A Constelação da Traição: Um Mergulho Psicanalítico nos Vínculos Contemporâneos

Introdução: Para Além do Ato, o Sintoma

A traição amorosa, com a sua carga de dor, quebra e desilusão, é um dos dramas mais universais e atemporais da experiência humana. No entanto, abordá-la exclusivamente sob a ótica da moralidade, do erro ou da falha de caráter, é permanecer na superfície de um fenômeno que, na contemporaneidade, revela-se como um sintoma agudo de um mal-estar mais profundo. A escuta psicanalítica nos convida a suspender o julgamento para investigar: o que a traição diz sobre a nossa cultura, sobre a estrutura dos nossos desejos e sobre as feridas invisíveis que carregamos? Quando entrelaçada com a autossabotagem, o quadro se torna ainda mais complexo, apontando para uma lógica inconsciente onde o sujeito se torna o algoz de sua própria felicidade.

Este artigo propõe-se a construir uma “constelação de pensamento” em torno da traição, utilizando como estrelas-guia a rica bibliografia de psicanalistas e teóricos que se debruçaram sobre a crise dos laços no século XXI. Não se trata de uma simples resenha, mas de um esforço de articulação, tecendo as contribuições de autores como Joel Birman, Maria Rita Kehl, Jessica Benjamin e Massimo Recalcati em uma narrativa coerente. Partiremos do palco social — o contexto cultural que fragiliza os vínculos — para, em seguida, mergulhar na gramática oculta da traição — as dinâmicas psíquicas do desejo e do reconhecimento — e, por fim, explorar o horizonte clínico — os caminhos para a elaboração do trauma, o trabalho do perdão e a possibilidade de reinvenção. É um convite para dialogar com esses pensadores e, através deles, compreender por que a traição amorosa é, hoje, muito mais do que um drama privado: é um espelho das nossas contradições coletivas.

Parte 1: O Palco Contemporâneo – A Cultura que Esvazia os Vínculos

Para entender por que a traição e a descartabilidade se tornaram tão prevalentes, é imperativo analisar o pano de fundo cultural. Diversos autores convergem para um diagnóstico: vivemos em uma sociedade cujos valores centrais minam ativamente a possibilidade de construir laços sólidos e duradouros.

A Gramática do Mal-Estar: Narcisismo e Performance

Joel Birman, em sua análise do sujeito na contemporaneidade, oferece um ponto de partida crucial. Ele descreve a “gramática do mal-estar” atual como sendo regida por uma cultura do narcisismo e da performance. O sujeito é incessantemente convocado a ser um “empresário de si”, a gerir sua imagem e a performar sucesso em todas as áreas da vida, inclusive na afetiva. Como aponta Jorge Alemán, a lógica neoliberal transborda para o amor, transformando parceiros em concorrentes ou em ativos que valorizam nosso “portfólio” pessoal. O outro não é mais buscado em sua alteridade, mas como um espelho que deve refletir uma imagem grandiosa de nós mesmos.

Nesse contexto, os laços se tornam “descartáveis”. Se o parceiro apresenta uma falha, se não corresponde mais à performance idealizada, ele pode ser facilmente substituído. A fidelidade, que exige a aceitação da falta e da imperfeição do outro, torna-se um ato quase subversivo. Roland Gori aprofunda essa questão com o conceito de “fábrica de impostores”: a pressão pela performance cria sujeitos inautênticos, forçados a usar máscaras que não correspondem ao seu ser. A traição pode surgir, então, como uma busca desesperada por um espaço de autenticidade, ainda que ilícito, ou como consequência inevitável de uma relação construída sobre a inautenticidade.

