Vivemos tempos paradoxais. Herdamos de séculos de crítica filosófica o silêncio de um Deus que parece ter-se retirado da cena do mundo, mas não herdamos a paz que esse silêncio poderia prometer. Pelo contrário, uma nova e difusa angústia, um mal-estar característico da alma do século XXI, instalou-se em nós. Estamos em uma era de “céus vazios e novas, e por vezes selvagens, idolatrias”. É neste cenário de bússolas quebradas e de uma incessante busca por amparo que a encruzilhada entre a psicanálise e a religião se revela não como um tema superado, mas como o epicentro de nossos mais profundos dilemas existenciais.
O curso “Psicanálise e Religião” propõe uma jornada audaciosa a este território. Longe de repetir os embates históricos ou de se prender aos traumas e preconceitos de Freud, forjados no seio de uma era vitoriana opressora, esta é uma travessia concebida para o nosso tempo. É um convite para um diálogo sem preconceitos, que reconhece que a psicanálise, mesmo em sua herança cética, não pode mais se furtar a interrogar a persistência da fé, a metamorfose dos deuses e a incrível necessidade humana de acreditar. Este artigo busca traçar o mapa desta jornada, diagnosticando nosso vazio contemporâneo, identificando os novos mestres que o ocuparam, explorando a arqueologia psicanalítica da crença e, por fim, apontando para novos horizontes de cuidado, onde a escuta do divã pode nos ajudar a compreender os anseios que outrora se dirigiam ao altar.
1. O Diagnóstico do Vazio: O Cataclismo Psíquico da Modernidade
Para compreender a busca religiosa contemporânea, é preciso primeiro diagnosticar o vazio do qual ela emerge. A “morte de Deus” e o “declínio da função do Pai”, conceitos que marcaram a modernidade, não foram eventos meramente filosóficos. Foram, como aponta o curso, cataclismos psíquicos que abalaram as fundações da subjetividade ocidental.
- As Bússolas Quebradas: A perda das grandes narrativas de salvação – religiosas, políticas, científicas – nos deixou órfãos em um mundo sem uma herança clara. As grandes promessas que davam um sentido e uma direção à vida se dissolveram, gerando uma “melancolia difusa”, uma sensação de despropósito que permeia nossa cultura. A crise na transmissão da Lei, antes ancorada em uma autoridade transcendente, nos deixou com a difícil tarefa de legislar sobre nós mesmos, muitas vezes sem as ferramentas para tal.
- O Horror ao Vácuo: A psique, assim como a natureza, tem horror ao vácuo. O silêncio deixado pela retirada do Deus transcendente não permaneceu vazio por muito tempo. Ele criou um trono vago que foi rapidamente ocupado por novas divindades, tão ou mais ferozes e exigentes que as antigas.
2. O Trono Vazio e os Novos Deuses Ferozes: Nossas Religiões Seculares
A angústia do vazio nos levou a buscar novos altares e a nos devotarmos a novas religiões seculares, cada uma com seus próprios dogmas, rituais e promessas de salvação. O curso identifica três grandes divindades que hoje governam a alma contemporânea:
- O Mercado: Com seus templos de consumo, seus rituais de compra e a promessa de felicidade através da aquisição de objetos. Seu dogma é o da satisfação imediata, gerando um ciclo infinito de desejo e frustração.
- A Performance: Talvez a mais tirânica das novas religiões. Seu dogma é a meritocracia, a crença de que nosso valor é medido por nossa produtividade, nosso sucesso, nossa otimização. Seus rituais são a busca incessante por eficiência, a autoajuda compulsiva e a exposição performática nas redes sociais. Seu mandamento, um “gozo ilimitado”, nos deixa exaustos e sem um senso de gravidade.
- A Tecnologia: A grande provedora de onisciência (Google), onipresença (redes sociais) e onipotência (a capacidade de criar mundos virtuais). Ela promete conexão total, mas, como aponta a provocação de Sherry Turkle, nos entrega uma nova forma de solidão, onde estamos “juntos, enquanto estamos sós”.
