A Clínica da Continência: Uma Leitura Psicanalítica do Manejo de Crises no TDAH

No percurso da clínica com crianças, adolescentes e adultos que experimentam o TDAH, chegamos a um dos seus territórios mais desafiadores e temidos: a crise. A explosão de raiva, o comportamento de autolesão, a desorganização aguda — todos são fenômenos que testam os limites de pais, educadores e terapeutas, convocando em nós um impulso quase irresistível de controlar, domar e silenciar. O décimo segundo capítulo do curso “Psicanálise e TDAH” nos propõe uma corajosa e inabalável subversão desta lógica. A tese fundamental, que serve como uma bússola ética em meio à tempestade, é a de que a crise não é o inimigo a ser silenciado, mas a própria expressão do sofrimento.

Este artigo propõe-se a mergulhar nas profundezas desta abordagem, detalhando o que significa operar a partir de uma “clínica da continência”. Primeiramente, iremos ressignificar os comportamentos extremos, traduzindo-os de “maus comportamentos” para “atos de comunicação desesperados” e “erupções vulcânicas do inconsciente”. Em seguida, exploraremos a potente leitura lacaniana da crise como uma “irrupção do Real”, um momento traumático que exige uma postura clínica específica. Ampliaremos o foco para uma análise sociocultural, compreendendo a epidemia de descontrole como um sintoma de uma crise civilizacional mais ampla. E, por fim, abordaremos a manifestação do TDAH na vida adulta e a necessidade de uma “reestruturação narrativa”. O objetivo final é claro: capacitar o adulto a se tornar não o domador da criança, mas o continente firme e empático que, ao suportar o caos, cria a oportunidade para a elaboração e a cura.

A Subversão do Manejo: De Controlador a Continente Psíquico

A abordagem tradicional ao manejo de crises foca, predominantemente, no controle comportamental. Utiliza-se de técnicas de extinção, tempo de castigo (“time-out”), sistemas de recompensa e punição, todos visando cessar o comportamento disruptivo o mais rápido possível. A psicanálise, sem necessariamente invalidar a utilidade de algumas estratégias em certos contextos, opera uma subversão fundamental em sua premissa. O foco não está em controlar o comportamento, mas em oferecer um invólucro psicológico para a angústia que o alimenta.

Esta é a essência da “clínica da continência” (holding). O papel do adulto não é o de um domador que subjuga a fera, mas o de um continente que oferece bordas seguras para um sofrimento que transborda. Isso exige uma combinação delicada e poderosa de:

  1. Firmeza: A firmeza estabelece o limite. Ela é a parede que impede que o sujeito se fira, fira os outros ou destrua o ambiente. Ela representa a sobrevivência da ordem simbólica em meio ao caos. É o “não” que protege a criança de seu próprio desamparo e de seus impulsos avassaladores.
  2. Empatia: A empatia valida o sofrimento. É a capacidade do adulto de reconhecer e nomear a dor por trás do ato. É a voz que diz: “Eu vejo o quão grande é a sua dor/raiva/frustração. Eu estou aqui com você neste sentimento terrível.”

A ressignificação do limite é crucial aqui. O limite, nesta ótica, não é uma punição, mas um “ato de cuidado”. É a forma mais primordial de amor, pois resgata o laço simbólico e protege a criança de sua própria desintegração.

A Linguagem do Intolerável: Comportamentos Extremos e as Erupções do Real Lacaniano

Para sustentar essa postura, é preciso reinterpretar radicalmente o que os comportamentos extremos significam. A raiva, o descontrole, as dificuldades escolares e, de forma emblemática, a autolesão, não são “maus comportamentos”. São “atos de comunicação desesperados”, a linguagem do intolerável. São a “verdadeira erupção vulcânica do inconsciente”, o momento em que a dor psíquica transborda os limites da expressão verbal e se manifesta em ato puro.

A teoria de Jacques Lacan nos oferece uma ferramenta poderosa para compreender a natureza desses momentos. A crise e a autolesão podem ser vistas como “irrupções do Real”. O Real, para Lacan, não é a realidade cotidiana. É a dimensão traumática, pré-simbólica, daquilo que é tão avassalador que “resiste ferozmente a qualquer tentativa de interpretação”. É a angústia em seu estado mais puro, sem nome e sem mediação.

