Resumo
Este artigo investiga o “labirinto contemporâneo” da parentalidade, dissecando as dinâmicas exploradas nos capítulos 13 e 14 do curso “Psicanálise e Filhos”. A primeira seção aborda a clínica do esgotamento, analisando o burnout parental como uma exaustão psíquica alimentada pela pressão cultural por uma “família perfeita”. Demonstramos como essa indisponibilidade emocional dos pais gera uma desconexão filial, onde os sintomas da criança se tornam um espelho da ausência psíquica dos cuidadores, culminando em um “pacto disfuncional das telas” que funciona como babá eletrônica e refúgio. A segunda seção explora a clínica da era digital, detalhando a “mutação da temporalidade psíquica” — uma atrofia da capacidade de esperar e elaborar, causada pela cultura do clique. Analisamos a “desencarnação do eu” em um “avatar” editável e o achatamento do outro em um “perfil”, o que empobrece a empatia. Por fim, contrastamos a Lei Simbólica parental, baseada no limite que funda o desejo, com a “Lei do Algoritmo”, baseada na sedução que oferece um gozo ilimitado, mas atrofia a capacidade de desejar. Argumentamos que a exaustão familiar cria um vácuo que a lógica algorítmica preenche, exigindo de pais e profissionais uma nova consciência crítica para cultivar a presença, a paciência e a função do limite como um ato de amor e estruturação psíquica.
Palavras-chave: Psicanálise, Burnout Parental, Desconexão Digital, Subjetividade, Temporalidade Psíquica, Crise de Autoridade, Lei Simbólica, Algoritmo.
Introdução: Entrando no Labirinto
Longe dos mitos gregos, o labirinto do século XXI é feito de telas brilhantes, agendas sobrecarregadas e uma exaustão silenciosa que permeia o núcleo familiar. O quarto módulo de nosso curso, “Pais Exaustos, Filhos Conectados e a Crise de Autoridade”, nos convida a mapear este território complexo e, por vezes, assustador. A jornada que iniciamos agora se divide em duas grandes crises interligadas: a crise interna, que se manifesta no esgotamento psíquico da família; e a crise externa, impulsionada pela revolução digital, que está a reconfigurar a própria estrutura da subjetividade.
Este artigo se propõe a ser um guia para essa exploração. No capítulo 13, adentraremos a clínica do esgotamento, investigando como a busca por um ideal de perfeição nos leva ao limite e como as telas se tornam um sintoma e um agravante da desconexão familiar. No capítulo 14, mergulharemos na clínica da era digital, analisando as profundas mutações que a tecnologia opera em nossa percepção do tempo, do corpo, do outro e, fundamentalmente, da Lei. Com a bússola da psicanálise, buscaremos não respostas fáceis, mas uma compreensão profunda dos desafios que definem a criação de filhos hoje.
Capítulo 13: A Clínica do Esgotamento – Pais Exaustos e a Erosão do Vínculo
Antes de falarmos das telas, precisamos falar do vácuo que elas vêm preencher. Esse vácuo é o da presença, consumida por uma exaustão que não é apenas física, mas anímica.
O Burnout Parental: A Armadilha da Família Perfeita
O diagnóstico de Eva Rotenberg é preciso: o burnout familiar é o sintoma central do mal-estar de nosso tempo. Não se trata de um simples cansaço, mas de um estado de exaustão psíquica crônica. Essa exaustão é alimentada por uma dupla pressão: a sobrecarga de trabalho real e, talvez mais insidiosa, a pressão da cultura para atingir um ideal de parentalidade perfeita que é, por definição, inalcançável. A busca incessante por essa perfeição, que nos consome em um ciclo de culpa e autoexigência, nos leva a uma questão fundamental: em nossa busca pela perfeição como pais, será que estamos a perder a nós mesmos? A resposta, para muitas famílias, é um doloroso “sim”.
A Desconexão Filial: O Espelho da Ausência Psíquica
A consequência direta do esgotamento dos pais é a sua indisponibilidade emocional. O corpo pode estar presente, mas a mente está em outro lugar: no trabalho, nas preocupações, na próxima tarefa da lista. A criança, extremamente sensível à qualidade da presença, não encontra um interlocutor que funcione como “continente” para suas angústias e alegrias. Diante dessa ausência psíquica, ela se retrai para seu próprio mundo. Seus sintomas — irritabilidade, isolamento, dificuldades de aprendizagem — tornam-se, então, um espelho da ausência de seus cuidadores. O filho distante é, muitas vezes, o reflexo de pais que, embora fisicamente próximos, estão psiquicamente a quilômetros de distância. Isso nos interpela diretamente: se nossos filhos parecem distantes, será que estamos realmente presentes para eles?
