Entramos no terceiro módulo da nossa jornada, “O Sintoma como Bússola”, e com ele, somos confrontados com uma das mais dolorosas e urgentes questões da parentalidade no século XXI. O que fazemos quando uma criança sofre? A nossa cultura, imersa na lógica da eficiência, da especialização e do mercado, oferece-nos um roteiro aparentemente claro: identificamos o “problema”, aplicamos um rótulo diagnóstico e delegamos a solução a um especialista. No entanto, a psicanálise, com a sua coragem de ir contra a corrente, propõe uma inversão radical desta perspetiva. E se o sintoma não for o problema, mas sim um sinal? Uma carta desesperada, uma bússola que aponta para uma dor mais profunda, não apenas na criança, mas na própria trama familiar? Este artigo explora a tese provocadora de que as crianças não querem psicólogos, querem os pais, e analisa como a clínica psicanalítica se posiciona como um bastião de resistência contra a crescente tendência de despatologizar uma infância que está a ser silenciada por diagnósticos e medicamentos.
Parte I: As Crianças Não Querem Psicólogos, Elas Querem os Pais (Capítulo 9)
O título deste capítulo, inspirado na obra do psicanalista Nicos Dabagian, é um manifesto. Ele encapsula uma verdade que o senso comum, na sua ânsia por soluções, se recusa a ver: o sofrimento de uma criança é, em primeira instância, um apelo dirigido àqueles que lhe deram a vida.
1. O Sintoma como Apelo: A Carta Não Lida
A tese central é disruptiva: o sintoma infantil – seja a agitação, a dificuldade de aprendizagem, a agressividade ou a inibição – não deve ser lido primariamente como um transtorno endógeno, uma falha no “hardware” da criança. Ele deve ser escutado como uma linguagem, a única forma de comunicação inconsciente que a criança encontra para expressar um mal-estar que não consegue verbalizar. É um apelo, uma carta lacrada endereçada aos pais, cujo conteúdo, na maioria das vezes, é um pedido desesperado: “Por favor, estejam aqui. Por favor, exerçam as vossas funções”.
Quando uma criança se torna “problemática”, ela está, na verdade, a ser o porta-voz mais sensível de uma disfunção no sistema familiar. Ela está a denunciar, com o seu corpo e comportamento, a ausência de uma presença verdadeiramente disponível e a falta de uma autoridade que lhe ofereça contorno e segurança. A nossa cultura, no entanto, ensina-nos a não ler a carta. Ensina-nos a olhar para o envelope (o sintoma), a considerá-lo defeituoso e a despachá-lo para o “serviço de correios” dos especialistas. A questão que Dabagian nos coloca é de uma simplicidade cortante: Se o sintoma de uma criança é uma carta, quem na família tem a coragem e a disponibilidade para a abrir e ler?
2. A Terceirização da Função Parental
A recusa em ler a carta está intrinsecamente ligada a um fenómeno endémico dos nossos tempos: a terceirização das responsabilidades parentais. Sentindo-se inseguros, sobrecarregados pela pressão de uma parentalidade performática e perdidos num mar de informações contraditórias, os pais delegam cada vez mais as suas funções essenciais. A escola é convocada a ensinar limites, o psicólogo a gerir as emoções, o pediatra a resolver as dificuldades de sono e, cada vez mais, as telas (televisão, tablets, telemóveis) a oferecerem o “amparo” emocional, a acalmarem a criança e a preencherem o vazio.
Este fenómeno não é novo. A referência à Paideia grega, onde o Estado assumia a educação das crianças, mostra que a delegação do cuidado é uma questão histórica. No entanto, na nossa sociedade individualista e de mercado, esta terceirização adquire um caráter diferente. Não se trata de uma partilha comunitária da responsabilidade, mas de uma fragmentação que deixa a criança psiquicamente desamparada. A posição simbólica dos pais é insubstituível. Nenhuma escola, por melhor que seja, pode oferecer o lugar de inscrição da lei que só a Função Paterna pode fornecer. Nenhum psicólogo, por mais competente que seja, pode substituir a disponibilidade afetiva e a sintonia fina da Função Materna no quotidiano. Ao terceirizar, os pais abrem mão do seu privilégio e da sua responsabilidade, criando um vácuo no coração da estrutura psíquica da criança.
3. A Erosão da Autoridade Simbólica
Este vácuo é agravado pela profunda crise da autoridade simbólica. Por medo de replicarem o autoritarismo de gerações passadas, muitos pais de hoje renunciam a qualquer forma de autoridade, buscando uma relação horizontal, de “amizade”, com os filhos. O psicanalista argumenta que esta abdicação é catastrófica. Autoridade não é autoritarismo. O autoritarismo é o exercício do poder pelo poder, arbitrário e humilhante. A autoridade simbólica, pelo contrário, é a capacidade de representar a Lei – o conjunto de regras e limites do mundo – de uma forma amorosa, consistente e estruturante.
