Introdução: O Valor Perdido e a Verdade Desfeita
“Hoje em dia as pessoas sabem o preço de tudo e não sabem o valor de nada.” A crítica mordaz de Oscar Wilde à sua sociedade tornou-se a realidade literal da nossa. Em paralelo, o alerta sombrio de Hannah Arendt sobre o súdito ideal do totalitarismo – “aquele para quem a distinção entre o fato e a ficção… já não existem” – deixou de ser uma análise histórica para se tornar a descrição do nosso feed de notícias. Estas duas frases, aparentemente distantes, são os pilares que sustentam o diagnóstico do mal-estar contemporâneo. Elas apontam para um mesmo evento sísmico: o colapso da ordem simbólica que antes nos dava um senso de valor e uma realidade partilhada.
Este artigo é uma investigação sobre as consequências psíquicas desse colapso, uma jornada em dois atos que explora o que floresce no trono vazio da autoridade. Na Parte I, guiados pelo pensamento de Paul Verhaeghe, analisaremos como a autoridade simbólica foi suplantada pela lógica do mercado, transformando o valor em preço e gerando uma profunda incerteza identitária. Na Parte II, com o auxílio de Jean-Pierre Lebrun, investigaremos como o fracasso dessa mediação simbólica leva ao retorno do ódio, uma regressão a uma guerra primitiva onde a palavra cede lugar à aniquilação. Esta é uma análise da arquitetura de um mundo que nos deixou desamparados, uma tentativa de compreender a anatomia do nosso sofrimento para, como nos conclama a psicanálise, nos tornarmos agentes da simbolização, tecendo pacientemente as pontes que podem nos salvar do abismo da barbárie.
Parte I: A Autoridade debaixo da Lógica do Mercado – A Tirania da Planilha
A crise da autoridade que define nosso tempo não é simplesmente uma rebelião contra as figuras tradicionais do poder. É uma revolução mais profunda na própria estrutura do poder. Como diagnostica sistematicamente o psicanalista belga Paul Verhaeghe, o que presenciamos foi a substituição de uma autoridade simbólica, encarnada em pessoas e baseada no saber, na experiência e na confiança, por um poder gerencialista, anônimo, numérico e baseado puramente na lógica do mercado.
O mestre, o médico, o juiz – figuras que antes encarnavam uma autoridade digna de respeito – foram destronados. Em seu lugar, sentou-se um novo soberano impessoal: o algoritmo, a planilha, a métrica de eficiência. Essa lógica, nascida no mundo corporativo, invadiu todas as esferas da vida. Como vimos nos exemplos, as universidades públicas, antes templos do saber, são agora cada vez mais regidas por rankings internacionais e modelos de financiamento que as forçam a operar como empresas, onde a produção quantificável de artigos se sobrepõe à qualidade do pensamento. Nas grandes corporações, a implementação de sistemas de inteligência artificial para avaliar e até mesmo demitir funcionários representa o ápice dessa substituição, onde a complexidade do juízo humano é trocada pela suposta “objetividade” de um algoritmo.
O resultado dessa troca é uma profunda hemorragia de sentido e segurança. Ao internalizarmos essa lógica, nosso valor próprio passa a depender de nossa cotação no mercado da performance. Isso gera consequências psíquicas devastadoras:
- A Ansiedade de Desempenho Crônica: Vivemos sob o medo constante de não atingir as metas, de sermos mal avaliados e, em última instância, de nos tornarmos dispensáveis. A vida se transforma em uma competição permanente, onde o outro não é um colega, mas um concorrente, um rival a ser superado.
- A Incerteza Identitária: Se nosso valor é medido por números voláteis, quem somos nós quando as métricas caem? A identidade, antes ancorada em um saber, em uma história ou em um pertencimento, torna-se fluida e insegura, dependente da próxima avaliação.
- A Corrosão dos Laços: Em um mundo regido pela eficiência e pela utilidade, qualidades humanas que não cabem em um gráfico de desempenho – como a confiança, a lealdade, a sabedoria, o cuidado – são progressivamente desvalorizadas. Os laços sociais que não são imediatamente úteis ou lucrativos se corroem, levando a um profundo “desencantamento do mundo”.
