Psicanálise, Traição Amorosa e Autossabotagem: Uma Análise Profunda dos Vínculos na Contemporaneidade

Introdução: Ser Mais do que Parecer em Tempos de Vínculos Descartáveis

“Esse quam videri” — ser, mais do que parecer. A máxima da Roma Antiga, evocada como um convite à autenticidade, ressoa hoje com uma urgência paradoxal. Na era da performance digital, dos perfis curados e das relações mediadas por telas, a provocação se inverte: parecemos muito mais do que somos. É neste cenário de crescente inautenticidade e mal-estar que a experiência da traição amorosa emerge não como um mero desvio moral, mas como um sintoma complexo e doloroso das dinâmicas que regem nossos afetos. Quando a traição se entrelaça com a autossabotagem, o fenômeno revela camadas ainda mais profundas, apontando para conflitos inconscientes que nos levam a destruir aquilo que mais desejamos.

Este artigo propõe uma imersão no universo da traição amorosa e da autossabotagem sob a ótica da psicanálise. Longe de oferecer respostas simplistas ou julgamentos, a escuta psicanalítica nos convida a investigar as raízes do sofrimento, a decifrar a gramática do desejo e a compreender por que, tantas vezes, agimos contra nós mesmos. Analisaremos o palco contemporâneo que favorece a fragilidade dos laços, a cena da traição como uma falha no reconhecimento do outro, a ferida traumática que ela inflige e, por fim, os caminhos clínicos para a reparação e a reinvenção dos vínculos. Trata-se de uma jornada para entender não apenas por que a traição acontece, mas o que ela revela sobre nós, nossas relações e a cultura em que estamos inseridos.

Parte 1: O Palco Contemporâneo da Traição — Narcisismo, Desempenho e Laços Líquidos

Para compreender a traição hoje, é preciso antes analisar o terreno em que os relacionamentos florescem e, com frequência, murcham. O século XXI erigiu um palco social cujas características fomentam um profundo mal-estar nos vínculos, tornando-os mais suscetíveis à ruptura e à deslealdade. Três eixos estruturantes se destacam: a cultura do narcisismo, a tirania do desempenho e a liquidez dos laços.

O Narcisismo e o Amor como Concorrência: A sociedade neoliberal, com sua lógica de mercado estendida a todas as esferas da vida, transformou o amor em mais um campo de competição. O outro deixa de ser um parceiro de jornada para se tornar um troféu, um acessório que agrega valor à nossa imagem, um ativo em nosso portfólio de sucesso pessoal. Essa dinâmica nutre o que a psicanálise chama de narcisismo. O sujeito contemporâneo, pressionado a ser um “empresário de si mesmo”, busca no parceiro um espelho que reflita uma imagem idealizada. O amor se torna uma busca por validação, e o parceiro é avaliado por sua performance: quão bem ele ou ela cumpre o papel de nos fazer parecer bem-sucedidos, desejáveis e felizes. Quando o outro falha em cumprir essa função — quando revela suas próprias falhas, vulnerabilidades ou simplesmente sua alteridade irredutível —, a decepção narcísica pode ser o estopim para a busca de um “substituto” mais eficiente. A traição, nesse contexto, pode ser um ato desesperado para restaurar uma autoimagem fragilizada.

A Fábrica de Impostores e a Cultura do Desempenho: Essa lógica de mercado cria uma “fábrica de impostores”. Vivemos sob a tirania do desempenho, onde a autenticidade é sacrificada no altar da performance. As redes sociais são a vitrine máxima dessa dinâmica: vidas editadas, sorrisos constantes e sucessos ininterruptos. Nas relações amorosas, essa pressão se traduz na obrigação de ser o parceiro perfeito, o amante incansável, o companheiro sempre interessante. O medo de mostrar as próprias fragilidades e imperfeições gera um abismo entre o que se é e o que se parece ser. Essa inautenticidade crônica impede a construção de uma intimidade verdadeira, baseada no reconhecimento mútuo. A traição pode surgir nesse vácuo, como uma busca por um espaço onde seja possível, ainda que de forma ilícita e fugaz, despir-se das máscaras e vivenciar um desejo não filtrado pela necessidade de performar.

Os Laços Líquidos de Zygmunt Bauman: O sociólogo Zygmunt Bauman diagnosticou com precisão a condição dos nossos vínculos ao cunhar o termo “amor líquido”. Em uma cultura do consumo e do imediatismo, as relações tornam-se mercadorias, sujeitas à mesma lógica da descartabilidade. O compromisso a longo prazo assusta, pois implica renunciar a outras “opções” que o mercado de afetos parece oferecer infinitamente. Os laços são “líquidos”: flutuantes, mutantes, sem forma definida e fáceis de romper. A promessa de felicidade se desloca da construção de uma relação para a emoção sempre renovada do início. Nesse cenário, a fidelidade perde seu valor como um pilar ético para se tornar um cálculo de custo-benefício. A traição deixa de ser vista como uma fratura trágica para ser encarada como uma “atualização” ou uma “diversificação” de investimentos afetivos, um reflexo direto da fragilidade e da transitoriedade que definem a experiência contemporânea.