O Pacto Disfuncional das Telas: A Babá Eletrônica e o Refúgio Digital
É nesse cenário de exaustão e desconexão que as telas assumem sua função de reguladoras artificiais do sistema familiar. Para os pais esgotados, elas se tornam a “babá eletrônica” que garante um alívio, um momento de paz para poderem continuar funcionando. Para os filhos desconectados, elas se tornam um “refúgio”, um mundo previsível e estimulante que compensa a ausência do olhar parental. Estabelece-se um pacto disfuncional, um ciclo vicioso onde a tecnologia, que parece ser a solução para o estresse, na verdade aprofunda o isolamento e a erosão da comunicação. A pergunta que emerge é um soco no estômago da nossa modernidade: nossos aliados, os aplicativos, estão, na verdade, nos afastando de quem mais amamos?
Capítulo 14: A Clínica da Era Digital – A Mutação da Subjetividade
A exaustão familiar cria o vácuo; a tecnologia o preenche com uma lógica própria, que não é neutra, mas que opera uma mutação profunda na constituição da subjetividade da criança e do adolescente.
A Atrofia do Tempo Psíquico: A Tirania do Agora Perpétuo
Como investiga Juan Vasen, a imersão digital compromete a nossa experiência do tempo. A cultura do clique, da notificação instantânea e da gratificação rápida cria uma temporalidade do “agora” que não acaba nunca. Essa velocidade incessante atrofia a capacidade psíquica de esperar, de elaborar o passado e de projetar o futuro. O tédio, que é o solo fértil para a criatividade e a introspecção, torna-se insuportável. A consequência clínica é uma profunda intolerância à frustração, pois a realidade nunca será tão rápida e responsiva quanto a tela. O desafio pedagógico é imenso: como podemos cultivar a paciência e o pensamento aprofundado em uma geração treinada para a velocidade do clique?
A Desencarnação do Eu: A Vida como Avatar e o Achatamento do Outro
No universo digital, a relação com o corpo é radicalmente transformada. O “eu” se descola do corpo real, com suas imperfeições e vulnerabilidades, e passa a ser uma imagem editável, um “avatar” curado para a aprovação alheia. Essa desencarnação gera uma profunda alienação em relação a si mesmo. A anedota da mãe que prefere as fotos do filho ao filho real é a expressão paradigmática dessa cisão: a identidade digital se torna mais real que o eu de carne e osso. Da mesma forma, a alteridade é achatada. O outro, com sua complexidade, suas contradições e suas falhas, é reduzido à superfície de um perfil, de uma persona. Isso empobrece a empatia, que depende do confronto com a imperfeição do outro real. A questão que fica é existencial: quando nossa identidade digital se torna mais real do que nosso eu de carne e osso, o que perdemos de nossa humanidade?
O Algoritmo como Novo Soberano: A Crise da Lei e do Desejo
Talvez a mutação mais profunda seja a que ocorre no campo da Lei. A Lei simbólica, representada tradicionalmente pelos pais, opera através do limite, da interdição, do “não”. É esse “não” que, ao criar uma falta, estrutura a psique e funda o movimento do desejo — desejamos aquilo que não temos.
A era digital, contudo, nos submete a uma nova lei: a Lei do Algoritmo. E o algoritmo, como a aula aponta, é o soberano do avesso. Ele não proíbe; ele seduz. Ele não limita; ele oferece satisfação contínua para maximizar o engajamento. Ele nos submerge em um mundo de “gozo” ilimitado (um prazer que ultrapassa a barreira do bem-estar e se torna compulsivo), mas que, paradoxalmente, atrofia o desejo. O desejo precisa da falta para existir. Um mundo sem “não” é um mundo sem desejo. Essa subversão mina a autoridade parental e deixa a criança e o adolescente à deriva, em uma busca incessante por uma satisfação que nunca satisfaz. A pergunta final é, talvez, a mais importante de todas: se o algoritmo nos oferece um mundo sem a palavra “não”, como podemos aprender a desejar, como podemos aprender a lidar com a realidade, que é feita de limites?
Conclusão: A Resistência da Presença
A jornada por este labirinto nos mostra que a exaustão dos pais e a imersão digital dos filhos não são problemas separados. São as duas faces de uma mesma crise: uma crise de presença, de tempo e de lei. O esgotamento parental cria um vácuo de autoridade e afeto, e a lógica sedutora do algoritmo se oferece como a solução perfeita, aprofundando ainda mais o ciclo de desconexão.
Sair deste labirinto não requer a demonização da tecnologia, mas sim um ato consciente e corajoso de resistência. A resistência, neste caso, é a presença. É a decisão de desligar a tela para olhar nos olhos. É a coragem de suportar o tédio e a frustração dos filhos sem recorrer à babá eletrônica. É a sabedoria de encarnar uma Lei simbólica que, através do “não” dito com amor, ensina a criança a desejar, a esperar e a lidar com a complexa e imperfeita beleza do mundo real. É a tarefa mais difícil, mas também a mais essencial da parentalidade em nosso tempo.