A Grande Travessia: Uma Cartografia Psicanalítica da Traição em Cinco Módulos

Introdução: Um Cardápio para a Alma Inquieta

A proposta de um curso sobre psicanálise e traição amorosa é, em si, um ato de coragem. É um convite para deixar a segurança da superfície e mergulhar nas águas turvas e profundas do desejo, do sofrimento e do mal-estar que definem a nossa época. O cardápio apresentado, dividido em cinco módulos interligados, não promete respostas fáceis nem curas milagrosas. Pelo contrário, oferece algo muito mais valioso: um mapa detalhado para uma grande travessia intelectual e afetiva. Esta jornada nos levará do palco cintilante e solitário da contemporaneidade à cena íntima e violenta da traição; da ferida aberta do trauma à difícil reconstrução da memória; das ruínas dos grandes pactos simbólicos ao horizonte clínico onde a reparação se torna possível. Este artigo propõe-se a desdobrar esse mapa, a explorar cada um dos cinco módulos como territórios de uma expedição ao coração de nós mesmos, usando a traição não como um ponto final, mas como um portal para a compreensão de quem somos e de como amamos (ou desamamos) no século XXI.

Módulo 1: O Palco Contemporâneo – A Solidão do Empreendedor de Si

O primeiro módulo nos situa no terreno em que o drama acontece. Antes de analisar o ato da traição, é preciso compreender o palco, a atmosfera, o tipo de ator que a nossa cultura produz. E o diagnóstico é contundente: vivemos na era do “Eu, S.A.”, o sujeito-empresa. Sintetizando as análises de pensadores como Joel Birman, Jorge Alemán e Roland Gori, este módulo expõe a emergência de uma nova subjetividade, capturada pela lógica da performance. A vida se tornou um projeto a ser gerenciado com máxima eficiência, e o valor pessoal deixou de ser uma questão de essência para se tornar uma questão de aparência, medido pela capacidade de projetar uma imagem de sucesso, felicidade e produtividade. O Eu tornou-se uma marca em constante campanha de marketing.

A consequência direta e devastadora dessa lógica é a mercantilização dos afetos. Se o Eu é uma empresa, os laços afetivos são, inevitavelmente, aprisionados pela lógica do mercado. O amor se transforma em um investimento cujo retorno deve ser constantemente avaliado. O parceiro é visto como um “ativo” que deve agregar valor à nossa marca pessoal. A confiança é substituída pelo cálculo de risco, e a descartabilidade torna-se a norma. Como aponta Paul Verhaeghe, um parceiro que não “performa” bem, que causa frustração ou que deixa de ser um “bom negócio” pode ser facilmente trocado por um “modelo mais novo e eficiente”. A traição, nesse contexto, começa a perder seu caráter de transgressão passional para se tornar uma expressão quase lógica de gestão de portfólio.

O paradoxo que assombra este palco é a solidão estrutural. A obrigação da performance constante e a competição generalizada produzem um sujeito profundamente solitário e inautêntico, um “impostor”, como diria Gori, que se sente uma fraude em sua própria vida. O amor é buscado desesperadamente como um antídoto para essa solidão, mas a própria inautenticidade que o sujeito encarna impede a criação de um vínculo real. A traição emerge, então, como um sintoma complexo e ambíguo: ora como a continuação da farsa para manter a imagem, ora como uma tentativa desesperada e autodestrutiva de romper a performance e, talvez pela primeira vez, sentir algo real.

Módulo 2: A Cena da Traição – Desejo, Sabotagem e a Morte do Outro

Após mapear o palco, o segundo módulo nos leva aos bastidores da cena, ao momento preciso da transgressão, analisando sua dinâmica psíquica. A perspectiva mais cortante aqui é a da traição como violência do reconhecimento, fundamentada na obra de Jessica Benjamin. O ato de trair só se torna psiquicamente possível quando o outro deixa de ser reconhecido como um sujeito, com seu próprio universo de sentimentos e percepções, e é rebaixado à condição de objeto. A traição é, portanto, muito mais do que uma quebra de contrato; é um ato de violência psíquica que anula a alteridade, transformando o parceiro em um mero figurante descartável na satisfação de uma fantasia narcísica.

Essa objetificação do outro frequentemente está a serviço da dinâmica da sabotagem. Sintetizando as perspectivas de Otto Kernberg e Adam Phillips, este capítulo investiga a traição como um sintoma compulsivo, não como uma escolha livre. Para a personalidade narcísica, a traição pode ser movida por uma inveja primitiva de destruir o “bom objeto”, ou seja, de atacar um vínculo que é percebido como bom e valioso, justamente por não suportar a dependência ou a felicidade que ele proporciona. Para outros, a traição emerge de uma pobreza imaginativa, de um desejo que precisa do clichê do “proibido” para se sentir vivo. Em ambos os casos, a cena da traição é o palco onde se revela uma profunda patologia do eu, uma incapacidade de sustentar o bem e de criar a partir de dentro.

Finalmente, o módulo aborda a dimensão mais trágica e existencial do ato: o desejo que queima. Inspirado em Sarantis Thanopoulou, este tema vê o desejo (Eros) como uma força primal, excessiva, que sempre testará os limites de qualquer pacto. A cena da traição é o momento em que essa força transborda e consome o próprio vínculo. A análise aqui não busca um culpado, mas compreende a transgressão como uma possibilidade inerente a todo laço humano, revelando a tensão irresolúvel entre a natureza infinita do desejo e a necessidade finita de limites para que o amor possa sobreviver.