Parte 2: A Cena da Traição — Desejo, Transgressão e a Falha no Reconhecimento

Se o contexto cultural prepara o terreno, a cena da traição em si é um drama psíquico complexo, movido por forças inconscientes poderosas. A psicanálise nos ajuda a desmontar essa cena, revelando três elementos centrais: a natureza do desejo, o ato de transgressão e a falha fundamental no reconhecimento do outro.

O Desejo que nos Queima: Para Além da Moralidade: Do ponto de vista psicanalítico, o desejo não é sinônimo de necessidade ou de vontade consciente. Ele é uma força pulsante, insaciável e, por natureza, transgressora. O desejo nasce de uma falta fundamental e está sempre buscando algo que, em última instância, nunca poderá ser plenamente alcançado. Ele opera numa lógica que transcende a moralidade do “pode” ou “não pode”. A estrutura social, a cultura e os contratos amorosos tentam impor limites a essa força caótica através da Lei (simbólica), mas o desejo sempre encontra fissuras para se manifestar. A traição, muitas vezes, é a manifestação de um desejo que foi reprimido, negado ou que não encontrava espaço dentro do contrato do relacionamento. É importante notar que esse “desejo que queima” não é necessariamente por outra pessoa, mas pode ser um desejo de se sentir vivo, de romper com a monotonia, de testar limites ou, paradoxalmente, de destruir a própria felicidade.

A Transgressão dos Combinados e a Dinâmica da Autossabotagem: A traição é, objetivamente, a quebra de um pacto de lealdade e exclusividade, seja ele explícito ou implícito. É a transgressão de um combinado. No entanto, o que torna esse ato tão devastador é que ele representa uma falha radical no reconhecimento do outro. No momento da traição, o parceiro deixa de ser um sujeito com seus próprios sentimentos e história e é instrumentalizado, reduzido a um obstáculo ou a uma figura secundária na busca pela satisfação de um desejo.

É aqui que a dinâmica da autossabotagem se revela com clareza. O ato de trair pode ser uma forma inconsciente de atacar o próprio vínculo, especialmente se este é percebido como bom e valioso. Por que alguém destruiria algo que lhe traz felicidade? A psicanálise oferece algumas pistas: uma culpa inconsciente que exige punição; a repetição de padrões de abandono vividos na infância; um medo paralisante da intimidade, que leva o sujeito a destruir a relação antes que ela o “aprisione” ou o decepcione; ou a atuação da pulsão de morte, uma tendência inerente ao psiquismo para a desagregação e a destruição. A autossabotagem é a prova de que nem sempre buscamos o nosso próprio bem; muitas vezes, somos movidos por forças que operam contra os nossos interesses conscientes.

A Morte do Outro: A Erosão da Alteridade: O cerne da dor na traição não reside apenas no ato sexual com um terceiro, mas na “morte simbólica” do parceiro traído. É a experiência de ser tornado invisível, de ter sua existência e seus sentimentos desconsiderados. A traição apaga a alteridade, ou seja, a qualidade do outro de ser um indivíduo único e diferente de mim. O segredo, a mentira e o ciúme que orbitam o ato de trair são manifestações dessa erosão. Ocultar a verdade é uma forma de negar ao outro o direito de participar da realidade, tratando-o como um objeto que pode ser manipulado. A descoberta da traição, portanto, não é apenas a descoberta de um fato, mas a revelação brutal de que o reconhecimento mútuo, pilar de toda relação de amor, foi quebrado.

Parte 3: A Ferida e a Memória — Trauma, Ressentimento e o Luto Impossível

O impacto da traição no psiquismo é profundo e duradouro, configurando-se, muitas vezes, como uma experiência traumática. A dor que se segue não é apenas emocional, mas atinge as fundações da identidade e da confiança no mundo.

A Anatomia do Trauma da Traição: Um trauma, na definição psicanalítica, é um evento que inunda o aparelho psíquico com uma quantidade de excitação que ele é incapaz de processar. A descoberta de uma traição funciona exatamente assim: ela estilhaça a narrativa que a pessoa tinha sobre sua vida, seu parceiro e si mesma. A confiança, que funcionava como um alicerce invisível, é pulverizada. O mundo, antes previsível e seguro, torna-se um lugar ameaçador. A pessoa traída é assaltada por pensamentos obsessivos, flashbacks, desconfiança generalizada e uma profunda sensação de desvalorização. A ferida é narcísica: ataca a autoestima e o senso de identidade. “Quem sou eu, se a pessoa que eu mais amava me enganou?” “O que há de errado comigo?”. A clínica da destrutividade se instala, e a pessoa pode ficar presa a um ciclo de dor e repetição.

