Resumo
Este artigo finaliza a jornada pelo curso “Psicanálise e Trabalho”, focando nas clínicas da resistência e nas práticas de cuidado como resposta às patologias laborais contemporâneas. A primeira seção aborda a dissolução de limites imposta pelo home office e a consequente alteração da “topologia psíquica”. Propomos, a partir de Recalcati, a criação de “rituais simbólicos” como “dobras” que reorganizam a psique e protegem a intimidade. A segunda seção investiga a análise como um processo de “queda da imagem ideal”, um ato libertador que desafia o “narcisismo de rendimento” e abre espaço para a emergência de um “desejo autêntico”, desatrelado da performance. A terceira e última seção explora a “reintrodução da palavra” como ato de resistência coletiva contra a “ideologia empresarial” e sua gestão por métricas. Defendemos, com Roland Goury, a urgência de “alianças” entre a psicanálise e outras instâncias sociais para combater a servidão voluntária e transformar o sofrimento em ação. O artigo conclui que o fim deste curso é o início de um novo ciclo, onde o profissional, munido de novas ferramentas, é convocado a uma missão ética de cuidado e transformação.
Palavras-chave: Psicanálise, Rituais Simbólicos, Topologia Psíquica, Narcisismo de Rendimento, Desejo Autêntico, Ideologia Empresarial, Reintrodução da Palavra, Clínicas da Resistência.
Introdução: O Início de um Novo Ciclo
Chegamos ao final de nossa caminhada. Ao longo deste curso, mergulhamos nas profundezas do sofrimento psíquico gerado pelo trabalho contemporâneo. Mapeamos a exaustão, a precariedade, a violência e a perda de sentido que definem a experiência laboral para tantos. Agora, nos três capítulos finais, nosso foco se desloca do diagnóstico da doença para a exploração da cura, da resistência e da esperança. Como nos lembra a fala de encerramento, “terminar um curso não é encerrar um ciclo, é se permitir iniciar um novo ciclo, uma nova etapa, uma nova história”.
Este artigo final abraça essa máxima, apresentando as ferramentas clínicas e éticas que nos permitem, enquanto profissionais, fazer a diferença. Exploraremos três movimentos fundamentais e complementares para a restauração da dignidade humana no trabalho. O primeiro é um movimento de reorganização do espaço psíquico, aprendendo a criar fronteiras simbólicas onde as físicas foram dissolvidas. O segundo é um movimento de desidentificação e redescoberta interior, o doloroso e libertador processo de deixar cair a máscara da performance para encontrar um desejo mais verdadeiro. E o terceiro é um movimento de ação coletiva e política, a união de vozes para reintroduzir a palavra crítica onde a gestão por métricas impôs o silêncio. Esta é a nossa clínica final: uma clínica do cuidado, da resistência e da transformação.
Capítulo 13: Rituais Simbólicos e a Reorganização da Topologia Psíquica
A era do home office e do smart working, acelerada pela pandemia, provocou o que a aula descreveu como uma “colonização psíquica”. O lar, outrora santuário da intimidade e refúgio da alma, foi invadido pela lógica produtivista, transformando-se em uma extensão do escritório. Essa dissolução de limites não é um mero problema logístico; é uma alteração violenta na topologia psíquica, na organização espacial e simbólica que sustenta nossa sanidade.
A Alma sem Refúgio e o Retorno do Sintoma
Quando a casa se torna escritório, a mente não sabe mais quando pode descansar. A angústia da presença online constante e a sobrecarga que a mente não consegue processar se manifestam no corpo. O retorno do sintoma corporal — a insônia epidêmica, a “hipersinesia digital” (a agitação incessante de verificar notificações), as dores de cabeça e nas costas — é o grito de socorro de uma civilização que perdeu suas fronteiras sagradas. Como relatam os pacientes, a sensação é a de não pertencer mais ao próprio espaço doméstico, de uma alma que não encontra mais refúgio para se manifestar.
As “Dobras Simbólicas” como Ato de Cuidado
Diante dessa confusão topológica, a psicanálise, inspirada em teóricos como Massimo Recalcati, propõe uma solução não material, mas simbólica: a criação de rituais, ou “dobras simbólicas”. São atos deliberados que marcam a abertura e o fechamento do tempo de trabalho, reinserindo uma fronteira psíquica onde a física foi apagada.
Os exemplos são concretos e reveladores. Empresas de tecnologia que adotam políticas de horários de desligamento estão, na prática, criando um ritual simbólico em nível organizacional. Profissionais que, sentindo na pele a dissolução de limites (sintomatizada pelo fenômeno dos “pijamas corporativos”), criam rituais próprios — como uma caminhada ao final do expediente ou o hábito de mentalizar o início e o fim do dia — estão ativamente reorganizando sua psique e protegendo sua intimidade. Esses atos não são meras técnicas de gestão de tempo; são práticas de cuidado essenciais, uma forma de resistência que reconstrói o lar como um santuário e permite que a alma volte a ter um lugar para repousar.
