Resumo
Este artigo aprofunda a análise do cenário mundial proposta no curso “Psicanálise, Prosperidade e o Mercado das Emoções”, argumentando que o sofrimento psíquico contemporâneo é um produto lógico de nosso sistema cultural. O texto se articula em três eixos diagnósticos. O primeiro, “A Ilusão do Sujeito S.A.”, descreve como o ideal de prosperidade forja um sujeito psiquicamente exausto, governado pela ansiedade da performance, pela normalização do burnout e pela culpa de uma dívida existencial, transformando a vida em um projeto de autogestão falido desde o início. O segundo, “A Razão Adoecida”, analisa as grandes crises globais (climática, política) não como falhas técnicas, mas como sintomas de uma irracionalidade psíquica coletiva, manifestada em mecanismos de negação, fragmentação do laço social e na ascensão de respostas patológicas como o populismo. O terceiro e último eixo, “A Vida Codificada”, investiga a “governamentalidade algorítmica” como a forma de poder mais sutil e invasiva do século XXI, que captura a vida íntima, gerencia nossos afetos para fins de mercado e neutraliza o desejo de emancipação. Concluímos que a compreensão crítica desses três pilares é o passo fundamental para superar a paralisia e iniciar a invenção de novas utopias e formas de vida.
Palavras-chave: Psicanálise, Mal-Estar Contemporâneo, Neoliberalismo, Performance, Governamentalidade Algorítmica, Negação, Laço Social, Crítica Cultural.
Introdução: O Paradoxo Central do Nosso Tempo
Sejam bem-vindos a esta etapa de nossa jornada. Após estabelecermos a genealogia do sujeito performativo, voltamos agora nosso olhar para a paisagem que este sujeito habita: o cenário mundial do século XXI. O diagnóstico que se impõe é, antes de tudo, paradoxal. Vivemos a coexistência de uma imensa riqueza material, de avanços tecnológicos sem precedentes e de uma retórica de liberdade individual, com uma epidemia global de sofrimento psíquico — ansiedade, burnout, depressão, solidão. A tese central que nos guiará é audaciosa e perturbadora: o próprio ideal de prosperidade, como nos é vendido, é a causa desse mal-estar.
Este artigo se propõe a aprofundar os três grandes pilares desse diagnóstico, conforme apresentados em aula. Primeiramente, analisaremos o produto final dessa ideologia: o sujeito psiquicamente exausto, que internalizou a lógica da autogestão a ponto de se tornar seu próprio carrasco. Em seguida, elevaremos o olhar do indivíduo para o coletivo, investigando como nossas grandes crises globais são, na verdade, sintomas de uma razão adoecida, de uma irracionalidade psíquica que opera em escala social. Por fim, focaremos na mais sofisticada ferramenta de poder de nosso tempo: a vida codificada, a captura de nosso desejo e de nossa intimidade pela governamentalidade algorítmica. Este é o mapa do nosso labirinto. Compreendê-lo é o primeiro passo para encontrar uma saída.
1. A Ilusão do Sujeito S.A.: A Exaustão como Destino
O ideal de prosperidade contemporâneo nos convoca a nos tornarmos “empreendedores de nós mesmos”, a gerir nossa vida como uma empresa — o “Sujeito S.A.”. Essa promessa de autonomia, no entanto, esconde uma armadilha que produz um tipo específico de subjetividade: o sujeito psiquicamente exausto. Essa exaustão não é acidental; ela é o resultado direto de três mecanismos que definem a nossa experiência cotidiana.
- A Ansiedade da Performance: Somos governados por um imperativo de performance constante. O valor de nossa existência passa a ser medido por nossa capacidade de atingir metas, de demonstrar sucesso, de exibir felicidade. O trabalho, as relações, o corpo, o lazer — tudo se transforma em um palco para essa performance, gerando uma ansiedade crônica, um medo constante de não ser suficiente.
- O Burnout como Norma: Em uma cultura que celebra a produtividade infinita, o esgotamento deixa de ser um sinal de alerta para se tornar uma medalha de honra, um testemunho de nossa dedicação. A normalização do burnout é um dos sintomas mais perversos do nosso tempo; aprendemos a conviver com a exaustão, a tratá-la como parte inevitável do “caminho para o sucesso”.
- A Dívida Existencial: A ideologia da meritocracia nos torna os únicos responsáveis por nosso sucesso ou fracasso. Isso nos inscreve em uma “dívida existencial” perpétua: a culpa por nunca sermos perfeitos, por nunca alcançarmos o ideal inatingível que nos é proposto. A vida se transforma em um projeto de autogestão que, como a aula aponta, já nasce falido, pois sua meta é desumana.
Essa tríade — ansiedade, burnout e culpa — gera um sofrimento profundo e nos lança a uma questão fundamental: de que maneira sentimos em nosso próprio corpo e mente o peso de ter que gerenciar a nós mesmos como um projeto de sucesso? A dor nas costas, a insônia, a mente que não para — todos são sinais de um corpo e de uma psique que se recusam a ser tratados como uma empresa.
