O Contrabandista e o Formulário: A Subversão Psicanalítica das Ferramentas de Avaliação no TDAH

No cenário da saúde mental do século XXI, o consultório, outrora um “território sagrado de encontro genuíno”, corre o risco de se tornar refém de uma “lógica da empresa”. Pressionados por sistemas que exigem diagnósticos rápidos e resultados mensuráveis, os profissionais se veem imersos em uma crescente “burocratização da clínica”. Escalas, questionários e protocolos padronizados, criados em nome da objetividade científica, ameaçam transformar a complexidade da alma humana em dados quantificáveis, e o sujeito do sofrimento em um objeto a ser medido. É neste contexto que a psicanálise propõe sua mais contundente subversão: a de transformar as próprias ferramentas do sistema em instrumentos para a sua superação.

Este artigo propõe-se a explorar esta subversão, detalhando como a abordagem psicanalítica ressignifica o uso dos instrumentos de avaliação no contexto do TDAH. Primeiramente, analisaremos a transformação das escalas e questionários de meros medidores em “provocadores de discurso”. Em seguida, mergulharemos na crítica à “clínica kafkiana”, definindo o papel ético do profissional como um “contrabandista da subjetividade”. Reinterpretaremos a agitação corporal não como um déficit, mas como uma “protolinguagem” à espera de tradução. Por fim, integraremos a perspectiva desenvolvimentista do “handicap situacional”, defendendo uma prática que una rigor científico e flexibilidade terapêutica para preservar o que há de mais essencial: o encontro humano onde uma palavra possa ser verdadeiramente dita e escutada.

1. A Subversão do Olhar: De Instrumentos de Medição a Provocadores de Discurso

A abordagem tradicional utiliza instrumentos como escalas e questionários para um fim específico: medir a frequência e a intensidade dos sintomas para chegar a um escore que confirme ou descarte um diagnóstico. A lógica é a da quantificação. A psicanálise não descarta necessariamente esses instrumentos, mas subverte radicalmente o seu uso.

A proposta é transformar essas ferramentas de meros instrumentos de medição em provocadores de discurso. O foco se desloca do resultado final (o escore) para o processo de responder. A habilidade clínica não está em somar os pontos, mas em ler nas entrelinhas da avaliação.

  • Diante de uma pergunta sobre desatenção, o paciente hesita? Suspira? Fica irritado?
  • Ao responder sobre impulsividade, ele conta uma história que exemplifica, mas que também revela uma profunda dor ou vergonha?
  • Quais perguntas do questionário são respondidas rapidamente e quais geram um silêncio pensativo?

Nesta perspectiva, o que escapa ao padrão torna-se o dado mais revelador do sofrimento singular. O questionário deixa de ser um fim em si mesmo para se tornar um pretexto, um ponto de partida para uma conversa mais profunda. O objetivo da avaliação, portanto, muda: não é a produção de um “laudo técnico que objetifica o sujeito”, mas a construção conjunta de uma “cartografia viva do sofrimento”, uma narrativa dinâmica que começa a dar sentido à experiência caótica do paciente.

2. A Clínica Kafkiana e o Contrabandista da Subjetividade

O curso utiliza a poderosa metáfora de um “processo kafkiano” para descrever o perigo da avaliação psicopatológica quando ela se transforma em um sistema burocrático e desumanizante. Como no romance “O Processo” de Kafka, o sujeito pode se ver perdido em um labirinto de formulários, prontuários e laudos, avaliado por especialistas que ele mal conhece, sendo reduzido a um número, a um código, a um “caso”. Nesta “realidade clínica cotidiana”, a burocracia da saúde mental ameaça devorar a própria essência do encontro terapêutico.

Diante deste sistema, a psicanálise exige do profissional uma postura ética de resistência, descrita pela imagem fascinante do “contrabandista da subjetividade”. Se o sistema exige a linguagem dos formulários, dos escores, dos dados “objetivos”, o trabalho do clínico é o de “contrabandear” para dentro dessa linguagem burocrática a história, a dúvida, a angústia e a singularidade do sujeito.

Na prática, isso se materializa na forma como elaboramos nossos laudos e fichas evolutivas. Em vez de um relatório seco e técnico, o clínico-contrabandista produz um “testemunho narrativo”. Ele pode até incluir os dados quantitativos exigidos pelo sistema, mas fará questão de adicionar um parágrafo que narre a história por trás dos números, que descreva a qualidade do sofrimento do paciente, que levante as hipóteses sobre a função do sintoma. É um ato político que busca inscrever a vida na linguagem que tende a matá-la, garantindo que a singularidade do sujeito não seja apagada pela pressão por respostas rápidas e padronizadas.

