Os Novos Deuses e a Tirania do Gozo: Uma Análise Psicanalítica do Sofrimento na Era da Performance

Após diagnosticar o mal-estar contemporâneo como o de uma “sociedade de órfãos”, à deriva em um vazio deixado pelo declínio das grandes narrativas de amparo, a travessia psicanalítica nos conduz agora a uma análise dos herdeiros que ocuparam este trono vago. O segundo módulo do curso “Psicanálise e Religião” realiza uma autópsia das “religiões seculares” que hoje estruturam nossa experiência, moldam nossos desejos e, crucialmente, produzem novas e mais sofisticadas formas de sofrimento. A tese central é a de que o vácuo simbólico não foi preenchido pela liberdade, mas por novos deuses — o Mercado, a Performance, o Bem-Estar — que, sob a promessa de salvação através do sucesso e da otimização, impõem um tirânico “imperativo do gozo” que nos condena à exaustão, à solidão e a uma busca incessante por uma perfeição que gera mais ansiedade do que paz.

Este artigo propõe-se a desdobrar esta análise em quatro momentos, seguindo a lógica dos capítulos do módulo. Primeiramente, investigaremos o Capitalismo como a nova religião universal, com seu dogma da meritocracia e seu “crime perfeito”. Em seguida, analisaremos a subjetividade que esta religião produz: o “sujeito sem gravidade”, condenado a flutuar sob o mandamento do gozo. Aprofundaremos as consequências sociais desta nova ordem, explorando o hiperindividualismo e a angústia na sociedade do desempenho. Por fim, faremos a crítica da “falsa salvação” oferecida pela indústria do bem-estar, contrapondo sua “tirania da perfeição” à ética psicanalítica de uma “vida suficientemente boa”.

1. O Capitalismo como Religião: A Teologia do Mercado e o Sujeito Endividado

O primeiro e mais poderoso dos novos deuses é o Mercado. A análise o revela não como um mero sistema econômico, mas como uma religião secular totalizante, com uma estrutura teológica completa e oculta.

  • A Divindade e seus Dogmas: O deus é o Mercado, uma entidade impessoal e onipotente. Seu principal dogma é a meritocracia, a crença de que o sucesso ou o fracasso são fruto exclusivo do mérito e do esforço individuais.
  • Rituais e Teologia: Seus rituais são o consumo diário e frenético. Sua teologia fundamental é a da dívida. Diferente do capitalismo inicial, que operava na lógica do pecado para depois vender a redenção, o neoliberalismo nos posiciona como sujeitos perpetuamente endividados: em dívida com o banco, em dívida com nossa performance, em dívida com nosso potencial não realizado.
  • O Crime Perfeito: O “crime perfeito” desta religião reside em sua capacidade de produzir sofrimento sistêmico (exaustão, precariedade, ansiedade) e, simultaneamente, individualizar a culpa. Através do dogma da meritocracia, o sistema convence a vítima de sua lógica violenta de que ela é a única culpada por sua própria dor. O fracasso não é um problema do sistema, mas um demérito pessoal, uma falha em sua fé e devoção ao deus Mercado.

2. O Sujeito Sem Gravidade e o Mandamento do Gozo

Esta nova ordem religiosa produz um novo tipo de sujeito. Com o colapso da Lei simbólica do Pai, que funcionava como uma “âncora” que dava peso e orientação à existência, emerge o “sujeito sem gravidade”.

  • A Perda da Órbita: Sem a estrutura de proibição e de herança que o ancorava, este novo sujeito flutua em um universo de possibilidades aparentemente ilimitadas. Esta ausência de limites, contudo, não se traduz em liberdade, mas em uma nova e vertiginosa forma de angústia.
  • O Novo Mandamento: A antiga lei, que operava pela interdição (“Não deves”), foi substituída por um novo e muito mais tirânico mandamento: “Deves gozar!”. O “gozo”, aqui, no sentido lacaniano, é um prazer que vai para além do princípio do prazer, um excesso, uma busca incessante por uma satisfação que, por definição, nunca se completa. O sujeito é ordenado a experimentar tudo, a não perder nada, a otimizar cada momento.
  • A Liberdade como Prisão: O resultado é um paradoxo cruel. A suposta liberdade de um mundo sem limites se transforma em uma nova forma de prisão, onde o sujeito é condenado a uma busca exaustiva por uma satisfação que sempre escapa. A busca pelo prazer se torna a principal fonte de angústia, alimentando as patologias do excesso: os vícios, as compulsões e uma crônica sensação de vazio.

