Após navegarmos pelos fundamentos, pelo diagnóstico diferencial e pela dinâmica familiar, adentramos agora o coração pulsante da práxis psicanalítica: o espaço da psicoterapia infantil. Longe de ser um conjunto de técnicas frias aplicadas a um cérebro defeituoso, a clínica psicanalítica com crianças diagnosticadas com TDAH se revela como um “santuário ético”, um ateliê onde se opera uma profunda e delicada “alquimia relacional”. A tese que guia este ofício é, em si mesma, uma quebra de paradigma: a transformação não se encontra no silenciamento da agitação, na domesticação do comportamento, mas na nossa capacidade, como clínicos e cuidadores, de oferecer à criança as ferramentas simbólicas necessárias para que ela possa dar nome e sentido à sua angústia.
Este artigo propõe-se a detalhar os elementos deste processo alquímico. Exploraremos como a adaptação do setting terapêutico o transforma em um “continente seguro”, capaz de suportar o caos para poder transformá-lo. Mergulharemos na centralidade da ludoterapia, o principal via de acesso ao inconsciente infantil, onde o brincar se torna a “caligrafia da alma”. Analisaremos o objetivo terapêutico final: o de transformar a descarga motora bruta em uma narrativa simbólica, restituindo a palavra e a autoria ao sujeito. E, crucialmente, contextualizaremos esta prática diante dos “três grandes roubos” da infância moderna, dialogando com as novas e potentes perspectivas da neurodiversidade para forjar uma abordagem que seja, ao mesmo tempo, profunda, crítica e radicalmente compassiva.
O Continente Seguro: A Adaptação do Setting Terapêutico
O primeiro passo da alquimia é a preparação do cadinho, do recipiente que irá conter a transformação. Para a criança com TDAH, cuja experiência interna é frequentemente de caos e transbordamento, o setting terapêutico precisa ser adaptado para funcionar como um “continente seguro”. Isso significa que o espaço físico e, mais importante, a postura do analista devem ser capazes de suportar a agitação, e não apenas reprimi-la.
Enquanto um consultório tradicional pode exigir silêncio e imobilidade, o ateliê psicanalítico infantil se prepara para o movimento, para a “bagunça”, para a descarga. O terapeuta, por sua vez, deve abandonar a postura de um “técnico asséptico” e cultivar a “coragem do encontro humano”. Sua principal ferramenta, neste momento inicial, é sua própria capacidade de permanecer calmo, curioso e não-retaliador diante do que pode parecer um ataque caótico ao ambiente. Esta estabilidade do analista funciona como um ego auxiliar para a criança, comunicando-lhe, de forma não-verbal, que suas angústias mais intensas e seus impulsos mais disruptivos são suportáveis e não destruirão o vínculo.
Este espaço, como nos lembra Winnicott, torna-se um “jardim secreto”, um território transicional seguro onde a criança pode, talvez pela primeira vez, cultivar sua subjetividade sem a pressão de se adequar a padrões externos. É um santuário ético onde a criança pode existir sem as máscaras que a sociedade lhe impõe, um lugar onde o caos é metodicamente acolhido para ser transformado.
A Caligrafia da Alma: A Centralidade da Ludoterapia
Se o setting é o continente, a ludoterapia (terapia pelo brincar) é o conteúdo e o método principal da alquimia. A psicanálise, desde Melanie Klein e Winnicott, compreende que o brincar é a linguagem primordial da criança, a “principal via de acesso ao seu inconsciente. É através do brincar que a criança encena seus conflitos, elabora seus medos e testa soluções para os dilemas de sua vida interior.
Para a criança com TDAH, cuja angústia se manifesta predominantemente no corpo, o brincar é a ponte essencial entre o ato e o símbolo. O que no mundo externo é visto como “descarga motora” sem sentido, no consultório se torna material clínico precioso. O analista, nesta alquimia, funciona como um catalisador. Ele não dirige a brincadeira, mas a observa com atenção flutuante, oferecendo a matéria-prima da desorganização da criança. Seu papel é o de, pontualmente, oferecer uma interpretação, uma palavra, um nome, que ajude a transformar o “ato bruto em um símbolo vivo”.
Quando uma criança joga repetidamente um carrinho contra a parede, o analista pode intervir não para parar a ação, mas para dar-lhe um sentido: “Parece que este carrinho está muito, muito bravo”. Esta simples frase inicia um processo de transformação. O ato puro (descarga) começa a se conectar com um afeto (raiva), e este afeto pode, então, ser inserido em uma história (“Com quem ele está bravo?”). O brincar torna-se, assim, a “caligrafia da alma”, e o analista, o parceiro que ajuda a criança a ler o que ela mesma está escrevendo. O objetivo final, como define o curso, é “restituir a palavra ao sujeito”, permitindo que ele construa uma narrativa para seu sofrimento, em vez de apenas atuá-lo.
