Resumo
Este artigo aprofunda a análise dos capítulos 3 e 4 do curso “Psicanálise e Prosperidade”, dissecando o mal-estar na civilização meritocrática e os mecanismos de controle psíquico do neoliberalismo. A primeira seção, baseada no Capítulo 3, propõe uma releitura do mal-estar freudiano, argumentando que a lógica da performance deslocou o afeto dominante da culpa (pela transgressão) para a vergonha (pela inadequação). Analisamos como a competição generalizada, fomentada pela meritocracia, destrói os laços de solidariedade, e como a pressão pela performance gera o paradoxo da solidão na multidão. A segunda seção, a partir do Capítulo 4, investiga a gestão política dos afetos como a principal forma de poder contemporâneo, onde emoções como medo e esperança são moduladas para garantir a coesão social. Detalhamos como o desejo de emancipação é capturado e canalizado para o consumo, e como a promessa de um gozo infinito, mas impossível, é a ferramenta que mantém o sujeito preso em um ciclo vicioso de busca e frustração. Concluímos que a escuta psicanalítica é a ferramenta essencial para desmascarar essas manipulações e abrir caminho para a reapropriação do nosso desejo.
Palavras-chave: Psicanálise, Mal-Estar, Meritocracia, Vergonha, Solidão, Gestão dos Afetos, Desejo, Gozo, Neoliberalismo.
Introdução: Afinando a Escuta para um Mundo Complexo
Sejam bem-vindos a mais uma etapa de nossa jornada. Como psicanalista e professor com uma longa trajetória acadêmica em filosofia, pedagogia e teologia, minha intenção com este curso sempre foi a de socializar o conhecimento psicanalítico, historicamente restrito a uma elite, e transformá-lo em uma ferramenta potente para a leitura do nosso tempo, acessível a todas as camadas sociais. Após uma introdução que nos situou no terreno acidentado do neoliberalismo, adentramos agora o coração do primeiro módulo.
Os capítulos 3 e 4 nos convidam a um mergulho em duas faces do mesmo fenômeno. Primeiro, analisaremos a face social e relacional do mal-estar: como a cultura da meritocracia reconfigurou nosso sofrimento, transformando nossos pares em rivais e nos deixando paradoxalmente sós em meio à hiperconectividade. Em seguida, investigaremos a face mais sutil e política: como nossos próprios afetos e desejos se tornaram o principal campo de batalha e de controle no século XXI. A complexidade é grande, e a necessidade de “revisitas” ao material é, como sempre, o segredo para transformar a informação em uma aprendizagem genuína.
Capítulo 3: O Mal-Estar na Civilização Meritocrática
Freud, em seu texto canônico “O Mal-Estar na Civilização”, diagnosticou o sofrimento de seu tempo como o preço a pagar pela vida em sociedade: a renúncia pulsional em nome da segurança coletiva, gerando um sentimento de culpa onipresente. O século XXI, contudo, produziu uma nova e talvez mais perversa forma de mal-estar.
1.1. O Novo Sofrimento: Da Culpa pela Transgressão à Vergonha pelo Fracasso
A tese central deste capítulo é que vivemos uma migração do afeto dominante. Saímos de uma lógica baseada na culpa para uma baseada na vergonha. Na sociedade disciplinar analisada por Freud, o sofrimento derivava da transgressão de uma Lei, de um “não” imposto pela cultura ou pela religião. O sujeito se sentia culpado por ter desejado ou feito algo proibido.
Na nossa sociedade do desempenho, a lógica se inverteu. O imperativo não é mais “Não faças!”, mas “Tu deves!”. Deves ser bem-sucedido, feliz, produtivo, otimizado. O ideal de performance é inatingível, e o sofrimento emerge não da transgressão, mas da falha em atingir esse ideal. A vergonha e a inadequação tornam-se os afetos centrais. Não sofremos mais tanto pelo que nos é proibido, mas por tudo aquilo que sentimos que falhamos em ser e em realizar. A pergunta que nos assombra é: se a nossa autoestima depende de um ideal inatingível, como podemos aceitar e abraçar a nossa humanidade imperfeita?
1.2. A Competição Generalizada: O Outro como Rival
A ideologia da meritocracia é o motor dessa cultura da performance. Ela nos vende uma promessa aparentemente justa: o sucesso depende apenas do mérito e do esforço de cada um. No entanto, ao individualizar radicalmente a responsabilidade pelo sucesso, ela produz um efeito colateral devastador: a transformação de todas as relações sociais em uma competição generalizada.
O outro deixa de ser um par, um companheiro de jornada, para se tornar um rival na corrida pelo reconhecimento, pelos recursos escassos, pelos “likes”. Essa dinâmica, que já se manifestava em ambientes escolares décadas atrás, como na competição por notas, hoje se tornou a regra em quase todas as esferas da vida. Ela destrói os laços de solidariedade, gera um ambiente de desconfiança mútua e nos aprisiona em um ciclo de comparação constante que alimenta a vergonha pela inadequação. Se a colaboração é vista como fraqueza e a competição como virtude, a pergunta que se impõe é: se todos são rivais na corrida pelo reconhecimento, como podemos construir pontes de colaboração e apoio mútuo em vez de muros?