3. A Ilha de Cada Um: Hiperindividualismo e a Angústia do Desempenho

A análise de pensadores como Paul Verhaeghe aprofunda as consequências sociais desta nova subjetividade. O mal-estar contemporâneo nasce da hegemonia da narrativa meritocrática, que fomenta um hiperindividualismo exacerbado.

  • O Mito da Meritocracia: Esta ideologia apaga completamente as determinações sociais, econômicas e históricas, postulando que cada sujeito é uma “ilha”, o único arquiteto e responsável por seu destino. Ela desconstrói o laço social em favor de uma “competição doentia” de todos contra todos.
  • As Consequências do Isolamento: Esta atomização social produz os dois afetos paradigmáticos do nosso tempo:
    1. Solidão: A perda dos laços coletivos e das redes de amparo nos deixa radicalmente sós em nosso sofrimento.
    2. Impotência: O indivíduo isolado se sente esmagadoramente impotente diante das forças sistêmicas (econômicas, políticas) que, na verdade, determinam grande parte de sua vida.
  • A Psicologização da Dor: O resultado final é a psicologização de problemas sociais. A angústia gerada pela precariedade do trabalho não é vista como um problema político, mas como um “transtorno de ansiedade” individual. O sofrimento é privatizado e, frequentemente, medicalizado.

4. A Falsa Salvação: A Tirania do Bem-Estar e a Ética da Imperfeição

Em resposta a essa angústia, surge a mais sutil das religiões seculares: a cultura do bem-estar. A análise de Adam Phillips a desvela como uma nova fé que, sob a aparência de cuidado, perpetua a mesma lógica que nos adoece.

  • A Tirania da Perfeição: A indústria da autoajuda e do bem-estar herda os ideais de pureza e perfeição da tradição religiosa, mas os vende como um produto de mercado. A busca por um “eu perfeitamente equilibrado, sem conflitos, otimizado e limpo de toda a negatividade” funciona como um novo e sutil “supereu cruel”.
  • A Ansiedade como Efeito: Esta busca exaustiva pela perfeição, esta “tirania da completude”, em vez de paz, gera mais ansiedade, pois nos confronta a todo momento com nossa inevitável e humana imperfeição.
  • A Alternativa Psicanalítica: A “Vida Suficientemente Boa”: Em contraponto radical, a psicanálise não oferece um novo ideal de perfeição. Pelo contrário, ela reivindica o direito à imperfeição e à ambivalência. Inspirada em Winnicott, a proposta é a de uma ética mais modesta e libertadora: a busca por uma “vida suficientemente boa”. Trata-se de abandonar a busca pela completude e aprender a viver de forma compassiva e real com nossas falhas, nossos conflitos e nossos limites.

Conclusão: Reinventando o Coletivo, Reivindicando a Imperfeição

O diagnóstico apresentado neste segundo módulo é um retrato contundente da paisagem psíquica do nosso tempo. Somos sujeitos endividados a um mercado que nos exige sacrifícios, flutuando sem gravidade sob o comando de um gozo que nunca satisfaz, isolados em ilhas de competição e buscando a salvação em uma perfeição que só gera mais ansiedade. A via psicanalítica, diante disso, se apresenta como um espaço de resistência.

A superação deste novo mal-estar exige um duplo movimento. Primeiro, um movimento político e social de reinvenção do coletivo, de reconstrução dos laços e de crítica à ideologia meritocrática que nos isola. Segundo, um movimento ético e pessoal de reivindicação da nossa imperfeição, de abandonar a busca exaustiva pela otimização em favor da coragem de viver uma vida “suficientemente boa”. É neste delicado equilíbrio entre a crítica social e a transformação subjetiva que reside a possibilidade de encontrar, mesmo em um mundo sem garantias, uma forma mais livre e menos atormentada de existir.

Deixe um comentário