Vivemos, portanto, o sofrimento de um sujeito que foi forçado a aprender a provar seu preço a todo instante, e que, no processo, esqueceu como saber seu próprio valor. Esta jornada de leitura é um convite a uma rebelião contra o quantificável. É uma oportunidade para diagnosticar essa lógica em nossas vidas e para nos perguntarmos o que, para nós, tem um valor que preço nenhum pode comprar. É um chamado para resgatar a dimensão humana da autoridade e do reconhecimento, antes que sejamos completamente reduzidos a um número na planilha de um poder sem rosto.
Parte II: O Retorno do Ódio – O Fracasso da Simbolização
Aquele para quem a distinção entre o fato e o fake já não existe. O alerta de Hannah Arendt sobre o século XX tornou-se a descrição literal do nosso século XXI. Vivemos imersos em uma névoa de pós-verdade, onde cada bolha fabrica sua própria realidade. Este capítulo é uma investigação sobre o veneno que brota deste solo: a intolerância, o ódio. É um convite para entender por que, quando a verdade se dissolve, o ódio se torna a única certeza disponível.
A análise de Jean-Pierre Lebrun nos oferece um diagnóstico estrutural para esta epidemia de raiva. Ele argumenta que o vírus da intolerância se espalha por causa do declínio do Outro simbólico, do grande árbitro social. A confiança na Lei, na ciência, na palavra das instituições sérias desapareceu. Sem essa instância mediadora, que antes pacificava os conflitos e garantia um terreno comum para o debate, fomos lançados de volta a um estado de guerra primitiva, onde a única lógica é a da força bruta.
Esta perda nos joga em uma perigosa regressão psíquica, em um mundo sem “terceiros”, uma guerra de espelhos. A relação com o diferente deixa de ser um diálogo para se tornar uma rivalidade mortal. O outro não é mais um semelhante com quem se pode debater, mas um duplo ameaçador que precisa ser eliminado para que possamos existir. É por isso que o debate político, como vemos na polarização violenta nos EUA ou nos linchamentos virtuais no Brasil, se tornou impossível. Não se debate com um reflexo odiado; apenas se tenta quebrá-lo.
Neste vácuo de mediação, ocorre o retorno do ódio. A agressividade, que antes era contida e canalizada (sublimada) pela cultura e pela Lei, explode em sua forma mais pura e destrutiva. O ódio contemporâneo não é uma mera discordância de ideias; é uma aversão visceral ao próprio modo de ser do outro. É uma paixão triste que busca, na aniquilação do diferente, um alívio para o seu próprio desamparo e desorientação.
Conclusão: Agentes da Simbolização
A jornada por estes dois capítulos nos apresenta um diagnóstico interligado. A lógica do mercado, que nos joga em uma competição de todos contra todos, ativamente corrói o tecido simbólico e a solidariedade necessários para a manutenção de uma realidade partilhada. A tirania da planilha (Parte I) prepara o terreno para a erupção do ódio (Parte II).
Esta leitura, contudo, não é um convite ao desespero, mas um chamado à coragem e à responsabilidade cívica. Não se trata de encontrar culpados, mas de compreender a anatomia do ódio para podermos combatê-lo, primeiro em nós mesmos e depois na sociedade. A psicanálise, neste cenário, assume uma função política crucial. Se o fracasso da simbolização é a causa da barbárie, então a tarefa mais urgente é nos tornarmos agentes da simbolização.
Isso significa, na prática, insistir na complexidade contra a simplificação, no diálogo contra a desumanização, na palavra contra a violência. Significa tecer pacientemente, com o fio frágil da palavra, as pontes de sentido que podem nos salvar do abismo. Em um mundo onde a justiça perde sua imparcialidade e a verdade se torna uma questão de opinião, a escuta analítica, com seu compromisso radical com a singularidade de cada história e sua busca incansável pela verdade do sujeito, torna-se um ato de resistência e um farol de esperança.