Introdução: A Ousadia de Saber em Meio ao Terror
Meus caríssimos cursistas, parceiros de jornada,
Cá estamos para adentrar um dos territórios mais sombrios e, paradoxalmente, mais iluminadores da psique humana: a manifestação da pulsão de morte em tempos de guerra e catástrofe. O tema é de uma urgência avassaladora. Diariamente, somos confrontados por um noticiário que nos mostra os horrores de conflitos na Ucrânia, entre Israel e Palestina, na Somália, no Sudão — um cenário de desumanização e desolação que parece validar a face mais destrutiva do ser humano. Este não é um tema distante; a exposição a esses horrores, seja in loco ou pela mediação das telas, nos afeta, fragiliza as defesas de nosso ego e nos força a questionar a natureza da civilização.
Nossa bússola para esta travessia será o imperativo kantiano, herdado da cultura greco-latina: “Sapere aude!” — Ousa saber! Ousa saber o que está acontecendo no mundo para que possas elaborar teu ponto de vista. Ousa saber como a violência externa se infiltra em nossa psique. O conhecimento crítico é a primeira trincheira contra o terror infundado e as narrativas alarmistas. E, para sustentar essa ousadia, nos apegaremos a outra máxima: “Labor omnia vincit” (O trabalho vence tudo). Aqui, o “trabalho” é o labor psíquico, o esforço de mergulhar na tarefa de pensar, de simbolizar, de não se render à paralisia do medo. Uma mente ocupada com a tarefa de compreender fabrica menos catástrofes imaginárias. Este artigo é um convite a esse trabalho, a essa ousadia de saber, para que possamos entender como, mesmo sob escombros, a pulsão de vida insiste em brotar.
## A Conexão Psicanalítica: Freud, o Trauma e a Repetição do Horror
A psicanálise, em sua essência, nasceu da escuta dos traumas de guerra. Foi ao tratar dos soldados que retornavam das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, assombrados por pesadelos recorrentes, que Sigmund Freud foi forçado a rever sua teoria. Ele observou um fenômeno enigmático: esses homens repetiam incessantemente em seus sonhos a cena traumática do campo de batalha, uma experiência que claramente não lhes trazia nenhum prazer. Esta constatação o levou a formular um de seus conceitos mais radicais, em “Além do Princípio do Prazer”: a existência de uma pulsão de morte (Tânatos), uma força psíquica fundamental que tende à desintegração, à destruição e ao retorno a um estado inorgânico, operando para além e, por vezes, contra a pulsão de vida (Eros).
Os sonhos recorrentes de destruição em jovens adultos expostos a cenários bélicos são, portanto, a manifestação clínica dessa compulsão à repetição. É uma tentativa desesperada do aparelho psíquico de dominar e elaborar um excesso de estímulo que, no momento do evento, foi impossível de ser processado.
A Fragilização das Defesas do Ego e o Colapso da Simbolização
A psicanalista Sylvia Tubert, nossa principal interlocutora teórica neste tema, aprofunda essa discussão, mostrando como a exposição aos horrores da guerra e das catástrofes — seja para o soldado no front, para a criança sob bombardeio, ou para o refugiado em sua diáspora — promove uma fragilização massiva das defesas do ego. O ego, essa instância psíquica responsável por mediar a realidade interna e externa, simplesmente entra em colapso diante de uma realidade que é, em si mesma, insuportável e traumática.
A consequência mais grave é a falha na capacidade de simbolização. O horror é tão avassalador que não pode ser transformado em palavras, em narrativa, em sentido. Ele permanece como um fragmento bruto, um “real” não metabolizado que invade a psique na forma de flashbacks, pesadelos e uma angústia sem nome. A imagem das multidões de palestinos na Faixa de Gaza, movendo-se de norte a sul em busca de um refúgio inexistente, é a encarnação desse estado: um movimento incessante que não leva a lugar algum, espelhando a ruminação psíquica de quem não consegue elaborar o trauma.
## A Sensibilização: O Estrondo e o Lamento
Como essa dinâmica se manifesta em nossa experiência subjetiva e coletiva? O poeta T.S. Eliot, em uma imagem poderosa, nos diz: “É assim que o mundo acaba, não com um estrondo, mas com um lamento.” Esta frase ecoa a temática da pulsão de morte, que se revela não apenas na explosão violenta da guerra, mas também na desintegração lenta e silenciosa da humanidade e da esperança que se segue a ela.
- A Infiltração do Trauma na Psique: As narrativas de guerra e catástrofe se infiltram em nosso inconsciente coletivo. A pulsão de morte age na desagregação, corrompendo a capacidade de confiar no outro, de desejar e de sonhar com um futuro. A violência externa, como mostra Tubert, desintegra a capacidade interna de viver. A apatia e os atos de automutilação em jovens refugiados são testemunhos trágicos desse processo.
- A Psicanálise como Santuário de Luto e Resistência: Diante desse cenário de desolação, a psicanálise se oferece como um santuário de luto, um espaço protegido onde a dor inominável pode ser, enfim, acolhida e chorada. Ela se torna um ato de resistência contra a desumanização, insistindo na singularidade de cada sofrimento em um contexto que tende a tratá-lo como mera estatística.
