Introdução: Para Além do Senso Comum
“Persiste e aguenta; esta dor te será útil um dia.” Esta antiga máxima romana, que um dia pode ter servido como um hino à resiliência, soa hoje, no contexto do trabalho contemporâneo, como o eco de uma ideologia que nos adoece. A psicanálise nos convida a questionar radicalmente essa injunção ao sacrifício. E se essa dor não for útil, mas um sintoma? E se “aguentar” for, na verdade, uma forma de adoecer?
Para responder a essas perguntas e ir além do senso comum, precisamos de ferramentas. Precisamos de conceitos bem elaborados e de olhares acadêmicos que nos permitam decifrar a complexa relação entre a psique e o trabalho no século XXI. Este artigo serve como uma apresentação da nossa “caixa de ferramentas” teórica. Não se trata de uma mera lista de autores, mas de um roteiro que organiza as contribuições de um time de psicanalistas notáveis em quatro grandes áreas de investigação. Usaremos seus pensamentos como “holofotes” para iluminar, primeiro, o diagnóstico do sistema neoliberal; em seguida, as patologias do vínculo que emergem nesse sistema; depois, o palco do inconsciente e do corpo; e, finalmente, a complexa dinâmica dos grupos e da vida organizacional. Esta é a nossa expedição ao coração teórico da psicanálise do trabalho, uma jornada indispensável para quem busca transformar o sofrimento em saber.
Parte I: O Diagnóstico do Sistema – A Crítica à Nova Razão Gerencial
Antes de analisar o indivíduo que sofre, a psicanálise contemporânea nos ensina a diagnosticar o sistema que produz o sofrimento. Os pensadores a seguir são mestres na crítica à lógica que governa o trabalho hoje.
- Christophe Dejours: Fundador da Psicodinâmica do Trabalho, Dejours é nossa porta de entrada. Sua tese central é que o sofrimento psíquico não nasce do trabalho em si, mas da lacuna entre o “trabalho prescrito” (as regras, as metas, os procedimentos) e o “trabalho real” (a inteligência, a astúcia e os improvisos que o trabalhador precisa mobilizar para dar conta da tarefa). Quando a organização do trabalho impede o reconhecimento dessa contribuição singular, o prazer se converte em sofrimento. Sua obra A Loucura do Trabalho é um clássico indispensável que politiza o mal-estar, deslocando a causa da “fragilidade” do indivíduo para a patologia da organização.
- Roland Gori: Psicanalista francês, Gori nos oferece o conceito de “nova razão gerencial” para nomear a lógica que hoje rege não apenas as empresas, mas todas as esferas da vida. É uma lógica baseada em avaliação constante, métricas quantitativas e protocolos que esvaziam o saber-fazer singular. Em A Fábrica de Impostores, ele argumenta que essa tirania dos números não produz excelência, mas sujeitos inautênticos, forçados a performar um papel para sobreviver, sentindo-se como fraudes em suas próprias vidas.
- Juan Carlos Indart e Pablo Cunio: Estes psicanalistas argentinos trazem a lente lacaniana para a realidade da precarização. Cunio, em O Sujeito Precário, e Indart, em suas análises sobre a Gig Economy, mostram como a instabilidade e a falta de garantias do trabalho contemporâneo não são apenas um problema econômico, mas um ataque direto à constituição psíquica. A precarização corrói a capacidade do sujeito de se projetar no futuro e de manter laços sociais estáveis, gerando uma angústia de subsistência que está na base de muitos distúrbios atuais.
Parte II: As Patologias do Vínculo – Do Assédio ao Vazio
Este sistema patogênico produz formas específicas de sofrimento, que se manifestam primariamente nos vínculos.
- Marie-Claude Lambotte e Marie-France Hirigoyen: Estas autoras são referências cruciais no estudo do assédio moral. Elas nos ensinam a ver o assédio não como um mero conflito interpessoal, mas como uma violência perversa que visa deliberadamente a aniquilar a subjetividade do outro. Hirigoyen, em particular, desvela o mecanismo insidioso do assédio, mostrando como ele isola a vítima e a faz duvidar de sua própria sanidade. Suas obras são fundamentais para dar nome a uma violência muitas vezes invisível e para compreender sua dimensão psiquicamente devastadora.
- Massimo Recalcati: Um dos mais influentes psicanalistas europeus, Recalcati nos ajuda a entender o pano de fundo desse sofrimento: a “clínica do vazio”. Sua tese sobre a “evaporação do Pai” – o declínio da autoridade simbólica que antes fornecia limites e sentido – é central. No ambiente de trabalho, a ausência de uma liderança que encarne uma função paterna simbólica (de lei, de reconhecimento e de amparo) deixa os sujeitos em um estado de desamparo e vazio, um terreno fértil para o burnout e para a depressão, que ele descreve como uma falha do desejo.