3. A Conquista do Corpo Falante: Lendo a Agitação como Protolinguagem

A subversão psicanalítica se estende à própria compreensão do sintoma central da agitação. A clínica tradicional a vê como uma falha, um déficit de controle inibitório. A perspectiva psicanalítica contemporânea, por sua vez, revoluciona essa leitura ao reconhecer a agitação corporal como uma “protolinguagem corporal”.

Trata-se de uma forma legítima e primária de comunicação, que emerge quando a experiência de sofrimento é tão intensa ou tão primordial que a verbalização ainda não está disponível. O corpo, então, “fala” o que a boca não consegue dizer. A agitação não é ausência de sentido; é um excesso de sentido que ainda não encontrou seu canal simbólico.

O trabalho terapêutico, a partir desta compreensão, se define como uma “clínica da tradução”. O objetivo último é a “conquista do corpo falante”: uma metamorfose de um corpo dominado pelo “gozo mudo” — uma energia bruta, não simbolizada e repetitiva — em um corpo atravessado pela linguagem e pelo desejo. A intervenção psicanalítica (a escuta, a interpretação, o brincar) funciona como o catalisador que permite que o sofrimento seja, finalmente, nomeado e narrativizado. É o processo de ajudar o sujeito a construir uma história para sua dor, para que ele não precise mais atuá-la incessantemente com o corpo.

4. O Handicap Situacional: Uma Perspectiva Desenvolvimentista e Integrada

Para evitar uma visão puramente intrapsíquica, o curso nos apresenta a abordagem francesa integrativa de Manuel Bouvard, que oferece um contraponto sofisticado e essencial. Esta perspectiva vê o TDAH como um processo dinâmico e contínuo, cujos sintomas evoluem e se transformam ao longo da vida (da hiperatividade motora infantil para a inquietude mental adulta).

A contribuição mais significativa desta abordagem é o conceito de “Handicap Situational” (Desvantagem Situacional). Este conceito opera um deslocamento crucial: a “deficiência” não está localizada apenas na pessoa, mas na interação entre a sua condição neurobiológica e os ambientes inflexíveis. Uma pessoa com TDAH pode não ter nenhuma “desvantagem” em um ambiente criativo, dinâmico e que valorize a multitarefa, mas pode ter um “handicap” severo em um escritório burocrático que exija oito horas de trabalho repetitivo e silencioso.

Esta visão tem duas consequências práticas imensas:

  1. Transforma o TDAH em uma questão de saúde pública: A responsabilidade pela adaptação se torna social. Devemos nos perguntar como nossas escolas, empresas e estruturas sociais podem se tornar menos “inflexíveis” e mais acolhedoras à neurodiversidade.
  2. Exige uma prática multidisciplinar integrada: É o antídoto definitivo à fragmentação do cuidado. Compreender a mente inquieta exige o rigor científico do neurologista e do psiquiatra, a flexibilidade terapêutica do psicólogo e do psicanalista, e a criatividade adaptativa do pedagogo. O clínico precisa aprender a trabalhar com “duas mãos”: a da ciência e a da singularidade.

Conclusão: Preservando o Encontro Humano Contra a Violência da Burocracia

A reflexão sobre as ferramentas de avaliação nos leva ao coração do dilema ético da clínica contemporânea. Vivemos uma era que, em nome da ciência e da eficiência, corre o risco de cometer uma violência inerente contra o sujeito: a de substituir o diálogo humano pelo preenchimento mecânico de formulários.

A subversão proposta pela psicanálise não é uma recusa das ferramentas ou do rigor, mas uma insistência apaixonada na primazia do encontro. É a defesa de que a verdadeira avaliação emerge da habilidade de ler nas entrelinhas, de valorizar o que escapa ao padrão, de escutar o silêncio que grita. É a aposta de que o trabalho do clínico-artesão, do contrabandista da subjetividade, é mais necessário do que nunca. Nossa missão, como cuidadores da alma humana, é garantir que, em meio à crescente burocratização do cuidado, sempre haja um espaço — um consultório, uma sala de aula, uma conversa — onde a palavra possa ser verdadeiramente dita, onde uma história possa ser verdadeiramente escutada, e onde um sujeito, em toda a sua complexidade, possa ser verdadeiramente visto.

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