1.3. A Solidão na Multidão: O Paradoxo da Hiperconexão
A consequência afetiva direta da meritocracia e da competição é a solidão. Vivemos o grande paradoxo da hiperconectividade: nunca estivemos tão conectados tecnologicamente e, talvez, nunca nos sentimos tão sós. A razão para isso é que a pressão para performar sucesso e esconder a vulnerabilidade impede a formação de vínculos autênticos.
Um vínculo genuíno se constrói na partilha da fragilidade, na possibilidade de se mostrar imperfeito e ser acolhido. Em um mundo onde todos são concorrentes e onde cada interação é uma performance para as redes sociais, mostrar a própria falha se torna perigoso. A solidão, portanto, emerge não da ausência de pessoas, mas da impossibilidade de partilhar a própria fragilidade. A questão que nos interpela é um desafio para nossa forma de viver: em um mundo onde mostramos apenas o nosso melhor lado, como podemos criar espaços seguros para sermos verdadeiramente vistos e aceitos com todas as nossas imperfeições?
Capítulo 4: A Gestão Política dos Afetos e o Aprisionamento do Desejo
Se o capítulo 3 descreve os sintomas sociais do mal-estar, o capítulo 4 mergulha na maquinaria psíquica que o produz e o sustenta. Ele analisa como o poder contemporâneo opera não pela força bruta, mas pela administração sutil de nossas emoções e desejos.
2.1. A Engenharia das Emoções: A Gestão Política dos Afetos
O poder hoje opera ao administrar as emoções coletivas. O medo, a esperança, a ansiedade e a indignação não são apenas sentimentos espontâneos; são afetos que podem ser, e são, estrategicamente produzidos, modulados e circulados pelo mercado, pela mídia e pela política. O medo de uma crise pode justificar medidas de austeridade. A esperança em um novo produto pode alimentar o consumo. A ansiedade da performance nos mantém dóceis e produtivos. O poder aprendeu a “governar” ao gerar climas emocionais que produzem comportamentos desejáveis e neutralizam afetos que poderiam ser disruptivos, como a raiva coletiva organizada. A consequência é uma sensação de autonomia ilusória: acreditamos que sentimos de forma autêntica, quando, na verdade, estamos sendo “afetivamente” manipulados. A reflexão que se impõe é profunda: se nossas emoções são ferramentas políticas e de mercado, como podemos discernir o que sentimos autenticamente daquilo que nos é induzido?
2.2. O Desejo Desviado: A Captura da Emancipação pelo Consumo
Um dos mecanismos mais sofisticados dessa gestão de afetos é a captura do desejo de emancipação. O anseio legítimo por um mundo mais justo, por uma vida mais autêntica, por uma transformação real, é sistematicamente interceptado e canalizado para o circuito do consumo.
O ato de comprar um produto “ético”, “sustentável” ou com uma marca “rebelde” passa a substituir a ação política genuína. O mercado nos oferece a sensação de protesto e de participação, sem que nenhuma estrutura de poder seja de fato questionada. O desejo por mudança é satisfeito simbolicamente no ato da compra, neutralizando seu potencial disruptivo. Quando comprar se torna um ato de protesto, o que resta do verdadeiro poder de mudança da ação coletiva?
2.3. A Promessa do Gozo Infinito: O Motor da Insatisfação
O principal instrumento de captura do desejo é a promessa de um gozo infinito. O mercado e a cultura da prosperidade não nos prometem um prazer simples e limitado. Eles nos acenam com uma fantasia de satisfação absoluta, uma experiência total que finalmente preencherá nosso vazio. Essa promessa, contida em cada novo produto, em cada nova experiência, é, por definição, impossível de ser cumprida.
É exatamente essa impossibilidade que garante a perpetuação do sistema. A psicanálise nos ensina que o desejo se alimenta da falta. Ao nos prometer uma satisfação final que nunca entrega, o sistema garante que a falta se renove perpetuamente, mantendo nosso desejo sempre em movimento, sempre em busca do próximo objeto, da próxima meta. Ficamos presos em um ciclo vicioso de busca e frustração, que nos esgota e nos impede de questionar a própria lógica do ciclo. Essa dinâmica nos coloca diante do dilema entre “ser” e “ter”, e da questão final de nossa reflexão: se a verdadeira satisfação é inatingível no consumo, como podemos romper esse ciclo e encontrar contentamento fora da lógica do “ter sempre mais”?
Conclusão: Da Escuta à Ação
A jornada por estes dois capítulos nos revela a arquitetura do nosso sofrimento. De um lado, uma sociedade meritocrática que nos isola, nos envergonha e nos adoece. De outro, um sistema de poder sutil que gerencia nossas emoções e captura nosso desejo para se perpetuar.
A tarefa que se desenha para nós, ao longo deste curso, é a de continuar a afinar nossa escuta para esses fenômenos. A psicanálise nos oferece as ferramentas não para nos conformarmos, mas para resistirmos. Resistir, aqui, significa aprender a decodificar nosso próprio sofrimento, a desmascarar as manipulações de nosso desejo e a questionar os ideais que nos foram vendidos. É um trabalho complexo, que exige revisitas e elaboração, mas é o único caminho para sairmos da posição de vítimas de um mal-estar para nos tornarmos agentes conscientes na busca por uma prosperidade que seja, finalmente, nossa.

