Resumo
Este artigo finaliza a jornada pelo curso “Psicanálise e Filhos”, focando em dois diagnósticos cruciais da contemporaneidade: a epidemia de ansiedade em meninas e a crise da função paterna. A primeira seção, baseada no capítulo 19 e na obra de Lisa Damour, explora a clínica da “menina sob pressão”. Analisamos a distinção entre estresse saudável e ansiedade tóxica, a pressão cultural por uma perfeição inatingível como principal gatilho externo, e o conflito com a raiva como um fator psíquico interno devastador, que transforma a emoção não expressa em autoagressão. A segunda seção, a partir do capítulo 20 e das teses de Savvas Savvopoulos, aprofunda a “precarização da função paterna” simbólica, não como a ausência do pai real, mas como a vacância da instância da Lei e do Limite. Demonstramos, via Lacan, o paradoxo da “lei como condição do desejo”, argumentando que um mundo sem limites não liberta, mas atrofia o desejo em favor de um gozo compulsivo. Por fim, apontamos para a necessidade de reinvenção de uma autoridade paterna que seja firme, mas não opressiva, e humanizante. Concluímos que ambas as crises estão interligadas e que a tarefa final do cuidado, para pais e profissionais, é a de se tornar um agente consciente que ajuda a metabolizar a pressão e a encarnar uma lei que possibilite o desejo e a vida.
Palavras-chave: Psicanálise, Ansiedade Feminina, Função Paterna, Lei e Desejo, Gênero, Crise de Autoridade, Reinvenção.
Introdução: O Fim que é um Começo
Chegamos ao nosso último vídeo-aula, ao encerramento de uma travessia que nos levou das origens psíquicas do sujeito aos complexos labirintos da era digital. Sentimos, talvez, uma “dorzinha no coração” pela brevidade, mas como em todo processo analítico, o fim não é um término, mas a abertura para um novo ciclo. As informações aqui partilhadas, se revisitadas com a intenção de criar familiaridade, não serão meros conceitos, mas ferramentas vivas para uma escuta mais profunda e uma prática de cuidado mais consciente.
Neste fechamento, após resgatarmos as imagens da herança invisível do trauma transgeracional, focaremos em duas questões que são a epítome do mal-estar contemporâneo: a epidemia de ansiedade que assola nossas meninas e a profunda crise da função paterna. Aparentemente distintos, estes dois temas são, na verdade, as duas faces de uma mesma moeda cultural: uma cultura que, de um lado, exige uma performance de perfeição impossível e, de outro, falha em oferecer os limites simbólicos que estruturam e protegem a psique. Vamos, então, a este último mergulho, que nos desafia a pensar o feminino sob pressão e a necessária reinvenção do masculino como função.
Capítulo 19: A Clínica da Menina sob Pressão – Ansiedade, Perfeição e a Raiva Silenciada
O sofrimento psíquico não é democrático; ele se manifesta com contornos específicos, moldados pela cultura e pelo gênero. A crescente e alarmante epidemia de ansiedade e estresse em meninas é um sintoma ruidoso de nosso tempo, que a psicanalista Lisa Damour nos ajuda a decifrar.
O Veneno da Perfeição: Estresse Saudável vs. Ansiedade Tóxica
A primeira distinção fundamental é entre estresse e ansiedade. O estresse é uma reação normal e necessária aos desafios da vida, um motor para o crescimento e para o desenvolvimento da resiliência. O objetivo, portanto, não é criar um mundo asséptico e sem estresse para nossas filhas. O problema surge quando a ansiedade se torna tóxica: quando é desproporcional à ameaça, quando paralisa em vez de motivar, quando se torna um estado crônico que corrói a alma. A questão crucial para pais e educadores é: quando a pressão se transforma em veneno e como ensinamos nossas meninas a fazer essa distinção?
A principal fonte externa desse veneno é a implacável pressão cultural por uma perfeição inatingível. Em todas as áreas — acadêmica, social, estética, esportiva — as meninas são bombardeadas com um ideal que transforma qualquer falha normal em uma catástrofe pessoal. Essa tirania da perfeição, turbinada pelas redes sociais que funcionam como uma vitrine de vidas editadas, alimenta um medo paralisante de errar e uma autocrítica severa e castradora. Em um mundo que exige a perfeição como pré-requisito para o amor e o reconhecimento, como ensinamos nossas meninas a abraçar suas imperfeições e a encontrar força em sua autenticidade?
A Voz Silenciada: O Conflito com a Raiva
Se a pressão pela perfeição é o fator externo, o conflito com a raiva é o fator psíquico interno mais crucial. Nossa cultura, ainda profundamente patriarcal, socializa as meninas para reprimir a raiva, uma emoção considerada “não feminina”, agressiva ou descontrolada. Contudo, a emoção não expressa não desaparece. Como a energia, ela se transforma. A raiva não dita, não legitimada, volta-se contra a própria menina. Ela se manifesta como sintomas de ansiedade, como um sentimento difuso de culpa, como pensamentos autodepreciativos e, em casos mais graves, como comportamentos autodestrutivos.