Os “Três Roubos” da Infância Moderna: O Contexto Social do Sintoma
A necessidade desta clínica se torna ainda mais urgente quando a contextualizamos na “moderna ecologia infantil”, marcada por três roubos fundamentais que criam as condições perfeitas para a proliferação de sintomas semelhantes aos do TDAH.
- A Destruição do Tempo Não Estruturado: A agenda da criança contemporânea, transformada em um “projeto a ser otimizado” por uma “parentalidade intensiva” e ansiosa, não deixa espaço para o ócio, para o devaneio, para o tédio. O tempo livre, essencial para o desenvolvimento da criatividade e do mundo interno, foi abolido.
- A Colonização do Brincar Livre pelo Digital Algorítmico: O brincar espontâneo, criativo e auto-dirigido foi substituído por jogos digitais que, em sua maioria, oferecem gratificação instantânea, recompensas previsíveis e narrativas pré-fabricadas. A criança deixa de ser a autora de sua brincadeira para se tornar uma consumidora de estímulos.
- A Abolição dos Espaços Vazios: A sociedade contemporânea tem pavor do vazio, do silêncio, da solidão. A criança é constantemente bombardeada por estímulos para que nunca precise se confrontar consigo mesma.
A inquietude da infância, neste contexto, não é patológica; é uma “resistência inconsciente” a essa domesticação, um grito de socorro de uma civilização que roubou das crianças o direito fundamental de simplesmente ser. A psicoterapia psicanalítica, ao oferecer um espaço de tempo não estruturado, de brincar livre e de silêncio acolhedor, torna-se um ato subversivo: o de devolver à criança o tempo e o espaço que lhe foram roubados.
A Filosofia da Neurodiversidade: Dialogando com Novas Perspectivas
A clínica psicanalítica, para se manter viva, precisa dialogar. O curso, de forma inteligente, nos apresenta a perspectiva de Jessica McCabe, uma voz potente do movimento da neurodiversidade, cuja filosofia central é: “trabalhe com o seu cérebro, não contra ele”. Esta abordagem, embora vinda de outro campo, ressoa profundamente com os objetivos da psicanálise.
McCabe nos oferece insights práticos que complementam a escuta psicanalítica:
- A Procrastinação como Regulação Emocional: Ela recontextualiza a procrastinação não como preguiça, mas como uma dificuldade em lidar com as emoções associadas a uma tarefa (tédio, medo de falhar, ansiedade). Isso se alinha perfeitamente com a visão psicanalítica do sintoma como uma defesa contra a angústia.
- O Sistema de Motivação do TDAH: Ela identifica que o cérebro com TDAH é movido por interesse, desafio e novidade, e não por importância ou recompensas futuras. Compreender isso é crucial para pais e educadores, que podem, então, adaptar as tarefas para engajar esse sistema de motivação, em vez de travar uma batalha perdida contra ele.
- A Autocompaixão Radical: A proposta de uma “caixa de ferramentas adaptativa”, baseada na autocompaixão, é o antídoto para a internalização da crítica e da sensação de fracasso que assombra quem vive com TDAH.
Este diálogo enriquece a clínica, permitindo que o terapeuta combine a profundidade da escuta do inconsciente com estratégias práticas e compassivas que ajudam o sujeito a navegar o mundo de uma forma mais gentil e eficaz, respeitando a sua singularidade neurológica.
Conclusão: A Restituição da Palavra e da Dignidade
A psicoterapia psicanalítica para a criança com TDAH é, em última análise, um ato de restituição. É um processo alquímico que, através da segurança do setting, da liberdade do brincar e da potência do encontro humano, busca devolver à criança aquilo que lhe foi tirado: seja o tempo para o devaneio, seja a capacidade de nomear sua dor, seja, fundamentalmente, o direito de ser a autora de sua própria história.
O objetivo não é a produção de uma criança “normalizada”, dócil e silenciosa. É, pelo contrário, ajudar a criança a encontrar os canais para que sua energia, sua criatividade e sua forma única de estar no mundo possam se expressar de maneira construtiva, e não destrutiva. É um convite para que nós, profissionais da saúde, abandonemos a frieza do protocolo e mergulhemos na coragem do encontro, lembrando sempre que o essencial — a história, a angústia, a alma de uma criança — é, e sempre será, invisível aos olhos.