial por excelência.
Winnicott postula a existência de um “espaço transicional”, uma terceira área da experiência que não é nem a realidade interna (o mundo da fantasia pura) nem a realidade externa (o mundo dos fatos compartilhados). É um espaço intermediário, um território sagrado onde a criança pode usar objetos do mundo externo (um ursinho, um pedaço de pano) e imbuí-los de significado subjetivo, sem ser questionada sobre a “realidade” disso. É neste espaço que a cultura, a criatividade e o sentimento de si mesmo (o “verdadeiro self”) podem emergir. O brincar é a atividade principal que ocorre neste espaço. Ao brincar, a criança não está fugindo do mundo; ela está, ativamente, dando forma à sua angústia, ensaiando superações e tornando a realidade externa habitável e significativa.
A verdadeira superação de nossas fragilidades, nesta ótica, não consiste em adequar a criança aos padrões adultos, mas em restaurar e proteger sua capacidade de habitar este espaço, de brincar de forma criativa e pessoal. É a fonte primordial de toda a força humana.
Medicando a Saudade: O TDAH como Nostalgia pelo Território Perdido
É aqui que a perspectiva do curso se torna radical. Se o brincar neste espaço transicional é essencial para a saúde psíquica, o que acontece em uma civilização que sistematicamente rouba este território da infância? Uma cultura que exige performance constante, que substitui a brincadeira livre pela interação algorítmica e que preenche cada momento de tédio com estímulos digitais, efetivamente destrói o espaço transicional.
A tese inovadora que emerge é a de que a agitação e a desatenção, diagnosticadas como TDAH, representam uma “busca desesperada pelo reino sagrado onde a alma pode existir livre das pressões de uma performance social”.
- A agitação infantil deixa de ser vista como um defeito para ser compreendida como uma busca corporal, um movimento incessante pelo espaço físico na tentativa de encontrar o espaço psíquico que lhe foi negado.
- A desatenção pode ser lida como uma tentativa de criar, internamente, um refúgio, um espaço transicional privado, quando o mundo externo se torna excessivamente exigente e desprovido de sentido.
Esta perspectiva nos leva a uma pergunta perturbadora: “E se estivermos medicando a saudade?”. Quantas receitas de metilfenidato prescrevemos, quando deveríamos estar denunciando e tentando reverter uma “infância roubada”? O sintoma, então, não é a doença; é um protesto saudável, um “grito de socorro” de uma criança cuja alma não encontra espaço para respirar. Os brinquedos se tornam o “alfabeto de uma linguagem perdida”, e a brincadeira, a “gramática referencial da existência” que precisa ser resgatada.
Ludoterapia: A Clínica da Restauração do Brincar
Se o problema é a perda da capacidade de brincar, a solução clínica é a sua restauração. A ludoterapia, na perspectiva psicanalítica, não é simplesmente “deixar a criança brincar”. É um método clínico rigoroso, um trabalho de alquimia psíquica.
- O Setting como Continente: O consultório se torna ele mesmo um espaço transicional seguro e protegido, onde o caos interno da criança pode ser externalizado e contido pela presença atenta e não-julgadora do terapeuta.
- Os Brinquedos como Significantes: Os objetos na sala de terapia (bonecos, animais, massinha, tintas) não são aleatórios. Eles funcionam como um alfabeto, como significantes que a criança utiliza para escrever a sua história, para dar forma aos seus conflitos e para encenar seus dramas internos.
- O Brincar como Via de Escoamento Simbólico: A ludoterapia oferece um canal, uma “via de escoamento simbólico” para os sintomas. A energia bruta da agitação motora, em vez de ser descarregada de forma caótica, é canalizada para uma cena lúdica. A criança, em vez de apenas correr, pode se tornar um super-herói que corre para salvar o mundo, transformando a agitação em uma narrativa com personagens, enredo e sentido.
- O Terapeuta como Parceiro Simbólico: O papel do analista é o de ler a “gramática do inconsciente” que se manifesta no brincar. Ele não impõe um sentido, mas ajuda a criança a construir o seu, validando suas produções e oferecendo palavras que conectam a cena lúdica aos seus afetos. Ele ajuda a transformar as “dissonâncias emocionais em novas possibilidades de existência”.
O objetivo último desta clínica não é “curar o TDAH”, mas sim restaurar a capacidade de brincar. Pois, ao fazê-lo, devolvemos à criança a ferramenta mais poderosa para a elaboração de seus conflitos ao longo de toda a vida.
A Guerra Paradigmática: O Brincar no Fogo Cruzado da Saúde Mental
Esta abordagem, centrada na subjetividade e no brincar, não existe no vácuo. Ela se posiciona no centro de uma “guerra paradigmática” que divide o campo da saúde mental.
De um lado, a psiquiatria biológica defende o TDAH como uma entidade neurobiológica real, respaldada por evidências de neuroimagem e genética. Desta perspectiva, o brincar pode ser visto como adjuvante, mas a intervenção central é, muitas vezes, farmacológica, visando corrigir um suposto déficit cerebral.
Do outro lado, uma perspectiva crítica e social vê o TDAH como uma “construção social historicamente inventada”. Para esta visão, o diagnóstico serve para individualizar problemas que são, na verdade, sociais (como escolas inadequadas, pressão por produtividade) e para atender a valores neoliberais de autocontrole e performance.
A abordagem psicanalítica e winnicottiana oferece uma terceira via sofisticada. Ela não precisa negar a possibilidade de vulnerabilidades neurobiológicas, mas se recusa a reduzir o sujeito a elas. Ela insiste que, independentemente da base orgânica, o sofrimento humano é sempre vivido e significado simbolicamente, e que a principal via de acesso e tratamento para a criança é o brincar. Ela denuncia como a “construção social” de uma infância sem tempo livre e sem tédio cria as condições perfeitas para que as vulnerabilidades individuais se transformem em patologias manifestas. O foco da psicanálise é menos na “verdade” do diagnóstico e mais na verdade do sujeito, que se revela de forma privilegiada no ato de brincar.
Conclusão: Onde a Alma Finalmente Pode Respirar
A provocação de Schiller — de que o homem só é completo quando brinca — ecoa como um alerta urgente em nossos consultórios e escolas superlotados de crianças diagnosticadas. A prática clínica que se apressa em diagnosticar e medicar, que valoriza protocolos frios em detrimento da escuta do brincar, corre o risco de “assassinar a humanidade que pulsa em cada paciente”, criando “autômatos funcionais” em vez de seres humanos íntegros.
A perspectiva psicanalítica do brincar terapêutico é, portanto, mais do que uma técnica; é um ato de resistência e de fé. É a resistência contra uma cultura que desvaloriza o não-produtivo. E é a fé na capacidade inata do ser humano de se curar e de criar sentido através do jogo simbólico. A verdadeira superação da fragilidade, manifestada nos sintomas do TDAH, não reside na eliminação do sintoma, mas na restauração do direito sagrado da criança de habitar o seu território perdido. É preciso preservar esses espaços de criatividade, pois eles são o lugar onde a angústia pode ser transformada em história e onde a alma, finalmente, encontra um espaço para respirar.