Introdução: O Sofrimento para Além das Palavras
À medida que adentramos as clínicas do contemporâneo, nos deparamos com uma maré crescente de sofrimentos que escapam aos nomes antigos e desafiam a escuta tradicional. Vícios digitais, sensações crônicas de vazio, desorientações que beiram o abismo e dores que não encontram palavras. O que fazer quando a narrativa do paciente é marcada pelo silêncio, pelo ato ou pela repetição de um ciclo de dependência que parece impenetrável à razão? A psicanálise, em sua constante reinvenção, nos convida a ir além das etiquetas diagnósticas e a investigar a lógica psíquica que subjaz a essas novas e desconcertantes formas de adoecimento.
Este artigo é um mergulho de cabeça nesses novos desafios. Na Parte I, exploraremos a clínica do vínculo e da ausência, investigando, com D.W. Winnicott e Christopher Bollas, como as falhas na simbolização primária dão origem a sofrimentos que ainda não encontraram palavras. Na Parte II, analisaremos as novas dependências como “soluções” trágicas para o desamparo, atualizando a máxima de Marx com as teses de Vicente Palomera sobre os destinos do gozo em nossa época. Esta é uma jornada para aprender a escutar o indizível, a encontrar a lógica na desorientação e a compreender a comunicação desesperada que se esconde onde antes parecia haver apenas o ruído do sintoma.
Parte I: O Conhecido Não Pensado – A Clínica do Vínculo e da Ausência (Capítulo 13)
“Não existe tal coisa como um bebê”. Esta frase enigmática e genial do psicanalista D.W. Winnicott é um soco em nosso ideal de individualismo e o ponto de partida para a compreensão dos distúrbios limítrofes. Winnicott nos lembra de uma verdade fundamental que nossa cultura se esforça para esquecer: ninguém se faz sozinho. Um bebê, para existir psiquicamente, depende radicalmente de um “outro” – o ambiente cuidador. Somos, desde o primeiro instante, um fruto de uma relação, moldados por uma coreografia silenciosa de braços, olhares, vozes e ausências.
- O Arquivo Pré-Verbal: O “Conhecido Não Pensado” de Bollas: Este capítulo nos convida a uma imersão profunda nesse universo pré-verbal, onde o rascunho de nossa alma foi escrito. Antes das palavras, existe uma primeira linguagem: a do toque, do ritmo, da atmosfera. É o que o psicanalista Christopher Bollas chama de “o conhecido não pensado”. Trata-se de um saber que não está na cabeça, na forma de memórias narrativas, mas que está impregnado no corpo e nos afetos. É o nosso aprendizado mais fundamental sobre a confiança e o desamparo, sobre sermos vistos ou ignorados, sobre o que é seguro e o que é aniquilador. Este afeto silencioso, respirado no ambiente de nossos primeiros vínculos, dará o tom para toda a nossa vida, regendo nossos padrões de amor, de dor e de existência.
- A Ferida no Ser: A Falha na Simbolização Primária: Mas o que acontece quando essa primeira comunicação falha? Quando o vínculo é marcado pela inconsistência, pela negligência ou pelo trauma? O resultado não é uma “memória ruim” que possa ser contada, mas uma ferida no próprio ser, uma falha na simbolização primária que deixa um sentimento crônico de vazio, irrealidade e uma ameaça constante de desintegração. Esta é a origem de muitos dos sofrimentos limítrofes (borderline) que vemos hoje, como o aumento de diagnósticos entre adolescentes. É uma dor que não pode ser contada em uma história, pois ela reside precisamente na impossibilidade de ter uma história. O sofrimento se manifesta em atos impulsivos, em relações caóticas e em um vazio devorador, não em narrativas claras.