- Jorge Forbes: Psicanalista lacaniano brasileiro, Forbes nos convida a pensar a responsabilidade neste mundo sem garantias. Se o “Grande Outro” não existe mais para nos dizer o que fazer, cada sujeito é convocado a se responsabilizar por seu desejo e por sua invenção. Em Inconsciente e Responsabilidade, ele explora as consequências clínicas dessa nova condição, nos desafiando a construir uma clínica para sujeitos que não podem mais se apoiar em álibis ou em autoridades externas.
Parte III: O Corpo e o Inconsciente em Cena
A psicanálise insiste que o sofrimento no trabalho não é apenas uma questão de gestão ou de relações interpessoais. Ele se inscreve no corpo e é regido por lógicas inconscientes.
- Alessandra Lemma: Seu trabalho, especialmente em Cuidando do Corpo, nos lembra que o corpo é o primeiro palco onde o sofrimento psíquico se manifesta. Em um ambiente de trabalho que exige a cisão entre mente e corpo, onde somos tratados como “cérebros em uma planilha”, os afetos que não podem ser verbalizados (raiva, humilhação, medo) retornam como sintomas psicossomáticos. A escuta do corpo torna-se, então, uma via de acesso privilegiada ao inconsciente.
- Hugo Bleichmar: Este psicanalista argentino, com sua vasta obra, nos ajuda a pensar sobre a “invenção da realidade”. Nossa percepção do ambiente de trabalho não é objetiva; ela é profundamente moldada por nossos conflitos, fantasias e pela nossa história psíquica. O trabalho se torna um cenário onde reeditamos dramas antigos, e compreender essa dimensão inconsciente é essencial para desfazer os nós que nos aprisionam em padrões de repetição dolorosos.
Parte IV: A Dinâmica dos Grupos e a Vida Organizacional
Nenhum trabalho é solitário. Estamos sempre imersos em grupos, e a psicanálise oferece ferramentas poderosas para entender a vida inconsciente desses grupos.
- Susan Long e a Tradição Bioniana (com Lionel Stapley e David Armstrong): Susan Long é uma expoente da abordagem iniciada por Wilfred Bion, que revolucionou o estudo dos grupos. Bion mostrou que todo grupo opera em dois níveis: o do “grupo de trabalho” (racional, focado na tarefa) e o dos “pressupostos básicos” (uma dimensão inconsciente, emocional e muitas vezes regressiva). As organizações frequentemente adoecem quando ficam presas em pressupostos básicos de dependência (esperando por um líder mágico), luta-fuga (criando inimigos internos ou externos) ou acasalamento (focando em uma esperança messiânica futura). A consultoria de inspiração bioniana visa a ajudar a organização a tomar consciência dessas dinâmicas inconscientes para que o verdadeiro trabalho possa acontecer.
- David Morgan e Nathan W. Ackerman: Estes autores nos lembram que a primeira organização que conhecemos é a família. Em suas obras sobre a psicodinâmica da vida familiar, eles mostram como padrões de comunicação, alianças e conflitos são internalizados e, mais tarde, transferidos para o ambiente de trabalho. A empresa se torna uma reedição da família, o chefe se torna o pai, os colegas se tornam irmãos, e os mesmos dramas arcaicos são reencenados, muitas vezes com consequências devastadoras.
- Harry Levinson: Um pioneiro da aplicação da psicanálise às organizações, Levinson foi um dos primeiros a mostrar como a personalidade e os conflitos inconscientes de um líder moldam a cultura de toda a empresa. Sua obra nos ensina a ler a organização a partir de sua liderança, entendendo que as ansiedades e as defesas de quem está no topo se disseminam por toda a estrutura.
Conclusão: Uma Práxis para a Dignidade
Este percurso pelos nossos “holofotes” teóricos nos mostra a riqueza e a complexidade da abordagem psicanalítica ao trabalho. Ela nos oferece uma crítica social (Dejours, Gori), uma clínica das patologias do vínculo (Lambotte, Recalcati), uma escuta do corpo e do inconsciente (Lemma) e uma análise sofisticada das dinâmas de grupo (Long, Morgan).
Estudar este time de pensadores não é um mero exercício acadêmico. É um ato ético e político. É adquirir as ferramentas para ir além do senso comum e da queixa superficial, para poder nomear o sofrimento em sua raiz e em sua estrutura. É o caminho para que, como analistas, gestores, educadores ou simplesmente cidadãos engajados, possamos cumprir a tarefa mais urgente de nosso tempo: a de contribuir para a construção de um mundo onde o trabalho possa ser, novamente, uma fonte de dignidade e de vida, e não de alienação e adoecimento.

