A Cena da Traição: Anatomia do Reconhecimento Desfeito e a Ilusão da Transgressão

Introdução: Para Além do Ato, a Análise da Cena

A traição amorosa, em sua manifestação mais imediata, é frequentemente reduzida a um veredito moral ou a uma explosão de desejo incontrolável. Contudo, uma análise psicanalítica nos convida a ir além da superfície do ato para investigar a “cena” em que ele se desenrola. O que precisa acontecer, psiquicamente, para que a traição se torne possível? Que colapsos relacionais e que desertos internos ela revela? O segundo módulo do curso “Psicanálise e Traição, Autossabotagem” nos oferece um roteiro investigativo primoroso, dissecando essa cena a partir de duas perspectivas complementares e profundamente reveladoras.

No capítulo quinto, “A Quebra do Reconhecimento Mútuo”, somos guiados pela perspicaz lente de Jessica Benjamin para entender a traição como o sintoma último do fracasso de uma dinâmica relacional essencial: o reconhecimento. Aqui, a infidelidade não é o início da crise, mas sua consequência mais violenta, o resultado de um processo gradual em que o outro deixa de ser um sujeito para se tornar um objeto. Em seguida, no capítulo sexto, “Prazeres Não Proibidos”, o ensaísta e psicanalista Adam Phillips nos provoca a ressignificar radicalmente a própria natureza do desejo transgressor. Longe de ser um ato de vitalidade selvagem, a traição é aqui interpretada como um sintoma de uma “pobreza de desejo”, uma falha de imaginação e uma tentativa desesperada de encenar uma “vida não vivida”.

Este artigo aprofundará essas duas teses, demonstrando como a quebra do espaço intersubjetivo (Benjamin) cria as condições de possibilidade para o ato, enquanto a crise do desejo individual (Phillips) fornece sua motivação inconsciente. Juntas, elas compõem uma anatomia complexa e trágica da traição, revelando-a não como um ato de força, mas como a manifestação de uma profunda fragilidade relacional e existencial.

Parte I: O Colapso do Vínculo – Traição como Falha no Reconhecimento (A Tese de Jessica Benjamin)

O ato de trair não acontece no vácuo. Ele requer um ambiente psíquico específico, uma permissão interna que só pode ser concedida após um sofisticado, ainda que inconsciente, processo de desumanização do parceiro. É este processo que o trabalho de Jessica Benjamin nos ajuda a compreender.

1.1. A Dança do Reconhecimento: O Paradoxo Fundamental de Ser “Eu” e “Nós”

A base de um vínculo amoroso saudável, segundo Benjamin, é um paradoxo vibrante e contínuo. Não se trata de uma fusão, como o senso comum muitas vezes prega – essa fantasia de duas metades que se tornam uma só, que inevitavelmente leva à “perda da identidade” e ao “desespero”. Pelo contrário, o amor vital é uma “dança paradoxal”, a sustentação de uma tensão criativa entre a afirmação da própria subjetividade e o reconhecimento da subjetividade do outro.

Nessa dança, dois indivíduos se reconhecem mutuamente como “centros de experiência autônomos”. Eu tenho meu mundo interno, meus pensamentos, desejos e medos, e reconheço que você também tem o seu, igualmente complexo e válido. Ao mesmo tempo, a partir desse reconhecimento da alteridade, co-criamos um “terceiro espaço”, o espaço intersubjetivo do “nós”. Este espaço é um lugar de profunda conexão que não anula as individualidades, mas as celebra. É um lugar seguro para ser diferente, onde a divergência não é vista como uma “ameaça à unidade”, mas como uma fonte de riqueza e dinamismo. Manter essa dança é a “arte” e o desafio constante do amor.

1.2. O Monólogo do Poder: O Declínio para a Lógica Agente-Paciente (“Doer/Done-to”)

Essa tensão paradoxal, no entanto, é inerentemente instável e pode se tornar “insuportável”. O medo da perda pode levar a um controle excessivo, enquanto o medo de ser engolfado pode levar a um distanciamento defensivo. Quando essa tensão colapsa, a relação declina para uma “dinâmica de poder rígida e patológica”. A dança a dois cessa e dá lugar a um monólogo de dominação.

Benjamin descreve isso como a lógica “Doer/Done-to” (o agente e o paciente). Um parceiro assume a posição de sujeito ativo (“Doer”), aquele que age, define, controla e sabe o que é melhor. O outro é sutilmente (ou abertamente) rebaixado à posição de objeto passivo (“Done-to”), sobre o qual a ação é exercida. Ele se torna o receptáculo das projeções, expectativas e frustrações do sujeito ativo. Nessa dinâmica, o espaço do “nós” é aniquilado. O diálogo, que pressupõe dois sujeitos falantes, morre e é substituído por um monólogo. As discussões deixam de ser uma busca por entendimento mútuo para se tornarem um debate a ser vencido, uma oportunidade para “provar que estamos certos”. A relação se transforma em um campo de poder, onde a dignidade do “objeto” é progressivamente erodida.

1.3. O Assassinato do Olhar: A Traição como Ato de Objetificação Radical

É neste ponto que a cena está montada para a traição. A infidelidade, sob a ótica de Benjamin, é a manifestação mais extrema e violenta dessa lógica de objetificação. É um “assassinato do olhar”. O ato de trair só se torna “psiquicamente possível” quando o traidor, em um movimento de “solipsismo” – um fechamento em seu próprio universo psíquico –, consegue apagar completamente a subjetividade do parceiro.