O Fim do Patriarcado e a Crise da Palavra de Lei

Somando-se a isso, vivemos o impacto do declínio de estruturas simbólicas que antes balizavam as relações. Luciano Lutereau e Jean-Pierre Lebrun analisam como a queda da autoridade patriarcal e a crise da “palavra de lei” fragilizam as promessas. Se antes os contratos amorosos eram sustentados por uma autoridade externa (a tradição, a religião, a lei), hoje eles dependem quase que exclusivamente da palavra empenhada entre os sujeitos. Essa liberdade, embora libertadora, gera novas angústias. Sem essas referências tradicionais, a confiança se torna o único alicerce, e quando ela se quebra, a estrutura inteira desmorona. Nesse vácuo, como aponta Paul Verhaeghe, o individualismo e a solidão se aprofundam, tornando paradoxalmente possível a experiência de uma solidão radical mesmo dentro de um relacionamento.

Parte 2: A Gramática Oculta da Traição – Desejo, Reconhecimento e Ressentimento

Se o palco cultural prepara o terreno, a cena da traição é movida por forças psíquicas profundas, que a psicanálise se dedica a decifrar.

O Desejo que nos Queima e a Natureza da Transgressão

Sarantis Tarnopoulos, ao falar do “desejo que nos queima”, toca no cerne da questão. A psicanálise, desde Freud, entende o desejo não como uma busca pela satisfação plena, mas como uma força transgressora por natureza, nascida de uma falta primordial. Ele sempre aponta para algo além do permitido. Adam Phillips complementa essa visão ao nos fazer pensar sobre os “desejos não proibidos” — aqueles que nos são mais próprios, mas que, por medo ou repressão, não conseguimos viver. A incapacidade de dar vazão a esses desejos autênticos pode nos levar, paradoxalmente, a buscar prazeres destrutivos, onde a transgressão pela transgressão se torna mais importante que o objeto do desejo em si. A traição, nesse sentido, não é apenas a quebra de um contrato moral, mas a manifestação de um drama interno sobre o que fazemos com a força do nosso próprio desejo.

A Falha no Reconhecimento Mútuo: A Tese de Jessica Benjamin

Talvez a contribuição mais sofisticada para entender a ferida da traição venha de Jessica Benjamin. Para ela, o vínculo amoroso se sustenta na tensão dialética entre a afirmação de si e o reconhecimento do outro como um sujeito separado e inteiro. A traição, em sua essência, é uma falha catastrófica nesse processo de reconhecimento. No momento do ato secreto, o outro deixa de ser um sujeito com seus próprios sentimentos e sua própria mente, e é reduzido a um objeto, a um obstáculo ou a uma figura secundária no palco narcísico de quem trai. A dor aguda sentida por quem é traído não vem apenas da infidelidade sexual, mas da experiência brutal de ter sido “des-subjetivado”, de ter sua realidade e seus sentimentos anulados. É, como diria Luiz-Alfredo de Souza, uma experiência da “morte do próximo”, uma erosão radical da alteridade que nos constitui.

O Ressentimento: O Afeto que Aprisiona

Após a quebra, instala-se a clínica da dor. E um dos afetos mais tóxicos e paralisantes é o ressentimento, magistralmente analisado por Maria Rita Kehl. Ela o descreve como o que sobra após o machucado, a ruminação incessante da queixa. Kehl faz uma distinção crucial: enquanto a indignação pode ser um motor para a mudança e a reafirmação de si, o ressentimento é um veneno que amarra o sujeito ao passado e ao agressor. A pessoa ressentida fica congelada no tempo, revivendo a ofensa, incapaz de elaborar o luto. Sua análise oferece uma chave poderosa para entender por que algumas pessoas conseguem superar a traição, enquanto outras permanecem prisioneiras da ferida por anos, em um ciclo de sofrimento que impede a vida de seguir adiante.

Parte 3: O Horizonte Clínico – Do Trauma à Reconfiguração

A escuta psicanalítica não oferece curas mágicas, mas um espaço para que a dor possa ser transformada em palavra e, a palavra, em uma nova narrativa.

