A Gramática da Deslealdade: Psicanálise da Traição na Era da Performance e do Mercado

Introdução: A Leitura Preventiva da Alma

O convite para uma “leitura preventiva pedagógica”, para nos familiarizarmos com o terreno antes da exploração guiada, é mais do que uma estratégia de aprendizagem; é a metáfora perfeita para o trabalho que a psicanálise nos propõe diante do mal-estar contemporâneo. Antes de podermos decifrar os atos sísmicos da traição e da autossabotagem, precisamos ler o mapa do nosso tempo, compreender a gramática cultural que escreve, em grande medida, nossos roteiros de sofrimento. A jornada que se inicia nestes primeiros capítulos não busca culpados para a infidelidade, mas sim o diagnóstico de um ecossistema psíquico e social que a torna não apenas possível, mas uma consequência quase lógica de seu funcionamento.

Este artigo se propõe a aprofundar essa leitura, mergulhando nos dois pilares que fundam o palco contemporâneo da traição. Primeiramente, exploraremos a “gramática do mal-estar”, investigando a transição de uma cultura da culpa para uma da exaustão, o surgimento de um narcisismo frágil movido a performance e a consequente descartabilidade dos vínculos, onde os afetos são dispostos em gôndolas de supermercado. Em seguida, analisaremos como essa gramática se consolida no “amor como concorrência”, dissecando a forma como o discurso neoliberal transcende a economia para se tornar uma fábrica de subjetividades, transformando o amor em um mercado, o parceiro em um concorrente e a solidão a dois na condição padrão de existência. Esta é a preparação do terreno, a escavação inicial para compreender por que, no século XXI, a lealdade se tornou um ato de resistência e a traição, um movimento esperado no xadrez de um jogo sem garantias.

Parte 1: A Gramática do Mal-Estar – O Fardo da Performance

O primeiro capítulo nos apresenta uma mudança tectônica na forma como sofremos. Se a psicanálise freudiana clássica se debruçou sobre o mal-estar gerado pela repressão do desejo – um conflito que produzia culpa –, hoje nos deparamos com um novo paradigma.

1.1 Do Culpado ao Exausto: A Nova Fenomenologia do Sofrimento

A premissa é cortante: o sofrimento paradigmático do nosso tempo não deriva mais da culpa pela repressão, mas da exaustão gerada pela obrigação social de ser feliz e produtivo. A felicidade e o sucesso deixaram de ser aspirações para se tornarem imperativos, metas a serem cumpridas. Vivemos sob a tirania de um “super-eu” que não mais nos proíbe de gozar, mas que nos ordena o gozo incessante. O resultado é um sentimento crônico de vazio e insuficiência, pois a performance nunca é suficiente, e a felicidade, como meta, é sempre inatingível.

O mais perverso dessa nova configuração é que o carrasco não é mais uma figura externa – o pai, a lei, a instituição. Na era do “Eu, S.A.”, nós nos tornamos os carrascos de nós mesmos. Somos nós que nos cobramos, que nos vigiamos, que nos punimos pela falha em atingir os padrões inalcançáveis de produtividade e contentamento. A questão que ecoa nesse vazio é devastadora: se a felicidade se torna uma obrigação, onde encontrar espaço para o descanso, para a falha, para a simples e imperfeita condição humana? Nesse cenário de pressão autoimposta, o descanso é percebido como preguiça, a tristeza como fracasso e a vulnerabilidade como um defeito a ser eliminado, não acolhido.

1.2 Eu, S.A.: O Narcisismo como Marca Pessoal

É nesse solo que floresce o narcisismo de desempenho. Diferentemente do amor-próprio clássico, o narcisismo contemporâneo é estruturalmente frágil, pois depende inteiramente da validação externa. O sujeito se torna um “empreendedor de si mesmo”, gerenciando sua imagem como uma marca viciada no aplauso do outro para se sentir existente. A máxima cartesiana “Penso, logo existo” foi substituída por “Tenho likes, logo existo”. O valor deixa de ser intrínseco para se tornar uma cotação na bolsa de valores da atenção alheia.

O corpo, as habilidades, os sentimentos – tudo é instrumentalizado como meio para atingir uma performance de sucesso. A vida se transforma em uma campanha de marketing pessoal ininterrupta, um grande projeto de branding. A autenticidade é sacrificada em nome da vendabilidade da imagem. A traição a si mesmo, a autossabotagem de não viver os próprios desejos em nome da manutenção da marca, torna-se a norma. O sujeito se esvazia de si para se preencher com a imagem que acredita que o mercado (social, afetivo, profissional) deseja consumir.

1.3 A Gôndola dos Afetos: A Descartabilidade dos Vínculos

A consequência direta e trágica dessa lógica é a transposição do consumo para a esfera íntima. Na cultura da performance, o outro deixa de ser um sujeito em sua misteriosa alteridade para se tornar um objeto avaliado por seu desempenho e sua capacidade de agregar valor à nossa marca pessoal. Os laços se tornam líquidos, descartáveis, como produtos com prazo de validade. O amor vai para o “carrinho de compras”.

