A Orquestra e Seus Músicos: O Papel da Psicanálise na Construção de um Cuidado Interdisciplinar para o TDAH

No complexo cenário da saúde mental contemporânea, a criança ou o adulto com TDAH encontra-se no epicentro de uma verdadeira “Torre de Babel”. Psiquiatras, neurologistas, pedagogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos — uma miríade de especialistas bem-intencionados ergue, tijolo por tijolo, discursos sofisticados em suas próprias linguagens técnicas. No entanto, sem uma articulação, sem um maestro que ajude a afinar os instrumentos, o resultado muitas vezes não é uma sinfonia de cuidado, mas uma cacofonia de laudos desconectados que, tragicamente, se distancia cada vez mais do chão onde o sujeito sofre. A criança, como nos adverte a clássica parábola dos cegos e o elefante, corre o risco de desaparecer, reduzida a uma tromba, a uma pata, a uma orelha, mas nunca compreendida em sua totalidade.

Este capítulo do curso “Psicanálise e TDAH” nos convida a enfrentar este desafio de frente, defendendo como um imperativo ético e clínico a necessidade de um trabalho interdisciplinar. Mas ele vai além, propondo um lugar específico e insubstituível para a psicanálise nesta orquestra de saberes. A proposta é que o psicanalista atue não como mais um músico solista, mas como um intérprete ético, cuja função primordial é a de persistentemente reintroduzir a pergunta pelo sujeito e sua história singular, garantindo que a criança não seja reduzida a protocolos. Este artigo irá detalhar esta função, explorar as ferramentas teóricas que a psicanálise oferece para reconceitualizar a atenção, analisar a metamorfose do TDAH na vida adulta e, por fim, apresentar a práxis interdisciplinar como um ato de resistência em defesa da complexidade humana.

A Função do Intérprete Ético: O Lugar da Psicanálise na Equipe

Diante da fragmentação dos saberes, qual é o papel do psicanalista? Sua contribuição não é a de oferecer respostas definitivas ou de invalidar as descobertas de outras áreas. Pelo contrário, sua tarefa é a de articular. A psicanálise se propõe a ser o campo que, respeitando a validade da neurobiologia, da educação e de outras disciplinas, se recusa a abandonar a perspectiva do inconsciente. O psicanalista é aquele que, na mesa de discussões, está eticamente comprometido a lembrar a todos os outros especialistas que, por trás do cérebro a ser mapeado e do comportamento a ser treinado, existe um “sujeito do inconsciente”.

Sua função primordial é, portanto, a de sustentar a pergunta fundamental: “Quem é este sujeito?”. Quem é esta criança para além de seus laudos? Qual é a história que seus sintomas contam? Qual é o seu lugar no desejo de sua família? Ao fazer isso, o psicanalista atua como um guardião da singularidade. Ele luta para que a riqueza da vida infantil não seja esmagada pela linguagem burocrática dos sistemas de saúde e educação. Ele não tem a pretensão de ser o dono da verdade, mas se posiciona como aquele que garante que a pergunta pela verdade do sujeito permaneça viva, aberta e no centro do cuidado.

Reconceptualizando a Atenção: Ferramentas Teóricas para a Equipe

Além de sua postura ética, o psicanalista traz para a equipe ferramentas conceituais que podem revolucionar a compreensão do próprio sintoma da “desatenção”. O curso nos apresenta a sofisticada contribuição de teóricos como Francesco D’Izanni e Wilfred Bion, que nos ajudam a sair da lógica do déficit.

Nesta perspectiva, a “crise de atenção” é radicalmente reconceitualizada. A atenção deixa de ser vista como uma função neurobiológica isolada, uma “coisa” que se tem ou não, para ser compreendida como um investimento funcional que segue o desejo, consciente e inconsciente. A mente não é desatenta por um defeito, mas porque se recusa a investir sua energia vital (libido) em tarefas que são percebidas como desprovidas de desejo ou significado.

A metáfora da “asma psíquica” é particularmente poderosa para a equipe interdisciplinar. Ela propõe que o TDAH pode ser entendido como uma falha na modulação entre a atenção focada (comparada a uma expiração controlada) e a atenção flutuante (uma inspiração receptiva). A criança (ou o adulto) fica “sufocada” em uma “epidemia de tarefas desprovidas de desejo”, incapaz de “respirar” psiquicamente. Esta imagem transforma a compreensão do sintoma: a recusa em fazer a lição de casa deixa de ser “oposição” ou “preguiça” para ser entendida como um ato de autopreservação de uma mente que “não consegue respirar” naquele ambiente.