O hiperindividualismo, que prometia a realeza do “eu”, acabou por nos entregar a solidão e a impotência diante dessas forças avassaladoras. O sofrimento gerado por esses novos mestres – a ansiedade da performance, a vacuidade do consumo, a solidão da conexão virtual – é o principal sintoma que chega hoje aos nossos consultórios.
3. A Arqueologia da Alma Crente: A Psicanálise Diante da Estrutura da Fé
Diante deste cenário, a alma humana não se cala. Ela busca, anseia e acredita. A psicanálise do século XXI, superando a visão freudiana da religião como mera neurose, se volta para a própria estrutura da crença. A pergunta não é mais “se” a crença é verdadeira, mas “por que” a “incrível necessidade de acreditar” é um componente tão fundamental da psique humana.
- A Experiência Mística: A abordagem psicanalítica contemporânea ousa olhar para a experiência mística não como um delírio psicótico, mas como um encontro com um “gozo radical que desafia a linguagem”. É uma experiência do “Real”, no sentido lacaniano, que transcende a ordem simbólica e que pode ser tanto aniquiladora quanto profundamente transformadora. A psicanálise busca oferecer uma linguagem para tentar circunscrever essa experiência que, por definição, escapa às palavras.
- A Arqueologia da Psique: Realizamos uma “arqueologia da nossa própria psique” para descobrir como, mesmo nos sujeitos mais seculares, as estruturas mentais ainda são profundamente moldadas por uma matriz judaico-cristã. A trilogia culpa, lei e palavra continua a ressoar em nosso funcionamento. O “Supereu cruel”, essa voz interna que nos acusa e nos pune, é frequentemente o “fantasma de uma moralidade religiosa” internalizada que precisa ser ressignificada. A própria ética da psicanálise, baseada na força da palavra, na promessa do sigilo e no valor do testemunho, reencontra, de forma secular, raízes profundas nesta tradição.
4. Horizontes de Cuidado: Diálogos, Fronteiras e a Reivenção do Sagrado
A psicanálise, contudo, não vive isolada. Uma jornada intelectual honesta exige que ela se coloque em uma conversa crítica com a filosofia, a sociologia e a teologia. Este diálogo abre novos horizontes para uma ética de cuidado.
- A Ressonância e o Sagrado Secular: O curso busca em conceitos como o de “ressonância” (Hartmut Rosa) uma “análise secular para o sagrado”. A busca por Deus ou pela fé pode ser relida como a busca humana fundamental por uma relação de “ressonância” com o mundo, uma experiência de conexão viva e significativa, em oposição a uma relação “muda” e alienada. A crise da religião é, em grande parte, uma crise de ressonância.
- A Verdade como Relação: A psicanálise, em diálogo com outras ontologias, desafia o individualismo ocidental ao pensar a “verdade como relação”. A verdade de um sujeito não está trancada dentro de si, mas emerge no encontro, no laço com o outro. Esta visão tem implicações profundas para a clínica, transformando-a de uma busca solitária pela introspecção em um trabalho de construção de vínculos onde uma nova verdade possa nascer.
Conclusão: Ferramentas para Navegar o Mar Aberto
Esta travessia pela encruzilhada da psicanálise e da religião não oferece respostas prontas, mas algo muito mais valioso: ferramentas para que cada um possa construir suas próprias perguntas de forma mais inteligente e corajosa. O método, como afirma o curso, é o de se deixar afetar, de colocar o próprio pensamento em movimento.
A metáfora final, inspirada em Fernando Pessoa — “Navegar é preciso, viver não é preciso” —, encapsula perfeitamente o espírito desta jornada. Em uma era de incertezas, não há portos seguros ou manuais de “como viver”. A vida se tornou um mar aberto. A tarefa da psicanálise não é nos oferecer um destino, mas sim nos equipar para a navegação: afiar nossas ferramentas de questionamento, fortalecer nossa capacidade de suportar a dúvida e nos dar a coragem de nos lançarmos à travessia. É na intersecção entre o divã e o altar, entre a dúvida e a fé, que podemos encontrar não uma nova religião, mas uma compreensão mais profunda e compassiva do que significa ser humano neste complexo e fascinante século XXI.