Resumo
Este artigo investiga o “labirinto contemporâneo” da parentalidade, dissecando as dinâmicas exploradas nos capítulos 15 e 16 do curso “Psicanálise e Filhos”, que abordam o impacto da era digital e a crise da autoridade. A primeira seção, focada no bebê na era digital a partir das teses de Yannis Gansel, analisa como o “olhar familiar desviado” para as telas cria um “espelho vazio” para a criança, gerando dúvidas sobre seu direito de existir. Exploramos a “ruptura da atenção conjunta”, que deixa o bebê em uma bolha solitária, e a “tela como rival inanimada”, que gera uma angústia primordial de competição pelo afeto. A segunda seção, baseada no “Complexo de Telêmaco” de Massimo Recalcati, explora a crise da juventude. Analisamos a passagem de uma era de Édipo (conflito com a lei) para uma de Telêmaco (anseio pela lei), consequência do “declínio da função paterna simbólica”. Por fim, aprofundamos o paradoxo lacaniano da “lei como condição do desejo”, argumentando que um mundo sem limites não liberta o desejo, mas o atrofia, gerando um “gozo” compulsivo e apático. O artigo conclui que o “espelho vazio” na infância é o prelúdio para o “trono vazio” na juventude, convocando pais e cuidadores a um ato de resistência através da retomada consciente do olhar e da encarnação de uma lei humanizante.
Palavras-chave: Psicanálise, Era Digital, Vínculo, Espelho Vazio, Complexo de Telêmaco, Função Paterna, Lei e Desejo, Gozo.
Introdução: Do Espelho ao Trono, Um Caminho Vazio
Continuamos nossa jornada pelo “labirinto contemporâneo”, um território onde as referências que outrora guiavam a parentalidade parecem ter se dissolvido. Os capítulos 15 e 16 nos oferecem duas lentes de aumento para examinar o epicentro dessa crise. A primeira lente, proposta por Yannis Gansel, nos aproxima da cena mais primordial: o bebê diante do rosto de seus cuidadores, um rosto agora cronicamente desviado para a luz de uma tela. A segunda lente, de Massimo Recalcati, nos transporta para a outra ponta da jornada, a adolescência e a juventude, mostrando um sujeito que, em vez de se rebelar contra a autoridade, anseia por ela em um mundo de “tronos vazios”.
Este artigo argumentará que estas duas cenas não são independentes. O “espelho vazio” encontrado pelo bebê na era digital é o prelúdio, a preparação do terreno para o “trono vazio” que o jovem encontrará mais tarde. A crise do olhar na primeiríssima infância está intrinsecamente ligada à crise da lei e do desejo na juventude. Trata-se de um mesmo drama psíquico: a falha da presença e da função parental em um mundo saturado pela tecnologia e esvaziado de seus referenciais simbólicos.
Capítulo 15: A Clínica do Olhar Desviado – O Bebê na Era Digital
A psicanálise ensina que os alicerces da nossa existência são construídos nos primeiríssimos encontros com o outro. É no olhar do cuidador que o bebê se encontra pela primeira vez, que sua existência é confirmada. A era digital introduziu uma perturbação radical e sem precedentes nessa cena fundadora.
O Espelho Vazio: A Falha no Reconhecimento Primordial
O bebê se constitui ao se ver no olhar do outro. Esse olhar funciona como um espelho que lhe diz: “Você existe. Você é real. Você é amado”. É nesse reflexo que a imagem corporal se unifica e o sentimento de si começa a germinar. A tese de Gansel é devastadora em sua simplicidade: quando o olhar do cuidador está cronicamente desviado para uma tela, o bebê encontra um espelho vazio. Ele olha para o rosto que deveria ser seu mundo e encontra ausência, um olhar opaco que não o reflete. Essa falha no reconhecimento primordial pode inscrever na psique uma dúvida fundamental sobre o próprio direito de existir. A questão que nos assombra, ao vermos essa cena se repetir em parques, shoppings e lares, é: o que acontece com a alma de uma criança quando o espelho em que ela deveria se encontrar está a refletir apenas a luz fria de uma tela?
A Ruptura da Atenção Conjunta: A Criança na Bolha Solitária
O desenvolvimento psíquico saudável depende da capacidade de triangular: o bebê, o cuidador e um terceiro objeto no mundo. É o momento mágico em que o pai aponta para um cachorro e o bebê segue seu olhar, e ambos compartilham um sorriso. Essa atenção conjunta é a base para a construção de um mundo simbólico compartilhado, a ponte para a linguagem e para a cultura. A tela do cuidador, ao capturar a atenção do adulto, quebra esse triângulo fundamental. Ela impede a formação dessa ponte para o mundo, deixando o bebê em uma “bolha de percepções solitárias”, sem um guia que o ajude a significar suas experiências. O conselho parece pio, mas a observação psicanalítica é de ouro: estamos impedindo que nossos filhos construam as fundações de seus mundos internos ao permitirmos que a atenção compartilhada se quebre repetidamente.