Quando a psique é sufocada pela impossibilidade de simbolizar um trauma, quando a palavra falha em dar conta de um horror, o sujeito pode recorrer a um último e desesperado recurso: usar “a carne como seu único alfabeto possível”. A autolesão, nesta perspectiva, é um ato de uma lógica terrível, mas precisa. O sujeito inflige a si mesmo uma dor física, concreta, localizada e finita para tentar aplacar uma dor psíquica que é difusa, inominável e que parece infinita. É uma tentativa desesperada de dar uma borda, um contorno a um sofrimento que ameaça aniquilar a própria estrutura psíquica. O objetivo terapêutico, diante de uma irrupção do Real, não é interpretar, mas construir no sujeito a capacidade de “suportar seu próprio terrível” e garantir que, no auge da tempestade, o laço humano, o vínculo com o terapeuta ou cuidador, não se rompa.

O Sintoma Coletivo: A Crise da Civilização e o Colapso da Autoridade

A clínica psicanalítica nos obriga a ampliar o olhar para além do consultório. A “epidemia de comportamentos de descontrole” que vemos hoje, frequentemente diagnosticada como TDAH, pode ser, na verdade, um sintoma de uma “profunda crise da civilização”. Inspirada no trabalho de psicanalistas como Jean-Pierre Lebrun, esta análise argumenta que o que está em jogo é o “colapso da autoridade simbólica”.

A transição de uma sociedade hierárquica, vertical, para uma sociedade de relações horizontais, erodiu as figuras tradicionais de autoridade (pai, professor, médico) que antes ofereciam limites e referências claras. A “criança ingovernável”, que não escuta e desafia todas as regras, é a “mensagem mais honesta do declínio da palavra do adulto”. Ela não sofre de um transtorno neurológico isolado; ela está a denunciar o caos simbólico de um mundo que perdeu suas referências estruturantes. Ao focarmos no cérebro da criança, corremos o risco de transformar em patologia individual o que é, na verdade, um sintoma coletivo de uma sociedade que perdeu sua capacidade de estruturar as novas gerações.

O Terremoto Tardio: O TDAH na Vida Adulta e a Reestruturação Narrativa

O sofrimento não tratado na infância não desaparece. Ele se manifesta como a “epidemia escondida” do TDAH na vida adulta, afetando uma parcela significativa da população. Para o adulto, receber o diagnóstico é frequentemente um “profundo terremoto das emoções”. É o momento em que décadas de autocrítica feroz, de sentimentos de inadequação e de interpretações de suas dificuldades como “falhas de caráter” são subitamente recontextualizadas.

O tratamento do adulto, portanto, vai muito além da medicação. Ele exige uma abordagem multimodal que tem como eixo central a “reestruturação narrativa”. A psicoterapia se torna o espaço onde o sujeito pode reescrever sua história de vida à luz da nova compreensão. Fracassos passados são ressignificados, a vergonha tóxica é elaborada, e o que antes era visto como uma falha moral pode ser integrado como parte de uma condição neurobiológica que exige estratégias e autocompaixão. A psicoeducação, envolvendo a família e criando um “nicho ecológico” de profissionais, é fundamental para que o adulto possa, finalmente, construir um mundo que se adapte às suas singularidades, em vez de passar a vida tentando se encaixar em um molde que nunca lhe serviu.

Conclusão: Criando um Lugar para a Palavra, Mesmo no Auge da Tempestade

O manejo de crises e comportamentos extremos, na perspectiva psicanalítica, é uma das tarefas mais exigentes e éticas da clínica. Ele nos convoca a abandonar o conforto das técnicas de controle para abraçar a complexidade da continência. Exige de nós a coragem de ficar ao lado do sujeito no momento de sua maior desorganização, não para silenciá-lo, mas para oferecer uma presença que ateste que mesmo o “terrível” pode ser suportado, e que o laço humano é mais forte que o caos.

A crise, seja a erupção vulcânica da criança ou o terremoto tardio do adulto, é sempre um grito por simbolização. Nosso papel, como cuidadores, não é abafar o grito, mas escutá-lo com a convicção de que, por trás do ruído mais ensurdecedor, existe uma história esperando para ser contada. A verdadeira superação reside em sobreviver à tempestade juntos, para que, quando a poeira assentar, possa haver, finalmente, um lugar para a palavra emergir.

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