Após diagnosticar o mal-estar de uma sociedade de órfãos e desmascarar os novos deuses seculares que se alimentam de nossa performance, a travessia do curso “Psicanálise e Religião” nos conduz ao seu coração teórico. O terceiro módulo, “A estrutura da crença e a experiência do sagrado”, representa o “filé mignon” da proposta, o momento em que a psicanálise se afasta da crítica externa para oferecer suas ferramentas mais refinadas para a análise do fenômeno religioso em si. A abordagem aqui se torna mais complexa e mais potente: não se trata mais de crer ou não crer, mas de investigar a gramática inconsciente que sustenta qualquer sistema de sentido.
Este artigo propõe-se a mapear este território conceitual, seguindo a lógica dos quatro capítulos do módulo. Primeiramente, com Christian Dunker, estabeleceremos a psicanálise como uma analista da estrutura de qualquer discurso. Em seguida, com Néstor Braunstein, mergulharemos na complexa distinção lacaniana entre os regimes de gozo para oferecer uma leitura não patologizante da experiência mística. Com Christopher Bollas, diagnosticaremos a “perplexidade” como o afeto central de uma era sem mapas e a “composição” como a nova tarefa da clínica. E, por fim, com Julia Kristeva, realizaremos uma arqueologia da psique para descobrir a “incrível necessidade de crer” como uma pulsão antropológica fundamental que, mesmo na descrença, não desaparece, mas migra.
1. A Psicanálise como Raio-X dos Discursos: O Método de Christian Dunker
O primeiro passo para uma análise sofisticada é a mudança de posição da própria psicanálise. Ela deixa de ser uma debatedora no campo da fé para se tornar a analista da estrutura de qualquer crença. Inspirado na teoria dos discursos de Jacques Lacan, Christian Dunker nos oferece um método crítico para decifrar como qualquer sistema de crenças – seja ele religioso, político, científico ou de autoajuda – opera.
Todo “discurso mestre” funciona a partir de uma lógica que posiciona o sujeito, define a verdade e organiza o gozo (a satisfação pulsional). O sujeito, para ter uma identidade, precisa se “alienar” a um desses discursos, adotando sua linguagem e suas regras. No entanto, há sempre um resto, um mal-estar, algo no sujeito que não se encaixa perfeitamente na lógica do mestre. É neste ponto que emerge o sintoma.
Nesta perspectiva, o sintoma não é uma falha ou um defeito, mas uma “crítica social encarnada”. É o protesto do sujeito, em seu corpo e em seu sofrimento, contra as contradições do discurso no qual ele está alienado. A tarefa da psicanálise, portanto, não é “corrigir” o sujeito para que ele se adapte melhor ao discurso mestre, mas sim escutar a verdade que seu sintoma revela sobre as falhas do próprio discurso. É uma clínica que se torna política e ética, um espaço para o “bem-dizer”, para a invenção de um lugar singular a partir do qual o sujeito possa responder às imposições do mestre.
2. A Experiência do Excesso: O Gozo do Outro e a Leitura da Mística com Néstor Braunstein
Se a busca pelo sagrado persiste, é porque ela promete uma forma de satisfação que a vida cotidiana parece negar. A psicanálise lacaniana, com Néstor Braunstein, nos oferece ferramentas para pensar a natureza dessa satisfação, através da distinção entre dois regimes de gozo:
- O Gozo Fálico: É o gozo limitado, localizado, regulado pela lei simbólica e ligado à lógica do “ter”. É o prazer do consumo, da performance, do sucesso, da conquista. É o gozo que pode ser contado, medido e que, em última instância, sempre deixa um resto de insatisfação. Nossa sociedade secular é, predominantemente, a sociedade do gozo fálico.
- O Gozo do Outro (ou Feminino): Não se opõe ao fálico, mas é suplementar a ele. É um gozo infinito, inefável, que escapa à simbolização e à palavra. É um excesso que, ao ser experimentado, leva à aniquilação do eu, a uma perda de si.