Ressentimento: O Afeto que Aprisiona: Uma das sequelas mais tóxicas da traição é o ressentimento. Diferente da raiva, que é um afeto ativo e pode levar à ação, o ressentimento é passivo e ruminativo. É a indignação que não encontra saída, o veneno que se bebe esperando que o outro morra. A pessoa ressentida fica psiquicamente acorrentada ao agressor e ao evento traumático. Ela revive a dor continuamente, em um esforço inútil de “corrigir” o passado. O ressentimento impede o trabalho do luto, pois mantém a ferida aberta e a conexão com o objeto perdido, ainda que seja uma conexão de ódio. Libertar-se do ressentimento é um dos maiores desafios clínicos, pois exige a difícil decisão de abandonar a posição de vítima e retomar a agência sobre a própria vida.

O Luto Não Trabalhado e a Repetição: Toda perda significativa exige um trabalho de luto — um processo doloroso de se despedir do que foi perdido para poder, então, reinvestir a energia psíquica em novos objetos e projetos. A traição impõe o luto não apenas do parceiro como ele era conhecido, mas da relação, dos sonhos compartilhados e da própria inocência. Quando esse luto é bloqueado pelo trauma ou pelo ressentimento, ele se torna um “luto impossível”. A pessoa fica presa ao passado, incapaz de seguir em frente. Uma das consequências mais comuns de um luto não trabalhado é a compulsão à repetição: a pessoa, inconscientemente, busca recriar em novas relações o mesmo cenário de traição e abandono, numa tentativa desesperada de, desta vez, dominar a situação e obter um resultado diferente. É uma forma trágica de autossabotagem que perpetua o sofrimento.

Parte 4: Contratos em Ruínas e o Horizonte Clínico da Reparação

Se a traição é um sintoma de um mal-estar pessoal e cultural, a clínica psicanalítica oferece um horizonte de possibilidade. Não se trata de buscar culpados, mas de construir sentido e responsabilidade, abrindo caminhos para a reparação, o perdão e a reinvenção.

O Fim do Patriarcado e a Crise da Autoridade Simbólica: O drama da traição se intensifica em um contexto de “contratos em ruínas”. O declínio de estruturas tradicionais como o patriarcado e a religião, que antes ditavam as regras das relações, deixou um vácuo. A “palavra sem lei” se generaliza, as promessas se tornam frágeis e a autoridade simbólica que garantia os pactos está em crise. Hoje, cada casal precisa inventar suas próprias regras, negociar seus próprios contratos. Essa liberdade, embora positiva, também gera angústia e instabilidade. Sem referenciais externos sólidos, a confiança no outro se torna o único pilar, e quando ele desmorona, tudo vem abaixo.

A Escuta Psicanalítica: Ressignificar a Narrativa: Na clínica, o objetivo não é restaurar a relação a qualquer custo, mas criar um espaço seguro para que a dor possa ser dita e escutada. O trabalho consiste em ajudar o paciente a “reconfigurar a narrativa”. Isso significa passar da repetição obsessiva dos fatos (“o que ele/ela fez”) para uma investigação do sentido (“por que isso me aconteceu? o que isso diz sobre mim e meus desejos?”). A escuta psicanalítica busca conectar a crise atual com a história de vida do sujeito, identificando padrões e conflitos inconscientes. É um trabalho de tecelagem, de “conectar as feridas” para que a história possa ser integrada e ressignificada, transformando o trauma em experiência.

O Perdão como Trabalho Psíquico e a Reconstrução: O perdão, na perspectiva psicanalítica, não é um ato moral ou religioso de absolvição. É um complexo e árduo “trabalho psíquico”. Perdoar não significa esquecer, justificar o ato ou necessariamente reconciliar-se. Significa, acima de tudo, libertar a si mesmo do poder do agressor e do ressentimento que aprisiona. É o ato final do luto, a decisão de parar de sofrer e de investir a energia na reconstrução da própria vida. Esse processo pode levar à “reinvenção de novos vínculos”, seja com o mesmo parceiro, sobre bases radicalmente novas de honestidade e reconhecimento, seja com outras pessoas. O objetivo último é reconstruir a capacidade de confiar — em si mesmo e no outro —, superando a lógica da deslealdade e do mal-estar.

Conclusão: A Coragem de Ser

A jornada pela paisagem devastada da traição amorosa e da autossabotagem nos leva de volta ao ponto de partida: a tensão entre ser e parecer. A traição, em sua essência, é um produto da inautenticidade — a nossa e a da nossa cultura. Ela floresce onde a performance substitui a presença, onde o narcisismo impede o reconhecimento e onde os laços são tão líquidos que se evaporam ao primeiro sinal de dificuldade. A autossabotagem, por sua vez, é o grito desesperado de um desejo que não encontra outra forma de se expressar senão através da destruição.

A psicanálise não oferece uma vacina contra a dor da traição, mas oferece uma ferramenta poderosa: a busca pela verdade de si mesmo. Ao nos ajudar a compreender as forças inconscientes que nos movem, ela nos convida a assumir a responsabilidade por nossos desejos e a construir relações baseadas não em ideais performáticos, mas no reconhecimento corajoso das nossas vulnerabilidades e imperfeições. O caminho para curar o “mal-estar nos vínculos” passa, necessariamente, por curar o mal-estar dentro de nós. Exige a coragem de abandonar as máscaras e, finalmente, escolher ser, em vez de apenas parecer.

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