Após diagnosticar a mutação do sofrimento contemporâneo – da culpa pela transgressão à vergonha pela insuficiência – e a depressão como a melancolia de um mundo que perdeu suas promessas, nossa travessia psicanalítica nos conduz agora às causas estruturais deste cenário. Se nos sentimos à deriva, como uma “sociedade sem bússola”, é preciso investigar o que aconteceu com o farol que antes nos guiava. Os capítulos 3 e 4 do primeiro módulo do curso “Psicanálise e Religião” realizam esta genealogia, apontando para dois fenômenos interligados e de consequências avassaladoras: o “declínio do Pai” e a “crise na transmissão”.
Este artigo propõe-se a aprofundar esta análise. Primeiramente, exploraremos, a partir da perspectiva arquetípica de Luigi Zoja, o Pai não como uma figura familiar, mas como uma função simbólica universal cuja erosão gera uma “crise de iniciação” e uma “adolescência perpétua”. Em seguida, com Jean-Pierre Lebrun, investigaremos como este colapso estrutural leva a uma crise na transmissão, substituindo a verticalidade da herança pela horizontalidade dos pares e produzindo um novo sujeito de identidade fluida e “palavra sem gravidade”. Por fim, definiremos o papel da psicanálise neste contexto: não como uma lamentação nostálgica, mas como um dos últimos espaços de resistência onde a herança interrompida pode ser transformada em autoria singular.
1. O Trono Vazio: O Declínio do Pai como Arquétipo Simbólico
A análise de Luigi Zoja nos convida a pensar o “Pai” para além da figura parental. Trata-se de uma função simbólica universal, um arquétipo que, ao longo da história da civilização ocidental, representou a Lei, o Limite, a Ordem e, crucialmente, a transmissão de uma herança cultural. A função paterna é a ponte que conecta o indivíduo à coletividade e ao futuro, o princípio de orientação vertical que ancora a realidade e dá contorno ao caos das pulsões.
O que assistimos na modernidade tardia é o destronamento desta função. A crítica justa e necessária ao patriarcado – a distorção histórica e opressiva da função paterna – teve, como efeito colateral indesejado, a rejeição da própria função simbólica do limite. Ao demolirmos a estátua do tirano, ficamos sem o pedestal que sustentava a ordem. As consequências deste “trono vazio” são profundas:
- A Crise de Iniciação e o Puer Aeternus: Sem ritos de passagem claros e sem figuras que encarnem a Lei de forma consistente, a sociedade perde sua capacidade de iniciar os jovens na vida adulta. O resultado é a emergência do puer aeternus, a “criança eterna”. Vivemos em uma cultura de adolescência perpétua, onde indivíduos cronologicamente adultos apresentam imensa dificuldade em assumir responsabilidades, em se comprometer com projetos de longo prazo e em suportar as frustrações inerentes à realidade. A cultura que estica a juventude, mantendo filhos de 30 ou 40 anos sob a dependência parental, é um sintoma gritante desta crise.
- A Nostalgia do Limite: Esta ausência de um princípio estruturante gera uma nostalgia paradoxal. A busca reativa por figuras autoritárias na política, ou a submissão a dogmas fundamentalistas, podem ser lidas como um desejo desesperado pela restauração de uma função de amparo e orientação que se perdeu. O desafio, como aponta Zoja, não é um retorno reacionário ao patriarcado, mas a tarefa criativa e urgente de reinventar a função paterna, resgatando o ideal do “gesto de Heitor”: uma paternidade que combina a Lei com o amor, e a responsabilidade com o sacrifício pelo futuro.
2. O Fio Partido: A Crise na Transmissão em um Mundo Horizontal
O declínio da função paterna leva diretamente à sua consequência mais visível: a “crise na transmissão”. O psicanalista Jean-Pierre Lebrun argumenta que o cerne do problema não é a ausência de figuras de poder, mas a erosão da autoridade simbólica.