- A Reinvenção da Escuta: O Arqueólogo de Afetos: Para alcançar as cicatrizes desse silêncio, a clínica precisa se reinventar. A escuta aqui proposta por Bollas vai para além da interpretação das palavras. Ela se atenta aos humores, às atmosferas, aos atos. O analista se torna uma espécie de arqueólogo de afetos, escutando a música por trás do ruído, o peso do silêncio, a mensagem contida em um gesto. É uma clínica que ousa entrar em contato com a dor que ainda não encontrou seu nome, oferecendo um espaço de continência onde essa experiência bruta possa, talvez pela primeira vez, começar a ser transformada em símbolo, em palavra, em história. Esta jornada de leitura é, portanto, um convite para explorar as fundações mais profundas de nossa própria casa psíquica e para ter a coragem de escutar não apenas o que já sabemos falar, mas tudo aquilo que ainda não aprendemos a dizer.
Parte II: Os Ópios Contemporâneos – A Clínica das Adições e do Gozo (Capítulo 14)
“A religião é o ópio do povo”. Se esta célebre tese de Karl Marx diagnosticava a anestesia de sua época, qual seria o nosso ópio hoje? A pergunta assombra uma civilização que, embora secularizada, nunca pareceu tão necessitada de anestésicos. Nossos novos ópios não estão mais nos altares, mas em nossos bolsos, em nossas mesas de trabalho e nos carrinhos de compra virtuais, prometendo um alívio instantâneo para uma dor que mal sabemos nomear.
- O Novo Diagnóstico: De Falta a Excesso, a Hemorragia de Gozo: A psicanálise, com Vicente Palomera, nos oferece um novo diagnóstico. O problema fundamental da nossa época não é a falta, como na era vitoriana de Freud, mas o excesso. Com o declínio das barragens da tradição e da lei (o simbólico), sofremos de uma “hemorragia de gozo”. A satisfação pulsional, sem limites para contê-la, nos inunda e nos afoga em angústia. O mundo se tornou um oceano de estímulos sem um porto seguro, e cada um de nós é um náufrago psíquico tentando não se desintegrar.
- A Adição como Solução Trágica: Neste cenário de desamparo, as dependências emergem não como uma fraqueza moral, mas como uma “solução” trágica. O dependente, longe de ser um ser sem vontade, é um inventor desesperado, construindo um dique precário contra a inundação. O circuito fechado com a droga, a tela, o trabalho ou as apostas online é uma tentativa de dar um contorno, um ritmo e um limite a um excesso que, de outra forma, seria pura aniquilação. A explosão do uso de apostas online entre jovens no Brasil ou a crise de opioides nos EUA são exemplos dramáticos dessa lógica: a busca por um circuito de gozo imediato e regulado para escapar da complexidade caótica de um mundo sem mediadores simbólicos.
- O Objeto de Adição como Parceiro Mortífero: O objeto de nossa dependência se torna, então, nosso parceiro mais fiel e, ao mesmo tempo, mais mortífero. A tela que acolhe na solidão, a substância que silencia a ansiedade, o trabalho que nos dá uma identidade – são parceiros que nunca nos abandonam, mas que exigem nossa vida em troca. É um “abraço de serpente”, uma relação de amor autossuficiente e sabotadora, que nos protege da complexidade e da frustração dos laços humanos ao custo de nos isolar completamente do mundo.
Conclusão: Da Escuta do Silêncio à Compreensão da Invenção
A jornada por estes dois capítulos nos apresenta um quadro clínico interligado. O sujeito que sofre de falhas na simbolização primária, com seu sentimento de vazio e sua vulnerabilidade à desintegração (Parte I), é o candidato ideal para buscar nas adições uma “solução” protética para se manter inteiro (Parte II). A ausência de um vínculo primário seguro predispõe à busca por um vínculo mortífero com um objeto.
A tarefa da psicanálise, diante deste cenário, é dupla e de uma imensa delicadeza. Primeiro, é preciso ter a coragem de escutar o silêncio, de acolher o vazio e de suportar as atmosferas do indizível, oferecendo um espaço onde o “conhecido não pensado” possa começar a ganhar forma. Segundo, é preciso suspender o julgamento moral e compreender a lógica da invenção do paciente. A adição não é o problema fundamental; ela é a resposta trágica a um problema mais profundo. A escuta analítica não visa a arrancar o “dique” do adicto, o que o deixaria afogado, mas a entender a natureza da inundação e, junto com ele, construir destinos mais criativos e vivificantes para o seu gozo.