As Fases da Crise e o Trabalho do Sonho

Johan Cullberg, com sua teoria das crises, oferece um mapa para compreender o processo psíquico pós-trauma, dividido em fases: choque, reação, elaboração e reorientação. Esse modelo ajuda a normalizar o caos inicial e a entender que a elaboração é um processo que leva tempo. O trabalho clínico, nesse sentido, é o de acompanhar o sujeito através dessas fases. Antonino Ferro propõe uma bela metáfora para esse trabalho: a sessão analítica como um espaço onde as experiências brutais, que não puderam ser pensadas, podem ser “sonhadas a dois”. O analista ajuda o paciente a metabolizar o trauma, a transformar os “pictogramas” de dor bruta em narrativas fragmentadas e, finalmente, em pensamento. É um processo de digestão psíquica.

Do Ponto Final ao Ponto de Virada: A Reconstrução da Narrativa

Christopher Bollas contribui com a ideia da escuta atenta aos detalhes que podem transformar a traição de um ponto final em um “ponto de virada”. O trabalho não é esquecer, mas reconfigurar a narração. É aqui que a contribuição de Gabriel Rolón se torna valiosa. Ao democratizar a escuta psicanalítica através de casos clínicos, ele mostra como o ato de trair ou ser traído se conecta com as feridas mais profundas da história de cada um. A análise permite que o sujeito perceba os padrões de repetição e as vulnerabilidades que o tornaram suscetível àquela dinâmica destrutiva. Otto Kernberg, por sua vez, aprofunda a análise ao conectar esses padrões a patologias narcísicas e borderline, que frequentemente estão na raiz de relacionamentos tóxicos e da incapacidade de manter vínculos saudáveis.

O Perdão como Trabalho Psíquico e o Amor em Segunda Instância

Finalmente, chegamos à complexa questão do perdão. Massimo Recalcati oferece uma das abordagens mais lúcidas e profundas sobre o tema. Para ele, o perdão não é um ato moral de esquecimento ou uma absolvição do erro. É um trabalho psíquico árduo, o estágio final do luto. Perdoar significa, em última instância, libertar a si mesmo do poder do outro e do ressentimento que aprisiona. Recalcati argumenta que a crise da traição, se bem elaborada, pode paradoxalmente levar o amor a um novo patamar: o amor “em segunda instância”. É a passagem do amor idealizado, narcísico, que exige a perfeição do outro, para um amor que aceita a falta, a falha e a incompletude do parceiro. É um amor mais real, mais qualificado, que emerge não apesar da ferida, mas a partir dela.

Conclusão: Reinventar os Laços na Responsabilidade

A constelação de pensadores reunida neste curso nos mostra que a traição amorosa é um fenômeno sobredeterminado, situado na confluência exata entre o mal-estar social e o drama singular de cada sujeito. A cultura da performance, o individualismo radical e a crise da autoridade simbólica criam um ambiente tóxico para os vínculos. Dentro desse palco, o desejo transgressor, as falhas de reconhecimento e as feridas narcísicas históricas se encenam, muitas vezes sob a forma de autossabotagem e deslealdade.

A resposta que a psicanálise oferece não é um novo manual de regras para os relacionamentos, mas um chamado à responsabilidade. Responsabilidade de cada sujeito por seus desejos, por suas fantasias e pelos pactos que estabelece. O trabalho clínico, como aponta Contardo Calligaris, é um convite para pensar a traição não como uma patologia, mas como um drama humano que exige elaboração. É um caminho para transformar a dor paralisante em conhecimento sobre si mesmo. Ao final da jornada, a questão talvez não seja como evitar a traição a todo custo, mas como construir vínculos onde a palavra, a autenticidade e o reconhecimento mútuo sejam robustos o suficiente para sustentar o desejo, em vez de serem destruídos por ele. É o desafio de, em meio aos escombros, reinventar uma ética do cuidado e da hospitalidade com o outro, e, fundamentalmente, consigo mesmo.

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