- A Teimosia da Pulsão de Vida: Mesmo em meio às cinzas, a pulsão de vida (Eros) surge como uma chama tênue, mas teimosa. Ela se manifesta na resiliência, nos atos de solidariedade, na busca por reconstruir laços e, fundamentalmente, na insistência em reescrever o desejo após a experiência de aniquilação.
O desafio terapêutico, portanto, é monumental: como reativar a pulsão de vida após o trauma coletivo? Como ajudar um sujeito ou uma comunidade a voltar a desejar quando tudo ao redor é ruína?
## O Campo Teórico em Ação: Da Barbárie à Reconstrução
A teoria psicanalítica nos oferece as ferramentas para pensar e intervir nesse processo de reconstrução.
- O Trauma Coletivo e a Quebra do Laço Social: A exposição a cenários bélicos instaura o trauma coletivo. A pulsão de morte não apenas ataca o indivíduo, mas desagrega e fragmenta os laços sociais. A confiança no outro, base de qualquer civilização, é destruída, e a barbárie impera. A psicanálise, ao trabalhar com grupos e comunidades, busca justamente reatar esses fios, mostrando que a elaboração conjunta do trauma pode recriar um senso de pertencimento e solidariedade.
- A Simbolização do Horror como Caminho: A tarefa clínica central é a de ajudar na simbolização do horror. É um trabalho paciente de transformar o terror mudo em uma narrativa. Permitir que o caos fragmentado dos sonhos e flashbacks ganhe um enredo, um sentido, é o que possibilita a integração do trauma. A palavra, aqui, funciona como um fio que costura as feridas da psique.
- A Psicanálise como Ferramenta de Reconstrução: A análise se afirma, portanto, como uma ferramenta de resistência e reconstrução. Ela capacita o sujeito e a comunidade a lutar contra a desagregação psíquica e social, a encontrar sentido e esperança mesmo na experiência do abismo. Não se trata de apagar as cicatrizes, mas de transformá-las em testemunhos de uma resiliência que só pode nascer da confrontação com o pior.
## O Diálogo Cultural: A Arte como Espelho do Inominável
Quando a realidade é por demais horrível, a arte se torna um dos poucos caminhos para a sua representação e elaboração. As obras culturais nos oferecem espelhos que nos permitem olhar para o inominável com a mediação do simbólico.
- “Guernica” (1937), de Pablo Picasso: Este icônico painel é talvez a expressão máxima da pulsão de morte em tempos de guerra. Em tons sombrios de preto, branco e cinza, Picasso não retrata a batalha, mas o horror e a desintegração da vida civil sob o bombardeio. As figuras fragmentadas — a mãe com o filho morto, o touro, o cavalo agonizante — simbolizam a força da destruição que age sobre a vida humana, a desorganização e a aniquilação. Guernica não é um panfleto político; é um grito contra a desumanização.
- O Mito de Cronos Devorando Seus Filhos: Esta é uma alegoria visceral da pulsão de morte. Cronos (Saturno na mitologia romana), temendo ser destronado por sua prole, devora cada um de seus filhos ao nascer. O mito simboliza uma força que se volta contra a própria criação, contra a vida e contra o futuro. É a imagem da liderança psicopata e paranoica que, para manter seu poder, sacrifica as novas gerações, uma metáfora assustadoramente atual para muitas das guerras contemporâneas.
- “Dies Irae” do Requiem de Verdi (ou Mozart): O “Dia da Ira” nas missas de réquiem é a tradução musical da aniquilação e do juízo final. Com sua intensidade dramática, suas orquestrações poderosas e seus coros avassaladores, a música evoca uma atmosfera de terror, tensão e desespero. Ela nos permite “sentir” a força da pulsão de morte, a grandiosidade e a impotência diante da destruição.
A conexão entre essas três obras é profunda. Elas falam, em diferentes linguagens, da mesma experiência: a da desagregação, da aniquilação e do terror diante de uma força que se volta contra a própria vida.
Conclusão: A Aposta na Vida
A reflexão sobre a pulsão de morte em tempos de guerra e catástrofe nos coloca diante do aspecto mais sombrio da condição humana. Vimos como a exposição ao horror fragiliza o ego, como o trauma coletivo rompe os laços sociais e como o medo pode levar a um colapso psíquico, seja individual ou coletivo. Infelizmente, este não é um tema abstrato, mas a realidade cotidiana de milhões de pessoas em um mundo marcado por conflitos e crises.
No entanto, a psicanálise, mesmo ao diagnosticar a força de Tânatos, faz uma aposta radical em Eros. Ela insiste que, mesmo em meio aos escombros, a tarefa de reescrever o desejo é possível e necessária. A escuta da dor, a simbolização do trauma e a reconstrução dos laços são atos de resistência que reafirmam a vida. Que possamos, como profissionais e como cidadãos, ter a ousadia de saber — Sapere aude! — e a tenacidade de trabalhar — Labor omnia vincit —, para que, mesmo diante da mais profunda escuridão, possamos ajudar a manter acesa a pequena, mas teimosa, chama da pulsão de vida.