Capítulo 14: A Análise como Queda da Imagem Ideal e Desejo Autêntico
Se o capítulo 13 trata da reorganização do espaço, o capítulo 14 aborda a reconstrução do sujeito. Na sociedade da performance, as redes sociais funcionam como espelhos que nos aprisionam em uma existência de triunfos fabricados, alimentando o narcisismo de rendimento. Nosso valor passa a residir na aprovação externa, nos alienando de nosso desejo mais profundo.
A Insustentabilidade da Imagem Ideal
A busca obsessiva por uma imagem ideal, que corresponda mais às expectativas alheias do que à nossa verdade interna, é uma fonte imensa de sofrimento. A crescente ocorrência de burnout em CEOs e a migração de profissionais de altos cargos para empregos com menor status mas com mais propósito são sintomas eloquentes da insustentabilidade desse modelo. A “prisão dourada” do sucesso, quando alcançada, revela seu vazio. A performance incessante para um público invisível que “nunca aplaude o suficiente” leva à exaustão e ao desespero.
A Libertação pela Queda e o Resgate do Desejo
A análise psicanalítica, neste contexto, funciona como um espaço para a queda da imagem ideal. É um processo que permite ao sujeito confrontar sua vulnerabilidade, desidentificar-se dos ideais de produtividade e perceber que seu valor não está atrelado à performance e à exibição de troféus. Trata-se de uma “lavagem” da lavagem cerebral imposta pela ideologia empresarial.
Com a queda dessa máscara, abre-se espaço para a emergência de um desejo autêntico. Um desejo menos aprisionado ao olhar voraz do mercado, uma busca por um sentido de valor que seja genuíno e que venha de dentro. A decisão de priorizar uma vida com mais significado, ainda que com menor remuneração, é a manifestação prática dessa redescoberta. O consultório torna-se, assim, o último refúgio onde as máscaras podem cair, e a escuta genuína se torna o antídoto para uma civilização viciada em aprovação externa.
Capítulo 15: Alianças e a Reintrodução da Palavra no Espaço de Trabalho
Após a reorganização do espaço e a reconstrução do sujeito, o passo final é a ação coletiva. A ideologia empresarial e a gestão por métricas não são problemas individuais; são estruturas de poder que capturam a subjetividade e promovem uma nova servidão voluntária. O sofrimento, para ser superado, precisa sair do silêncio do divã e ganhar voz no espaço público.
Da Servidão Voluntária à Resistência Silenciosa
Reduzir trabalhadores a “códigos de barras” em planilhas gera uma profunda perda de sentido e silencia a singularidade humana. No entanto, mesmo no silêncio, a resistência emerge. O movimento do Quiet Quitting (demissão silenciosa), embora executado individualmente, é um fenômeno coletivo. É a reintrodução do pensamento crítico sobre a ideologia empresarial, uma recusa massiva em aceitar a servidão voluntária e em doar a vida a um trabalho sem sentido.
A Força das Alianças e a Luta pela Dignidade
Para que essa resistência silenciosa se torne uma força de transformação, ela precisa se articular. A proposta de Roland Goury, de criar alianças entre psicanalistas, sindicatos e grupos de apoio, é fundamental. A psicanálise, com sua escuta apurada do sofrimento, pode ajudar a nomear a violência e a desmascarar as lógicas desumanizantes. Os sindicatos e movimentos sociais, com sua capacidade de organização, podem transformar essa palavra em ação política.
Essa união é crucial para reintroduzir a palavra onde o sofrimento é silenciado. Quando a dor deixa de ser uma experiência solitária e se torna uma narrativa coletiva, ela ganha força para promover a transformação social. A psicanálise, ao se engajar nessa luta, cumpre sua missão ética de lutar pela dignidade e pelo resgate da subjetividade humana.
Conclusão: A Missão Ética do Cuidado
Encerramos este curso não com respostas definitivas, mas com um chamado à responsabilidade e à ação. A jornada nos mostrou que a psicanálise não é uma teoria confinada em textos clássicos, mas uma ferramenta viva e potente para ler e intervir na realidade.
Aprendemos a importância de criar rituais para proteger nosso espaço sagrado; a coragem necessária para permitir a queda de nossas máscaras e buscar um desejo mais verdadeiro; e a urgência de construir alianças para que nossa voz, unida a outras, possa desafiar as estruturas que nos adoecem.
Como profissionais da saúde, nossa missão é uma missão ética. É a missão do cuidado. E o cuidado, como aprendemos, se manifesta na habilidade de enxergar para além do sintoma, de escutar o sofrimento que se esconde por trás da performance. O caráter de um profissional define a sua missão. Que a nossa, a partir de hoje, seja a de usar o saber aqui adquirido para sermos agentes de cura e dignidade, no consultório e no mundo, ajudando a construir um futuro onde o trabalho não exija mais o sacrifício