- Da Verticalidade à Horizontalidade: A estrutura social, antes vertical e piramidal, que garantia uma transmissão quase natural de valores e saberes entre as gerações (dos mais velhos para os mais novos, do mestre para o aprendiz), foi substituída por uma horizontalidade de pares. Hoje, a palavra de um especialista compete, em pé de igualdade, com a de um influenciador digital; a orientação de um pai, com a de um colega da mesma idade. A palavra do Outro perdeu seu peso, sua capacidade de funcionar como uma âncora para a verdade.
- A Recusa da Dívida Simbólica: Nesta nova lógica horizontal, a ideia de uma “dívida simbólica” com o passado – com a tradição, com a herança, com o conhecimento acumulado pelos que vieram antes – torna-se insuportável. Ela é rejeitada em favor de uma fantasia de autogeração, de um presente perpétuo onde cada um é seu próprio ponto de referência. O desaparecimento de rituais como o almoço de domingo em família, mencionado no curso, é um microexemplo dessa “amnésia cultural” que nos condena a reinventar a roda a cada geração.
3. O Novo Sujeito e a Palavra Sem Gravidade
Este novo contexto produz um novo tipo de sujeito, com características e sofrimentos específicos.
- A Identidade Fluida e Precária: Sem a inscrição em uma história que o preceda e sem a âncora de uma Lei simbólica, o novo sujeito forja uma identidade mais fluida, líquida e precária. Sua constituição não se dá mais pela internalização de valores sólidos, mas pela validação imediata do olhar do outro. O que importa não é “quem eu sou”, mas “como eu pareço ser” aos olhos dos meus pares, especialmente nas redes sociais.
- A Palavra Sem Peso: A consequência mais grave desta nova ordem é a emergência de uma “palavra sem gravidade”. A palavra se torna leve, descartável, desvinculada de um pacto ou de uma promessa. Em uma cultura da performance e da imagem, o que se diz hoje pode ser negado amanhã sem grandes consequências. Esta inflação da palavra corrói a base de toda a vida social: a confiança. Ela compromete a estabilidade dos laços afetivos, profissionais e políticos, gerando um mundo de relações duais e narcísicas, marcado por uma polarização intratável.
4. A Psicanálise como Espaço de Resistência e Herança
Diante deste cenário de colapso simbólico, qual é o papel da psicanálise? Ela surge, como propõe o curso, como um dos últimos espaços de resistência e de possibilidade de herança.
O próprio setting analítico, com sua assimetria fundamental – um que fala (o analisando) e um que escuta de um lugar diferenciado (o analista) –, já é um ato de resistência contra a horizontalidade generalizada. É um espaço que, por sua própria estrutura, recria as condições para que uma transmissão simbólica possa ocorrer.
O trabalho clínico se torna uma tarefa de reapropriação da história. O analista, ao escutar os fragmentos da vida do sujeito, ajuda-o a tecer uma narrativa, a encontrar os fios da herança interrompida e a conectá-los de uma forma nova. A análise não visa impor uma nova lei, mas permitir que o sujeito, ao elaborar sua relação com a falta de lei, possa se tornar o autor de sua própria lei, de seu próprio desejo singular. É a transformação da orfandade em autoria.
Conclusão: Reinventar a Paternidade, Reconstruir a Transmissão
O diagnóstico apresentado nos capítulos 3 e 4 é profundo e, por vezes, assustador. Ele nos revela como uma sociedade de órfãos, sofrendo de uma crise crônica de transmissão, gerada pelo colapso da função paterna simbólica. Os sintomas que vemos em nossos consultórios e salas de aula — a desorientação, a dificuldade de compromisso, a impulsividade, a identidade frágil — são as consequências diretas deste cataclismo cultural.
A via de saída, no entanto, não é um retorno reacionário a um patriarcado opressor, mas a tarefa criativa e urgente de reinventar a função paterna e de reconstruir a transmissão para o nosso tempo. Para todos nós — pais, educadores, terapeutas —, o desafio é o de nos tornarmos referências que ofereçam não dogmas, mas diálogos; não controle, mas continência; não uma herança que aprisione, mas uma que sirva de base para que as novas gerações possam construir seus próprios e singulares futuros. É a aposta de que, mesmo em um mundo sem garantias, a presença de um Outro que sustenta uma palavra com “gravidade” ainda é a condição fundamental para que uma vida com sentido possa florescer.