É a mãe que diz “não” ao desejo fusional do bebé, introduzindo-o na realidade da falta. É o pai que encarna o limite que protege a criança do seu próprio gozo ilimitado e perigoso. Quando os pais abdicam desta função, a criança fica sem contorno. Numa busca desesperada por encontrar uma parede, um limite que lhe dê segurança, ela torna-se tirânica. A criança-tirana não é uma criança com excesso de poder, mas uma criança em pânico, testando o ambiente à procura de alguém que seja forte o suficiente para a parar. A pergunta que se nos impõe é crucial para a nossa era: Como podemos oferecer limites amorosos e firmes, sem cair no autoritarismo, e assim guiar os nossos filhos com a segurança de que eles tão desesperadamente precisam?
Parte II: A Clínica Diante do Mercado – Despatologizar a Infância (Capítulo 10)
Se o capítulo 9 descreve a dinâmica familiar que produz o sintoma, o capítulo 10 analisa a resposta que a nossa sociedade oferece a ele, uma resposta cada vez mais dominada pela lógica do mercado e pela medicalização da vida.
1. O Processo de Patologização
A psicanalista Beatriz Janin analisa de modo crítico o processo de patologização, que consiste em transformar sofrimentos e comportamentos normais e esperados do desenvolvimento infantil em doenças ou transtornos mentais. A tristeza de uma criança torna-se “depressão infantil”. A agitação e a curiosidade transformam-se em “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)”. As dificuldades normais de aprendizagem são rapidamente rotuladas como “dislexia” ou “discalculia”.
Este processo tem uma consequência grave: ele individualiza um mal-estar que é, na maioria das vezes, relacional, familiar ou social. Ao colocar o “problema” dentro do cérebro da criança, desresponsabiliza-se o ambiente. É mais fácil e mais rápido diagnosticar uma criança com TDAH do que investigar uma dinâmica familiar caótica, um sistema escolar inadequado ou uma cultura que bombardeia as crianças com estímulos incessantes. A nossa ânsia por respostas rápidas está a transformar a complexidade e a riqueza da experiência infantil numa lista de diagnósticos do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM).
2. A Influência do Mercado Farmacêutico
Beatriz Janin denuncia, com coragem, como esta epidemia de diagnósticos é diretamente influenciada pela lógica do mercado farmacêutico. As multinacionais farmacêuticas lucram com a medicalização do sofrimento. Existe um interesse económico claro em expandir os conceitos de doença para abranger cada vez mais as variações normais do comportamento humano. A promoção de soluções medicamentosas, frequentemente apresentadas como a única resposta “científica”, oferece um alívio rápido aos pais e às escolas, mas a um custo altíssimo.
A medicação, quando usada indiscriminadamente, funciona como um silenciador. Ela pode diminuir a agitação ou a tristeza, mas não trata a causa do sofrimento. Ela cala o mensageiro sem que a mensagem seja lida. A criança pode tornar-se mais “comportada”, mas o seu apelo inconsciente foi ignorado, e a dor subjacente procurará outras vias para se expressar, por vezes de forma mais grave no futuro. A questão que se levanta é de uma seriedade ética e política profunda: Estamos a permitir que a busca por lucros dite a forma como compreendemos e tratamos o sofrimento das nossas crianças?
3. A Escuta da História Singular como Ato de Resistência
Como contraponto a esta tendência, a clínica psicanalítica propõe a despatologização como um ato de resistência. Em vez de aplicar rapidamente um rótulo diagnóstico que apaga a subjectividade, a escuta psicanalítica busca o sentido do sintoma na história singular daquela criança e da sua família. É um trabalho de detetive da alma, que procura decifrar o que aquele comportamento específico está a comunicar naquele contexto particular.
Esta abordagem não nega a existência de sofrimento real ou de possíveis vulnerabilidades neurobiológicas. No entanto, insiste que, mesmo nesses casos, o sintoma só pode ser verdadeiramente compreendido dentro de uma narrativa. A escuta psicanalítica procura dar voz à criança, permitindo que ela, através do brincar, do desenho e da fala, elabore o seu sofrimento. Procura trabalhar com os pais, ajudando-os a “ler a carta”, a reconectarem-se com as suas funções e a modificarem a dinâmica que pode estar a alimentar o sintoma. A pergunta final que a psicanálise nos faz é a mais importante de todas: Como podemos ir para além do diagnóstico e buscar a história que o sintoma de uma criança está a tentar, desesperadamente, contar-nos?
Conclusão: A Coragem de Escutar
Os capítulos 9 e 10, em conjunto, pintam um quadro preocupante, mas também esperançoso. Mostram-nos que a crise do sofrimento infantil é, em grande parte, uma crise da escuta adulta. A terceirização das funções parentais e a patologização da infância são duas faces da mesma moeda: a recusa em confrontar a complexidade do sofrimento psíquico e a busca por soluções fáceis que nos isentem da nossa responsabilidade mais fundamental.
O convite da psicanálise é um chamado à coragem. A coragem de parar de procurar culpados e começar a procurar sentidos. A coragem de desligar o ruído externo para escutar o apelo silencioso que vem do quarto ao lado. A coragem de reconhecer que as crianças não querem psicólogos, manuais ou medicamentos como primeira instância; elas querem a nossa presença, o nosso limite amoroso, a nossa disponibilidade para decifrar as suas cartas. Querem os seus pais. Aprender a supervalorizar a nossa capacidade de leitura e de escuta, em vez de apenas reagir aos comportamentos, é talvez o ato mais revolucionário que podemos empreender para garantir a saúde mental da próxima geração.