Módulo 3: A Ferida e a Memória – Trauma, Ressentimento e Reescrita

O ato passou, a cena terminou, e o que resta é a ferida. O terceiro módulo se dedica a analisar as consequências psíquicas da traição. A primeira tarefa é compreender a anatomia do trauma. Com base em teóricos como Werner Bohleber e Johan Cullberg, a traição é dissecada não como uma simples decepção, mas como um evento traumático que estilhaça a narrativa de vida do sujeito e quebra a confiança fundamental no mundo. Essa quebra ativa uma destrutividade (a pulsão de morte freudiana) que pode se voltar contra o eu (depressão, autodepreciação) ou contra o outro (ódio, vingança). Compreender que a crise se desenrola em fases reconhecíveis – choque, reação, elaboração e reorientação – oferece um mapa para o caos e um caminho possível para a reconstrução.

No centro desse caos, o sujeito se encontra na encruzilhada dos afetos, um ponto crucial analisado com maestria por Maria Rita Kehl. A grande batalha se dá entre o ressentimento e a indignação. O ressentimento é uma paixão triste e reativa, uma ruminação que aprisiona o sujeito ao passado e à figura do ofensor, tornando o luto impossível. A indignação, por sua vez, é uma paixão alegre e potente, que transforma a dor em ação, deslocando o foco da vingança para a reafirmação de valores e a reparação simbólica, libertando o sujeito da posição paralisante de vítima.

A superação do trauma, como nos mostra Stephen Grosz, é um trabalho de reinvenção da narrativa. A experiência da traição tende a se cristalizar em uma história de “ponto final”, que define o sujeito por sua dor. O trabalho clínico e pessoal consiste em encontrar um “ponto de virada”, um detalhe, uma nova perspectiva que permita reconfigurar a história. O objetivo não é apagar a ferida, mas transformá-la de um fim trágico em um capítulo doloroso, porém integrado a uma narrativa mais ampla de resistência, aprendizado e transformação.

Módulo 4: Contratos em Ruínas – A Crise da Lei e do Laço Social

O quarto módulo eleva o nosso olhar do drama individual para a crise das estruturas que antes sustentavam os vínculos. Estamos vivendo a era dos contratos em ruínas. A queda do grande Outro, tese de Luciano Lutereau e Jean-Pierre Lebrun, aponta para o fim do patriarcado e o declínio da autoridade simbólica (Deus, a Tradição) como a perda de um terceiro fiador que garantia as promessas. Sem essa garantia externa, as palavras se tornam “nuas” e os casais são lançados na angustiante tarefa de inventar seus próprios pactos em um vácuo de referências, o que explica a fragilidade endêmica dos compromissos.

Essa crise simbólica se reflete no laço social através da morte do próximo, conceito explorado por Luiz-Alfredo de Souza. A dissolução da categoria ética do “próximo” – aquele que, por sua humanidade compartilhada, nos convoca a uma responsabilidade – leva a uma cultura de indiferença e individualismo radical. Essa erosão da alteridade contamina o vínculo amoroso, permitindo que o parceiro seja visto não como um semelhante, mas como um estranho ou um objeto de consumo. A deslealdade, assim, emerge como consequência de um mundo onde a responsabilidade pelo outro se esvazia. Como aponta Contardo Calligaris, essa dinâmica floresce em uma gramática cultural da ambiguidade, onde pactos implícitos e segredos florescem, tornando o ciúme e a traição consequências quase inevitáveis.

Módulo 5: Horizonte Clínico – Reparação, Perdão e a Aposta no Vínculo

Após a longa travessia pelo palco, pela cena, pela ferida e pelas ruínas, o último módulo aponta para um horizonte de possibilidade: o trabalho clínico. A primeira tarefa é a invenção do perdão. Com base em Massimo Recalcati, o perdão é desmistificado. Não se trata de um ato moral de esquecimento, mas do ponto de chegada de um árduo trabalho psíquico de luto pela morte do “primeiro amor”, aquele idealizado. É somente ao aceitar a perda desse ideal que se abre a possibilidade de um amor em segunda instância, um novo pacto que não nega a ferida, mas a integra, fundando-se na escolha corajosa de amar o outro em sua falha.

A clínica se apresenta como um espaço de digestão. Como propõem Antonino Ferro e Gabriel Rolón, o setting analítico é um lugar para “sonhar a dois” o trauma indizível, para digerir as experiências brutas que o sujeito não consegue processar sozinho. É um espaço de escavação arqueológica que conecta a dor presente às feridas primordiais, transformando a repetição cega em uma narrativa com sentido.

O desafio final, como aponta Jean-Claude Rolland, é a reconstrução da confiança em uma cultura de laços precários. O próprio relacionamento terapêutico funciona como um laboratório para reinserir o sujeito em um ciclo de confiança. A reinvenção do vínculo amoroso é, em última instância, um trabalho ético, uma aposta corajosa no outro que exige a construção de um novo pacto, mais consciente da fragilidade e da imensa responsabilidade que cada um carrega na sustentação do laço.

Conclusão: A Coragem de Reinventar

Ao final desta grande travessia pelos cinco módulos, a traição se revela muito maior do que ela mesma. Ela é um sismógrafo do nosso tempo, um sintoma que fala sobre a solidão da performance, a violência da objetificação, a dor do trauma, a ruína dos pactos e a difícil, mas não impossível, tarefa de reparação. Este curso, portanto, não é sobre a traição. É sobre o que a traição nos revela a respeito da condição humana na contemporaneidade. Ele nos deixa não com respostas, mas com um conjunto de ferramentas críticas e uma ética: a coragem de olhar para as nossas feridas, de nos responsabilizarmos pelo nosso desejo e, mesmo em um mundo de contratos em ruínas, de assumir a aposta de reinventar os vínculos.

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