A raiva é uma emoção vital. É o sinal de que um limite foi violado, de que uma injustiça foi cometida. É a energia psíquica para a autoafirmação e para a mudança. Ao negar às meninas o direito à raiva, nós as desarmamos. Aprender a reconhecer, legitimar e expressar a raiva de forma assertiva é um passo fundamental para a saúde mental. A pergunta que se impõe é urgente, com ecos que vão do consultório à luta social: o que acontece quando uma emoção tão poderosa como a raiva não tem permissão para existir, e como podemos ajudar nossas meninas a encontrar sua voz e a transformar sua raiva em uma força construtiva?
Capítulo 20: A Clínica da Função Paterna – Crise, Desejo e a Tarefa da Reinvenção
A crise das meninas não pode ser compreendida sem olharmos para a crise do outro polo da estrutura simbólica: a função paterna. Como a análise rigorosa de Savvas Savvopoulos nos mostra, vivemos um tempo de profunda precarização desta função essencial.
A Precarização do Pai Simbólico: A Crise da Lei e do Limite
É crucial entender que, em psicanálise, quando falamos do “pai”, não nos referimos necessariamente ao pai real, biológico, mas à função paterna simbólica. É a posição que representa a Lei, o Limite, a interdição necessária que nos insere na cultura e nos diferencia da fusão com o desejo materno. Na cultura de hoje, essa função perdeu sua autoridade. Tornou-se frágil, hesitante, vacante. A crise não é, necessariamente, de pais ausentes fisicamente, mas de uma função simbólica que está vazia. Em um mundo que preza a liberdade ilimitada como valor supremo, qual é o lugar da lei, e quem a representará?
O Paradoxo da Liberdade: A Lei como Condição do Desejo
A psicanálise lacaniana nos oferece um paradoxo que vai na contramão do senso comum: a lei não é inimiga do desejo, mas sua condição de possibilidade. A lei paterna, ao interditar o gozo absoluto e incestuoso, cria a falta. É essa falta, essa ausência, que abre o espaço para que o desejo possa emergir e se movimentar. Desejamos aquilo que nos falta. Em um mundo onde a lei é precária e “tudo se permite”, não há o limite que estrutura. O resultado não é o desejo livre e saudável, mas a busca compulsiva por um gozo que nunca satisfaz, levando à apatia, à indiferença. A crise da juventude, portanto, é uma crise do desejo, consequência da ausência de um limite estruturante. Se não há limites, o que resta para o desejo, que se alimenta justamente da travessia e da conquista?
A Tarefa da Reinvenção: Para Além do Pai Autoritário
A solução para esta crise não é, de forma alguma, um retorno nostálgico ao pai autoritário, castrador e patriarcal. Essa figura opressora foi, justamente, o que a modernidade precisou superar. A proposta psicanalítica é muito mais complexa e desafiadora: trata-se de uma reinvenção da função paterna.
Isso implica em criar novas formas de encarnar uma autoridade que seja firme, mas não opressiva; uma lei que seja humanizante, que se apresente não como um obstáculo arbitrário ao crescimento, mas como uma condição necessária para uma vida com sentido. Um pai (ou uma mãe, ou qualquer figura que exerça essa função) que consegue dizer “não” com amor, que sustenta o limite não por poder, mas por cuidado, está oferecendo ao filho a estrutura psíquica mais valiosa: a capacidade de desejar. A pergunta final, que serve como tarefa para todos nós, é: como podemos redefinir a autoridade, em nossas famílias e na cultura, para que ela não sufoque, mas, ao contrário, construa as condições para uma vida mais saudável e desejante?
Conclusão: O Fim que é o Início de uma Missão
Encerramos nosso curso com a constatação de que o sofrimento psíquico da criança e do jovem é um sismógrafo sensível das falhas de nossa cultura. A menina ansiosa, paralisada pela exigência de perfeição e silenciada em sua raiva, e o jovem apático, à deriva em um mundo sem lei e sem desejo, são os dois grandes sintomas de uma civilização que perdeu o equilíbrio entre o ideal e o limite.
A jornada por estes vinte capítulos, acompanhados por tantos teóricos brilhantes, não teve como objetivo nos transformar em pais ou profissionais perfeitos — isso seria cair na mesma armadilha da cultura que criticamos. O objetivo foi nos qualificar, nos tornar melhores, agregar novas visões e percepções ao nosso “know-how”. Foi um convite a uma formação continuada, a uma imersão em águas mais densas, a uma mudança de olhar.
O conselho final é o do início: revisite. Retorne ao material, crie familiaridade com os conceitos, deixe que eles provoquem e transformem sua escuta. O caráter de um profissional, de um pai, de uma mãe, se define por sua missão. E a nossa missão, na essência, é uma missão ética: a do cuidado. Um cuidado que, agora sabemos, exige a competência de enxergar para além da realidade aparente, de escutar para além do comportamento visível, de compreender a complexa arquitetura da alma. Que este curso não seja um ponto final, mas o início de uma nova e mais consciente forma de olhar, de escutar e de amar.