O parceiro que não “performa” bem – seja na cama, na vida social ou na capacidade de fornecer validação narcísica – é facilmente substituído por um “modelo mais novo e eficiente”. A traição, nesse contexto, perde seu peso de transgressão ética para se tornar um mero ato de consumo, uma atualização de “software”, uma troca de produto. A questão que se impõe é um soco no estômago da nossa cultura: “Se tratamos pessoas como produtos, como podemos esperar construir um amor que resista ao tempo e às imperfeições?”. A resposta é que não podemos. A lealdade exige a aceitação da falha, da imperfeição, do não-desempenho – exatamente tudo o que a lógica do “Eu, S.A.” busca eliminar.

Parte 2: O Amor como Concorrência – A Lógica Neoliberal nos Vínculos

O segundo capítulo aprofunda o diagnóstico, mostrando como o neoliberalismo não é apenas um pano de fundo, mas o próprio motor que produz essa subjetividade performática e esses laços mercantis.

2.1 A Fábrica de Sujeitos: O Neoliberalismo como Discurso

A tese de Georges Alemán é fundamental: o neoliberalismo não é apenas um sistema econômico, mas uma “fábrica” que modela um tipo muito específico de sujeito. Ele nos força a aplicar a lógica de mercado e a auto-otimização a todas as esferas da vida, inclusive as mais íntimas. Somos compelidos a nos tornar gerentes de nossa própria vida-empresa. A questão é: quem é o verdadeiro CEO que dita as metas de felicidade e sucesso que nos sentimos obrigados a alcançar? A resposta, novamente, aponta para dentro. O sistema é tão eficaz que internalizamos o discurso, e nós mesmos nos tornamos os executivos tiranos de nossa própria existência, traduzindo sentimentos em mercadorias e a vida em uma planilha de resultados.

2.2 Amor, S.A.: O Sócio e o Concorrente

Quando essa lógica invade a intimidade, ela transforma a natureza do amor. O parceiro deixa de ser um outro com quem se constrói um laço de alteridade para se tornar um sócio em uma “empresa afetiva” ou, pior, um concorrente direto. A relação passa a ser avaliada pelo seu custo-benefício. As decisões são tomadas com base em cálculos de perdas e ganhos. O diálogo amoroso é substituído por uma negociação de termos, e o pacto de confiança, por um contrato de prestação de serviços emocionais.

A pergunta “Quando começamos a analisar nosso parceiro com a mesma frieza com que analisamos um investimento na bolsa de valores, o que resta do amor como entrega?”. A resposta é: muito pouco. Resta uma gestão de interesses, um arranjo estratégico. A traição, nesse jogo, torna-se uma manobra empresarial: uma “fusão com um concorrente”, um “desinvestimento” para cortar perdas, uma “nova linha de produtos” para maximizar o prazer. Ela deixa de ser uma ferida para se tornar uma jogada.

2.3 Ilhas Conectadas: A Erosão da Confiança e a Solidão a Dois

O resultado final de um mundo onde todos são concorrentes é a impossibilidade da confiança incondicional. Ela é substituída por uma paranoia constante, por uma gestão de riscos. A imagem das “ilhas conectadas” é a perfeita tradução visual desse estado: estamos próximos, mantemos pontes de comunicação, mas permanecemos radicalmente isolados em nossas ilhas de autointeresse. Isso gera o que Alemán chama de “solidão comum”: a experiência de estar profundamente só, mesmo dentro de um relacionamento.

É o paradoxo de uma era hiperconectada e profundamente solitária. E é nesse vácuo de confiança que a traição se torna não apenas uma possibilidade, mas um movimento estratégico esperado. Se o outro é um potencial concorrente, a lealdade é ingenuidade. A deslealdade é a antecipação de um golpe que, no fundo, já se espera levar. A questão final é a mais fundamental: “Como se constrói um ‘nós’ verdadeiro em uma cultura que nos treina a pensar e a competir apenas como um ‘eu’?”.

Conclusão: O Desafio de Amar em um Mundo Desencantado

Os dois primeiros capítulos nos pintam um quadro sombrio, mas necessário. Eles estabelecem o palco contemporâneo como um ecossistema de performance, narcisismo, consumo e competição. Nesse cenário, a traição não é uma anomalia, mas um sintoma endêmico. Ela é a expressão máxima da descartabilidade em um mundo que nos trata como produtos; é a jogada estratégica em um jogo onde todos são concorrentes; é o grito desesperado de um impostor solitário que não suporta mais a própria farsa.

Compreender essa complexa arquitetura do mal-estar é a “leitura pedagógica” essencial que o curso nos propõe. É o trabalho preparatório para que, nos próximos capítulos, possamos analisar a cena, a ferida e a possibilidade de reparação, não com o olhar do juiz moral, mas com a lente crítica e compassiva da psicanálise. O desafio que se impõe, a partir deste diagnóstico, é imenso: como construir laços de confiança em um mundo que a erode? Como praticar a lealdade em uma cultura da descartabilidade? Como, enfim, ousar amar

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