Resumo
Este artigo finaliza a jornada pelo curso “Psicanálise e Prosperidade”, focando no módulo de “Crítica, Clínica e Emancipação” e traçando um caminho da análise à ação. A primeira seção, baseada no Capítulo 19, “Maneiras de Transformar Mundos”, argumenta que uma política de emancipação eficaz deve considerar a dimensão psíquica, especialmente o gozo que encontramos em nossa própria servidão. Propomos o desejo singular como o verdadeiro motor de transformação e o ato político não como reforma, mas como uma ruptura que altera as regras do jogo. A segunda seção, a partir do Capítulo 20, “A Invenção de Novas Utopias”, aborda a tarefa de reativar a imaginação utópica para além da lógica do crescimento infinito. Defendemos que essas novas utopias devem se fundar em uma “nova bússola” de valores: a centralidade do laço social, o respeito à singularidade e a aceitação da finitude. Por fim, redefinimos a política como uma invenção contínua de formas de vida, um processo e uma travessia, não um destino final. Concluímos que o fim deste curso é o início de uma missão ética: a de desconstruir as ideologias que nos adoecem para resgatar a nossa singularidade, o nosso laço com o outro e o verdadeiro sabor da existência.
Palavras-chave: Psicanálise, Emancipação, Desejo Singular, Ato Político, Utopia, Laço Social, Finitude, Neoliberalismo.
Introdução: A Travessia para um Novo Começo
Chegamos ao nosso último encontro, ao momento de fechar um ciclo que, como toda experiência psicanalítica genuína, é na verdade a abertura para um novo. A “peninha no coração” que sentimos é o sinal de que algo importante foi vivido nesta travessia. Percorremos um longo caminho de crítica, desconstruindo o discurso da prosperidade, diagnosticando o sujeito neoliberal e revelando as engrenagens de um sistema que transforma nossas emoções em mercadorias. Agora, nos capítulos finais, a tarefa se inverte: da crítica, passamos à invenção; do diagnóstico, à proposição.
Este artigo se propõe a ser o catalisador dessa passagem. Exploraremos os caminhos para a emancipação, não como fórmulas prontas, mas como pistas, como provocações para uma práxis que se inicia agora. No primeiro momento, investigaremos como uma política de transformação real precisa levar em conta o nosso inconsciente, o poder do desejo singular e a potência do ato como ruptura. Em seguida, abraçaremos a tarefa mais difícil e mais bela: a de reinventar utopias, de imaginar outros futuros possíveis, guiados por uma nova bússola de valores. Este não é um ponto final, mas o momento em que a nossa “mochila” de conhecimentos se transforma em ferramenta para a caminhada que agora começa. Com gratidão pela confiança e pela perseverança, iniciemos este último e mais importante movimento.
Capítulo 19: Maneiras de Transformar Mundos – Uma Política que Leva em Conta o Inconsciente
Após um longo percurso de crítica, a pergunta que emerge é: como transformar o mundo? A psicanálise nos oferece uma resposta complexa e, por vezes, desconcertante. Ela nos diz que a mudança não virá apenas de uma crítica racional, mas de uma intervenção no nível mais profundo da nossa constituição psíquica: o desejo e o gozo.
A Revolução Interior: Por que a Crítica Racional Não Basta
Uma política de emancipação que queira ter resultados precisa considerar a dimensão psíquica, especialmente o gozo que os sujeitos encontram em sua própria servidão. Este é um dos paradoxos mais difíceis de aceitar: nós não apenas nos submetemos a um sistema que nos oprime; nós extraímos dele pequenos prazeres, pequenas seguranças, uma identidade. A obediência às normas, a performance bem-sucedida, a validação que recebemos ao seguir o roteiro — tudo isso nos proporciona uma forma de satisfação, um gozo que nos mantém aprisionados. Uma crítica puramente racional, que apenas aponta os erros do sistema, não é suficiente para nos fazer abandonar esses ganhos secundários. É preciso operar no nível das fantasias que nos alimentam. A pergunta que nos desnuda é: quais pequenos prazeres e seguranças a nossa obediência às normas nos proporciona, e o que tememos perder se as desafiarmos?
A Primeira Rachadura: O Desejo Singular como Potência Criadora
Se o gozo na servidão nos aprisiona, o que nos liberta? A análise argumenta que a transformação radical não nascerá de um grande programa universal, mas da erupção de um desejo singular que recusa ser enquadrado pela norma. Como na arte japonesa do Kintsugi, que valoriza as rachaduras de um vaso preenchendo-as com ouro, é a “falha”, a “rachadura”, o “não” particular de um sujeito ou de um grupo que possui a força para desestabilizar a ordem e criar novas possibilidades. O desejo, em sua essência, é aquilo que em nós é único, não-padronizável e, portanto, resistente à lógica do mercado. É o momento em que um sujeito diz: “Eu não quero isso que me oferecem, eu desejo outra coisa”. Esse ato de recusa, por menor que seja, introduz uma fissura no sistema. Você consegue se lembrar de um momento em que o seu “não” a uma pequena ou grande norma abriu um caminho inesperado para você ou para outros?