2. A Razão Adoecida: Sintomas de uma Irracionalidade Coletiva
O mesmo sofrimento que vemos no indivíduo se manifesta, em escala ampliada, na forma como lidamos com nossas crises coletivas. A psicanálise nos oferece uma chave de leitura poderosa: as grandes crises contemporâneas, como a climática e a política, não são meras falhas técnicas ou de gestão, mas sintomas de uma irracionalidade psíquica coletiva. Os mesmos mecanismos de defesa que usamos para não encarar nossas verdades pessoais estão sendo operados em escala global.
- A Negação da Realidade: A forma como, enquanto sociedade, continuamos a agir como se a crise climática não fosse uma emergência existencial é um exemplo clínico de negação em massa. Assim como um indivíduo que nega uma doença grave para não ter que lidar com a angústia da mortalidade, nós negamos uma verdade científica inconveniente para não termos que alterar nosso modo de vida e de consumo.
- A Fragmentação do Laço Social: A ascensão de bolhas ideológicas, da polarização extrema e do ódio ao diferente é um sintoma da fragmentação do laço social. O outro deixa de ser um semelhante com quem se partilha um mundo comum para se tornar uma ameaça ao nosso modo de vida. Psicanaliticamente, é um mecanismo de cisão (splitting), onde projetamos no “outro” tudo aquilo que consideramos mau, para mantermos uma imagem purificada de nós mesmos e de nosso grupo.
- Respostas Patológicas (Populismo e Ressentimento): O populismo e o ressentimento emergem como respostas patológicas a essa desorientação. Eles oferecem narrativas simplistas e bodes expiatórios fáceis para angústias complexas, canalizando o mal-estar não para uma crítica do sistema, mas para o ódio a um inimigo fabricado. Estamos, como diz o psicanalista Jorge Forbes, “desbussolados”, e essas ideologias oferecem uma bússola falsa, mas reconfortante.
A conexão entre o micro e o macro é direta, como nos provoca a pergunta: como nossa recusa em encarar verdades difíceis, como a crise climática, se parece com os mecanismos de negação que usamos em nossas vidas pessoais para não lidar com nossas próprias falhas? É a mesma lógica psíquica operando em diferentes escalas.
3. A Vida Codificada: A Gestão Algorítmica e a Captura do Desejo
Se a exaustão é o estado do sujeito e a negação é a lógica do coletivo, a governamentalidade algorítmica é o mecanismo que alimenta e aprofunda todo esse sistema. O poder no século XXI opera de forma mais sutil e, talvez por isso, mais eficaz. Ele não precisa mais da coerção física; ele opera por meio de uma captura tecnológica da nossa vida íntima.
A “governamentalidade algorítmica” é um governo que atua sobre nossa mentalidade, modulando e gerenciando nossos afetos para fins de mercado. Os algoritmos que regem nossas redes sociais, nossos serviços de streaming e nossas plataformas de consumo aprendem o que nos dá prazer, o que nos gera ansiedade, o que nos mantém engajados. Eles então nos alimentam com um fluxo contínuo de estímulos desenhados para capturar nossa atenção e direcionar nosso desejo.
Nesse processo, o corpo e o bem-estar são transformados em capital a ser otimizado. Os mesmos algoritmos que nos vendem produtos nos oferecem soluções para o mal-estar que eles próprios ajudam a criar: aplicativos de dieta, de meditação, de exercícios. Entramos em um ciclo onde o sofrimento se torna uma oportunidade de negócio. O efeito mais profundo dessa captura é a neutralização do desejo de emancipação. O anseio por liberdade é sutilmente canalizado para a “liberdade de escolher” entre as opções que o algoritmo nos apresenta. O desejo, que é por natureza uma força subversiva e singular, é domesticado e transformado em preferência de consumo. A pergunta que nos deixa nus diante de nós mesmos é: até que ponto nossas escolhas, gostos, emoções e desejos são genuinamente nossos, e até que ponto são construídos pelos algoritmos que nos cercam?
Conclusão: Rumo à Invenção de Novas Utopias
O diagnóstico é severo. O sujeito exausto, a razão adoecida e a vida codificada compõem a tríade do nosso mal-estar. Sentir-se em uma “paralisia crítica” diante desse cenário é uma reação compreensível. Contudo, o objetivo da psicanálise não é a paralisia, mas a inquietação lúcida que leva à ação.
Compreender que o ideal de prosperidade nos adoece, que nossas crises coletivas são sintomas de uma irracionalidade psíquica e que nosso desejo está sendo sutilmente capturado são os primeiros passos para a invenção de uma saída. A saída, como aponta o curso, articula-se na clínica como espaço de resistência, no ato político que nasce da consciência da dimensão social do nosso sofrimento e, fundamentalmente, na coragem de criar novas utopias — novas formas de pensar o sucesso, a felicidade e uma vida boa.
Ao final desta reflexão, a tarefa que se impõe é a de nos tornarmos conscientes do roteiro em que estamos inseridos, para que possamos, quem sabe, começar a escrever um novo, mais fiel a nós mesmos e menos servil a um sistema que nos promete o mundo enquanto nos rouba a alma.