A experiência mística, descrita por figuras como Santa Teresa d’Ávila, é lida aqui não como uma alucinação ou psicose, mas como um encontro real com este “gozo do Outro”. É uma experiência de êxtase que está para além do princípio do prazer. A diferença crucial entre a mística e a psicose reside no tratamento simbólico que o sujeito consegue dar a este gozo avassalador. O místico, ao contrário do psicótico, consegue inventar um “parceiro sintoma” (Deus, o Amado) com quem dialogar sobre essa experiência inominável, transformando o que poderia ser uma dissolução aniquiladora em um novo laço social, em uma nova forma de amor e de saber. O apelo contemporâneo pelo sagrado, em suas mais diversas formas (do uso de psicodélicos às práticas corporais extremas), pode ser lido como uma busca por este “gozo do Outro” em uma era saturada pela monotonia do gozo fálico.
3. Navegando no Labirinto: A Perplexidade e a Criação de um Idioma Pessoal com Christopher Bollas
Se a busca pelo sagrado é movida por um desejo de excesso, qual é o afeto que define o ponto de partida dessa busca em nosso tempo? Para Christopher Bollas, não é a angústia da castração ou a culpa, mas a perplexidade.
- O Colapso das Gramáticas de Vida: A perplexidade é um estado de profunda desorientação, confusão e desamparo psíquico. Ela é o resultado do “colapso das gramáticas de vida” – as grandes narrativas (religiosas, políticas, culturais) que antes nos forneciam um “mapa” para interpretar o mundo, para dar sentido ao sofrimento e para orientar nossas ações. Em um mundo pós-moderno, sem esses mapas, ficamos perdidos em um labirinto de significantes, sem uma direção clara.
- Da Interpretação à Composição: Diante deste sujeito perplexo, a tarefa da clínica psicanalítica também se transforma. Não se trata mais apenas de interpretar um sentido oculto (pois o próprio sistema de sentidos entrou em colapso), mas de ajudar o sujeito em uma tarefa de composição. O analista, segundo Bollas, precisa ajudar a criar um ambiente seguro onde o paciente possa, a partir de suas próprias “ruínas” e fragmentos de experiência, tecer uma nova narrativa pessoal, um “idioma pessoal” que lhe sirva de “moradia” psíquica. A clínica se torna um ateliê de criação de sentido.
4. A Sede Primordial: A Incrível Necessidade de Crer com Julia Kristeva
Finalmente, chegamos à raiz antropológica da questão. Por que, mesmo em uma era de descrença e perplexidade, a busca por sentido persiste? Julia Kristeva oferece uma resposta poderosa.
- A Crença como Estrutura Antropológica: Para Kristeva, a “incrível necessidade de crer” não é uma opção ou uma consequência da cultura, mas um componente fundamental e pré-religioso da psique humana. A capacidade de acreditar é o que nos funda como seres simbólicos.
- A Origem Materna da Fé: A matriz de toda crença futura está na primeira relação de amor e confiança com a figura materna. É o crer primordial na palavra e no cuidado da mãe que abre o bebê para o universo da linguagem, da idealização e da criação de sentido. O simbólico se funda sobre este primeiro ato de fé no semiótico (a pulsão, o ritmo materno).
- A Migração da Crença: Em uma era secularizada, essa necessidade fundamental não desaparece. Ela simplesmente migra. A energia da crença, antes depositada em Deus, se desloca para outros objetos: a ciência, a revolução, a arte, o amor romântico, ou mesmo as novas religiões seculares.
- A Travessia Analítica: A psicanálise, no percurso de Kristeva, surge como um “terceiro caminho”. Não se trata de opor a descrença à crença, mas de oferecer um espaço para uma travessia entre a crença e a revolta. O objetivo é aprender a arte de “crer sem deixar de pensar”, de habitar as próprias crenças (sejam elas quais forem) de forma mais crítica, menos dogmática e mais viva.
Conclusão: Uma Clínica para a Composição do Sentido
O terceiro módulo do curso nos equipa com um sofisticado conjunto de ferramentas para ir além da superfície do fenômeno religioso. Ele nos ensina a analisar a gramática de qualquer discurso (Dunker), a compreender a busca pelo êxtase como uma sede de um gozo que excede o limite (Braunstein), a diagnosticar o desamparo de nosso tempo como uma perplexidade radical (Bollas) e a reconhecer, na raiz de tudo, uma inextirpável necessidade de crer (Kristeva). A clínica que emerge desta compreensão é uma clínica da composição. Seu objetivo não é oferecer ao sujeito uma nova crença para substituir a antiga, mas sim acompanhá-lo na difícil e criativa tarefa de tecer, a partir dos fragmentos de sua história e de seu desejo, um idioma pessoal que lhe permita nomear seu sofrimento e habitar o mundo de forma mais poética e singular.