A intervenção que decorre desta visão também se transforma. O objetivo não é mais “forçar a atenção”, mas promover uma “educação da atenção interna”, uma “alfabetização psíquica”. O papel do analista como “continente psíquico” é ajudar o sujeito a se conectar com seu próprio desejo, para que o investimento de atenção no mundo externo se torne uma consequência natural, e não um ato forçado.

A Metamorfose do Sintoma: Compreendendo o Adulto com TDAH na Equipe

O trabalho interdisciplinar se torna ainda mais complexo quando lidamos com adultos. O TDAH adulto, como nos lembra o curso, representa uma metamorfose complexa dos sintomas infantis. A compreensão dessa transformação é crucial para a equipe.

  • A hiperatividade física da infância muitas vezes se internaliza, transformando-se em uma “inquietude mental” incessante, uma sensação de motor interno que nunca desliga, gerando ansiedade e exaustão.
  • A desatenção, por sua vez, frequentemente evolui para uma paralisante “paralisia procrastinatória”. O adulto sabe o que precisa fazer, mas se vê incapaz de iniciar a ação, preso em um ciclo de autocrítica e vergonha.

A abordagem de autoras como Françoise Suissa é fundamental aqui, pois evita o “neurorreducionismo”. Embora a neurociência valide essas transformações com alterações no córtex pré-frontal, a psicanálise insiste que o sofrimento psíquico do adulto é construído pela sua história de vida: décadas de rotulação (“preguiçoso”, “desorganizado”), de autocobrança e de tentativas fracassadas de se encaixar em um mundo que não compreende sua neurobiologia. Uma equipe interdisciplinar eficaz para o adulto deve incluir, portanto, não apenas o médico e o terapeuta, mas potencialmente coaches de carreira e orientadores que possam ajudar a construir um “nicho ecológico” (carreiras, ambientes, relações) alinhado com as singularidades daquele cérebro, e não contra elas.

O Relatório como Ato de Resistência: A Práxis Interdisciplinar

Como, então, superar a Torre de Babel na prática? O curso propõe uma ferramenta concreta e politicamente potente: o relatório interdisciplinar como um “ato político de resistência”.

Este não é um compilado de laudos separados. Pelo contrário, é um documento único, co-construído pela equipe, que busca tecer os diferentes saberes em uma narrativa unificada e coerente sobre um sujeito singular. Um relatório como este poderia, por exemplo, ter seções que se articulam:

  1. Contexto Neuropsicológico (O Mapa): Apresenta os dados dos testes, os achados do neurologista, descrevendo as vulnerabilidades nas funções executivas.
  2. Contexto Desenvolvimental e Familiar (A História do Território): O psicólogo ou psicanalista traça a história de vida do sujeito, os traumas, a dinâmica familiar, a função que o sintoma parece cumprir.
  3. Contexto Pedagógico/Laboral (O Território em Ação): O pedagogo ou coach descreve como essas vulnerabilidades e essa história se manifestam concretamente na sala de aula ou no ambiente de trabalho.
  4. Síntese e Encaminhamento (O Plano de Navegação): A equipe, em conjunto, cria uma síntese que conecta os pontos (“A dificuldade de inibição (mapa) se agrava quando o sujeito se sente desvalorizado (território), resultando em interrupções na sala de aula (ação)”) e propõe um plano de cuidado integrado, onde cada profissional sabe qual é a sua parte na sinfonia.

O caráter “político” deste ato reside em sua capacidade de inscrever a singularidade da vida infantil (ou adulta) na linguagem burocrática dos sistemas. Ele obriga a escola, o plano de saúde, a empresa, a verem não um código (CID) ou um rótulo (TDAH), mas uma pessoa complexa, com uma história, com desafios e com potências.

Conclusão: Construindo uma Comunidade de Escuta

A superação dos limites disciplinares e da fragmentação do cuidado não virá de uma nova tecnologia ou de um protocolo milagroso. Ela exige, como conclui o curso, a criação de uma comunidade de profissionais de escuta. Um grupo que tenha a humildade de reconhecer os limites do próprio saber e a generosidade de se abrir à linguagem do outro, mantendo sempre o bem-estar do sujeito como seu norte.

Nesta comunidade, o papel da psicanálise é menos o de oferecer respostas e mais o de garantir que a pergunta mais importante nunca seja esquecida. Em meio a mapas cerebrais, testes de performance e relatórios pedagógicos, a voz do psicanalista se levanta para perguntar: “Mas, afinal, quem é esse sujeito? E o que, com tudo isso, ele está tentando nos dizer?”. Sustentar essa pergunta é a contribuição mais essencial para transformar uma coleção de especialistas em uma verdadeira orquestra de cuidado.

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