A Tela como Rival Real: A Angústia da Competição Primordial
A tela se introduz na díade primordial não como um terceiro simbólico (como a função paterna, que representa a lei e o mundo), mas como um rival real pelo desejo e pela atenção do cuidador. Para a mente nascente do bebê, o smartphone é um objeto enigmático, brilhante e todo-poderoso que “rouba” sua mãe ou seu pai. Isso gera uma angústia primordial e o coloca em uma competição perdida de antemão. O objeto inanimado parece ser mais interessante, mais desejável, do que ele. Essa experiência pode ter efeitos duradouros na segurança do vínculo, instalando uma sensação de desvalor e de ter que competir incessantemente pelo amor. A pergunta, do ponto de vista do bebê, é lancinante: como é competir por amor e atenção com um objeto brilhante e incompreensivo que rouba seus pais?
Capítulo 16: A Clínica do Trono Vazio – O Complexo de Telêmaco e a Crise do Desejo
A criança que cresceu diante do espelho vazio chega à adolescência e à juventude e se depara com um outro tipo de ausência: o trono vazio da autoridade.
De Édipo a Telêmaco: A Mudança de Paradigma da Juventude
Massimo Recalcati argumenta que o paradigma para entender a juventude mudou. Saímos de uma era Edipiana, onde o filho se definia pelo conflito e pela rebelião contra um pai forte e detentor da Lei. Entramos em uma era de Telêmaco. Telêmaco, filho de Ulisses, não quer matar o pai; ele anseia por seu retorno. Ele vaga pelo palácio, invadido por pretendentes que consomem seus bens, esperando por uma figura de autoridade que restaure a ordem e lhe dê rumo e sentido. O jovem de hoje, diante do declínio do pai simbólico, não se rebela, mas se sente perdido, apático, ou se lança em uma busca desenfreada por gozo.
O Declínio da Função Paterna Simbólica: Órfãos de uma Lei
A crise não é a da ausência física dos pais, mas o enfraquecimento da função paterna como a instância simbólica que inscreve o limite, a dimensão do “não” que estrutura a realidade e o desejo. Em uma cultura da permissividade, do “tudo pode”, do gozo levado ao excesso, essa função perdeu sua credibilidade. A autoridade parental se tornou frágil, hesitante. Isso deixa a juventude em um mundo sem fronteiras simbólicas, “órfãos de uma lei” que possa dar sustentação e sentido às suas vidas. Se não há limites verdadeiros, como nossos jovens aprenderão a diferenciar um “sim” e um “não” com significado?
A Lei como Condição do Desejo: O Paradoxo da Liberdade
Contrariando o senso comum de que a lei reprime o desejo, a psicanálise lacaniana postula o exato oposto: a lei é a condição para que o desejo se mantenha vivo. A lei, ao criar uma interdição, uma fronteira (“isso você não pode ter”), funda a falta. É sobre o terreno dessa falta que o desejo pode se movimentar, se articular e se sustentar. Um mundo sem uma lei eficaz, onde “tudo é permitido”, não é um mundo de desejo livre, mas de gozo compulsivo, uma busca incessante por uma satisfação que nunca satisfaz e que leva à apatia e à indiferença. A crise da juventude contemporânea é, portanto, uma crise de desejo, consequência direta da ausência de um limite estruturante. A pergunta que nos desafia é profunda: se tudo é permitido, o que resta para o desejo, que se alimenta da falta e do desafio?
Conclusão: A Resistência do Olhar e da Palavra
A jornada por estes dois capítulos nos revela uma trágica continuidade. O espelho vazio que a criança encontra na primeiríssima infância, fruto de um olhar parental desviado, é a semente da desorientação que ela viverá mais tarde. Uma criança que não é confirmada em sua existência por um olhar presente e amoroso terá imensa dificuldade em encontrar e internalizar uma Lei simbólica que lhe dê contorno e direção. O olhar ausente do cuidador prepara o terreno para o trono vazio da autoridade.
Ambas as crises — a do olhar e a da lei — convergem para uma única e fundamental falha: a da presença e da função parental em um mundo que nos empurra para a distração e a permissividade. A saída deste labirinto não está em demonizar a tecnologia ou em retornar a um autoritarismo patriarcal. A saída, como a psicanálise nos aponta, é um ato de resistência duplo. Primeiro, a resistência do olhar: a decisão consciente de desligar a tela e oferecer aos nossos filhos o espelho de nossa atenção, o único lugar onde eles podem verdadeiramente se encontrar. Segundo, a resistência da palavra: a coragem de encarnar uma Lei simbólica, de dizer “não” não como um ato de poder, mas como um ato de amor que, ao inscrever o limite, abre o espaço para que o desejo de nossos filhos possa nascer, crescer e se mover no mundo.