Mudando o Jogo: O Ato Político como Criação de Realidade
O conceito de ato político, na perspectiva psicanalítica, não é o de uma reforma dentro das regras, mas o de um gesto de ruptura que altera as próprias regras do jogo. É um evento, muitas vezes imprevisível e que pode partir de um gesto singular, que funda uma nova realidade simbólica. É o ato que demonstra, na prática, que a servidão voluntária não é um destino inevitável. Pode ser um ato de desobediência civil, uma greve que paralisa o sistema, uma obra de arte que muda nossa forma de ver o mundo, ou um simples “não” dito em um momento crucial. O ato político é aquele que não joga o jogo, mas que vira o tabuleiro. A pergunta que nos convoca à agência é: se você pudesse fazer um gesto, por menor que fosse, que mudasse uma regra do jogo em sua comunidade ou em seu trabalho, qual seria?
Capítulo 20: A Invenção de Novas Utopias – Para Além da Prosperidade Neoliberal
Após a crítica ao ideal de prosperidade como uma distopia e a identificação do ato como motor de ruptura, o capítulo final nos coloca diante da tarefa mais criativa: a de reativar a imaginação utópica.
Cartografias do Possível: A Urgência de Imaginar
A tarefa final é usar a imaginação para pensar e experimentar novas formas de vida. Não se trata de buscar um modelo perfeito e totalitário, mas de nos libertarmos da tirania de uma única lógica, a do crescimento infinito, como o único futuro possível. É um convite a desenhar novos mapas, a criar “cartografias do possível”. Se a ideologia neoliberal nos aprisionou em uma única história sobre o que é uma vida boa, a emancipação começa com a coragem de contar outras histórias. Se você pudesse desenhar um mapa de uma sociedade mais desejável, como seria esse mapa?
A Nova Bússola: Laço, Singularidade e Finitude
Essas novas utopias, para não repetirem os erros do passado, devem se fundar em valores radicalmente opostos aos do sistema atual. A aula nos oferece uma “nova bússola” com três eixos fundamentais:
- A Centralidade do Laço Social: Contra o individualismo predatório, a afirmação da nossa interdependência. A valorização da solidariedade, do cuidado mútuo e da comunidade como a base da vida.
- O Respeito à Singularidade: Contra a padronização do mercado, a celebração da diferença, do desejo único de cada um, da história particular que nos constitui.
- A Aceitação da Finitude: Contra a fantasia de onipotência e imortalidade, o reconhecimento de nossos limites como seres humanos e dos limites ecológicos do nosso planeta.
Esses três valores são, em si, um programa político e existencial. A pergunta que eles nos colocam é um guia para a ação cotidiana: como seria nossa vida diária e nossas decisões se fossem guiadas pela qualidade dos nossos relacionamentos e pelo respeito aos limites (nossos e do planeta), em vez da busca por crescimento e performance?
O Horizonte Aberto: A Política como Invenção e Travessia
Em última instância, a proposta é a de redefinir a própria política. Ela deixa de ser apenas a gestão do poder para se tornar a atividade coletiva e criativa de inventar e experimentar formas de vida mais justas, sustentáveis e desejáveis. A emancipação, nessa visão, não é a chegada a um destino final, a um paraíso na Terra. Ela é um processo contínuo de criação, um caminho que se faz ao caminhar. Como diz o poeta, o sentido da caminhada não está na partida nem na chegada, mas na travessia. A pergunta final, que nos lança para fora deste curso e para dentro da vida, é: qual pequena forma de vida — um novo hábito, uma nova forma de se relacionar, um novo projeto coletivo — podemos começar a inventar hoje mesmo?
Conclusão: A Missão da Humanização
Encerramos nosso curso com a mochila carregada. Desconstruímos um sistema que aprisiona nossos desejos e transforma nossas emoções em mercadorias. Vimos a tirania do “Eu, S.A.”, a fusão perigosa entre a intimidade e a vida laboral, e a necessidade de resgatar fronteiras para garantir nossa sanidade. Mais importante, terminamos com uma bússola em mãos, apontando para a centralidade do laço social, da singularidade e da finitude.
A gratidão pela confiança e pela perseverança nesta jornada é imensa. Saímos diferentes. O curso, ao nos fornecer novas informações, novas conexões e novos olhares, nos transformou. A tarefa agora é levar essa transformação para o mundo. Que possamos usar o que aprendemos para sermos mais humanos e, portanto, mais inclusivos. Que tenhamos a coragem de desconstruir as ideologias que nos sabotam, não por um exercício de niilismo, mas para resgatarmos o verdadeiro sabor da existência. Que a psicanálise continue a ser, para todos nós, uma ferramenta para olhar a nossa ancestralidade, a nossa linhagem familiar e as gerações que virão com mais consciência, para que possamos, enfim, quebrar os ciclos de trauma e sermos agentes de cura. A caminhada continua.