O outro deixa de ser uma pessoa com sentimentos, história e complexidade, e é transformado em uma “coisa irrelevante”, um obstáculo ou, na melhor das hipóteses, um pano de fundo para a realização do desejo do traidor. A humanidade do parceiro é negada para que o desejo transgressor possa ser exercido sem o peso insuportável da empatia e da culpa. A traição é, portanto, o ato final de coisificação. A pergunta levantada na aula é devastadoramente precisa: “Seríamos capazes de trair alguém se naquele exato momento estivéssemos enxergando essa pessoa em toda a sua complexa e irredutível humanidade?”. A resposta é, muito provavelmente, não. A traição exige, como pré-condição, a cegueira voluntária, a aniquilação simbólica daquele a quem se trai.

Parte II: A Crise do Desejo – Transgressão como Sintoma de Pobreza (A Tese de Adam Phillips)

Se Benjamin nos mostra como a relação precisa se deteriorar para que a traição ocorra, Adam Phillips nos leva para dentro da mente do transgressor para perguntar por quê. Sua análise subverte a noção romântica da traição como um ato de desejo irresistível e a reposiciona como um sintoma de uma crise interna profunda.

2.1. Prazeres Não Proibidos: Para Além da Tirania da Transgressão

Phillips inicia com uma crítica poderosa à “tirania do proibido” em nossa cultura. Somos ensinados a acreditar que o desejo só ganha verdadeira potência e excitação quando se opõe a uma lei, a uma proibição. A fantasia do “fruto proibido” é o motor de grande parte da nossa imaginação erótica. A transgressão, nesse modelo, parece ser a forma mais autêntica de vitalidade.

O autor, no entanto, nos convida a considerar uma possibilidade mais sutil e radical: a existência de “prazeres não proibidos”. Trata-se de fontes de satisfação singulares, autênticas e idiossincráticas que não precisam da transgressão para serem excitantes. Esses prazeres exigem autoconhecimento, criatividade e a capacidade de cultivar o desejo dentro da “vida permitida”. Encontrar alegria em uma conversa, em um projeto compartilhado, em uma intimidade construída ao longo do tempo – esses são prazeres que demandam uma imaginação erótica e existencial muito mais sofisticada do que a simples quebra de uma regra.

2.2. A Ressignificação da Traição: Um Sintoma de Pobreza de Desejo

É a partir dessa premissa que Phillips lança sua interpretação mais contundente: a traição, longe de ser um sinal de “excesso de vitalidade” ou de um “desejo selvagem”, é frequentemente um sintoma de uma profunda “pobreza de desejo”. O sujeito que trai não o faz por ser um vulcão de paixões indomáveis, mas sim por uma “falta de imaginação” para criar, encontrar ou sustentar a satisfação em sua vida existente.

A traição, nesse sentido, é um atalho. É a escolha por uma forma de excitação pré-fabricada, que depende do roteiro fácil e potente da transgressão. É mais simples buscar a adrenalina do proibido do que fazer o trabalho difícil de reinventar o desejo dentro do vínculo existente. O caso extraconjugal se torna uma espécie de “kit de fantasia” pronto para o consumo, que oferece uma sensação imediata de vitalidade sem exigir o esforço da criação. Portanto, o traidor não é um herói do desejo, mas alguém que, por não conseguir imaginar outras formas de se sentir vivo, recorre ao clichê mais antigo e destrutivo de todos.

2.3. A Encenação da “Vida Não Vivida”

Essa pobreza de desejo está frequentemente ligada a motivações inconscientes mais profundas. A traição é analisada por Phillips como uma tentativa desesperada de “encenar uma vida não vivida”. Trata-se de uma rebelião melancólica em nome de uma “versão idealizada de si mesmo” que foi, em algum momento, abandonada ou sacrificada.

O homem que abandonou o sonho de ser músico e se tornou um advogado pragmático pode buscar em um caso a “artista” que o faz sentir-se boêmio e livre. A mulher que se tornou a mãe e esposa perfeita pode buscar no amante o “aventureiro” que a faz se sentir a jovem destemida que ela acredita ter perdido. A traição se torna um palco onde é possível atuar uma fantasia de quem se poderia ter sido. É uma tentativa trágica de recuperar partes perdidas do Eu. No entanto, é apenas uma encenação. Não é uma integração real dessas partes abandonadas na vida presente, mas uma cisão ainda maior, uma fuga para um roteiro de fantasia que, invariavelmente, termina em mais dor e fragmentação, tanto para si quanto para o outro.

Conclusão: A Dupla Face da Traição – Fracasso Relacional e Falência Imaginativa

Ao integrar as perspectivas de Jessica Benjamin e Adam Phillips, emerge um retrato da traição muito mais complexo e sombrio do que a narrativa convencional. A traição não é um evento isolado, mas o ponto de convergência de duas trajetórias de fracasso.

Primeiro, há o fracasso relacional, como descrito por Benjamin. É o fracasso da “dança do reconhecimento”, o colapso do espaço intersubjetivo em uma dinâmica de poder e, finalmente, a objetificação radical do parceiro. É o processo que prepara o terreno, que torna o ato psicologicamente executável.

Segundo, há o fracasso existencial e imaginativo do indivíduo, como analisado por Phillips. É a incapacidade de cultivar “prazeres não proibidos”, a pobreza de um desejo que só sabe se excitar pela transgressão, e a necessidade de encenar uma “vida não vivida” em vez de integrar suas fantasias e frustrações na vida real.

A cena da traição, portanto, revela-se como um palco trágico. Nele, um sujeito que já não consegue ver a humanidade do outro, impulsionado por uma incapacidade de criar sentido e prazer em sua própria vida, busca uma solução mágica e destrutiva. Compreender essa dupla dimensão é o objetivo didático-pedagógico fundamental deste módulo: não para justificar o ato, mas para desmistificá-lo, para despojá-lo de seu falso glamour e revelá-lo pelo que ele frequentemente é – o sintoma ruidoso de um silêncio interior e de um diálogo que já morreu há muito tempo.

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