A Arqueologia da Alma: O TDAH no Tempo do Desenvolvimento Infantil

Após estabelecermos o que é o TDAH e qual o olhar geral da psicanálise sobre ele, adentramos agora o coração de sua perspectiva: o desenvolvimento infantil. A psicanálise, em sua essência, é uma disciplina histórica; ela postula que nenhum sintoma nasce do nada (ex nihilo), mas emerge como um “artefato histórico”, um monumento enigmático cujas raízes podem ser traçadas até os primórdios da constituição do sujeito. A tese central deste capítulo é, portanto, que o TDAH é o resultado de uma trama complexa, tecida entre a constituição psíquica da criança e a qualidade de suas primeiras e mais fundamentais relações com o mundo.

Esta abordagem propõe uma arqueologia da alma. Em vez de apenas catalogar os sintomas na superfície, somos convidados a escavar as camadas do desenvolvimento em busca dos “impasses” e “falhas” que podem ter moldado a arquitetura psíquica da criança. Recorrendo às teorias de Freud e, com especial ênfase, às de D.W. Winnicott, este capítulo nos fornece as ferramentas para dar ao sintoma uma linha do tempo e um contexto. Ele nos convoca a uma transformação radical do olhar: de um foco no controle do comportamento para uma escuta da história que o comportamento encena. É um chamado para um diálogo inteligente e pacífico entre a psicanálise e a biomedicina, onde a primeira, com sua “longa mão”, oferece à segunda a profundidade da biografia para complementar a inevitável realidade da biologia.

O Alicerce da Psique: Fases do Desenvolvimento e o Ambiente Suficientemente Bom

A psicanálise freudiana clássica entende o desenvolvimento como uma sucessão de fases (oral, anal, fálica, etc.), cada uma com seus desafios e conflitos específicos. “Impasses” nessas fases cruciais — um desmame traumático, um controle dos esfíncteres excessivamente rígido, uma resolução conflituosa do complexo de Édipo — podem deixar marcas, criando pontos de fixação e vulnerabilidades na estrutura psíquica que podem, mais tarde, se manifestar em sintomas como a dificuldade de lidar com limites ou a angústia que se descarrega em agitação motora.

No entanto, é a perspectiva de D.W. Winnicott que lança a luz mais potente sobre a gênese dos sintomas associados ao TDAH. Winnicott desloca o foco do drama pulsional interno para a qualidade da relação entre o bebê e seu ambiente primordial. Ele cunha o conceito fundamental de “ambiente suficientemente bom”. Não se trata de um ambiente perfeito, mas de um ambiente que, através de um “suporte empático”, se adapta ativamente às necessidades do bebê, oferecendo-lhe uma experiência de onipotência, segurança e continuidade do ser. Uma mãe (ou cuidador) “suficientemente boa” funciona como um ego auxiliar para o bebê, acolhendo suas angústias, dando sentido às suas sensações caóticas e permitindo que seu verdadeiro self comece a emergir.

Quando este ambiente falha de forma significativa — por intrusão, por negligência, por falta de empatia —, pode ocorrer o que Winnicott chama de “agonia impensável”. A falha em promover um suporte empático pode ser um “gatilho para a desorganização”. A criança, em vez de desenvolver um núcleo psíquico integrado, pode se constituir sobre uma base de caos e insegurança. A agitação e a desatenção, nesta ótica, podem ser compreendidas como uma defesa desesperada contra essa desorganização interna, um esforço constante para manter o self coeso diante da ameaça de fragmentação. A capacidade de concentração, como argumenta a tese, emerge diretamente de um ambiente facilitador nos primeiros anos. Sem essa base de segurança, a mente luta para se ancorar.

O Paradoxo da Separação: O Porto Seguro como Base para a Navegação

Winnicott nos apresenta um paradoxo fundamental do desenvolvimento: a criança precisa de uma experiência inicial de fusão com o ambiente para, mais tarde, ser capaz de alcançar a separação e a autonomia. A metáfora da navegação marítima é perfeita: os pais funcionam como o “porto seguro”. É somente por ter um porto confiável, para onde sempre se pode voltar, que o pequeno navegador se sente seguro o suficiente para içar as velas e se aventurar no mar imenso de sua jornada existencial.

Nossa cultura, ansiosa e focada na performance, muitas vezes sabota este processo. Exigimos uma independência precoce, empurramos a criança para fora do porto antes que ela esteja pronta, confundindo apego com dependência. O que Winnicott nos mostra é que um apego seguro não é o oposto da independência; é a sua condição de possibilidade. Os sintomas de agitação e distração podem ser lidos, neste contexto, como expressões do conflito entre “o desejo de partir e o medo da imensidão”. A criança hiperativa pode ser aquele pequeno barco que, lançado ao mar cedo demais, navega em círculos frenéticos ao redor do porto, incapaz de se afastar por medo de se perder, mas incapaz de atracar por sentir que não é mais bem-vindo.

A verdadeira função dos adultos, portanto, transcende o controle. Ela se transforma em ser “faróis, com presenças constantes e confiáveis à distância”. É a certeza da existência do farol que dá ao navegador a coragem de explorar o desconhecido.

O Trabalho da Infância: O Brincar como Elaboração da Angústia de Separação

Se o desenvolvimento é uma jornada de separações sucessivas — do útero, do seio, do colo, da presença constante da mãe —, a criança precisa de uma ferramenta para elaborar as angústias que essas separações inevitavelmente geram. Para a psicanálise, essa ferramenta é o brincar. O brincar não é um mero passatempo; é “o trabalho imprescindível da infância”. É no espaço simbólico do “faz de conta” que a criança pode encenar, repetir e dominar ativamente as experiências em que foi passiva e impotente.

O curso destaca um insight crucial: a “angústia de separação surge como um motor oculto da hiperatividade”. A criança que não para, que busca estímulos incessantemente, pode estar lutando contra o sentimento de vazio e desamparo deixado pela ausência. Sua agitação é uma forma de “preencher” o espaço, de se auto-estimular para não sentir a dor da solidão. Quando a criança não teve a oportunidade, através do brincar e da presença de um adulto empático, de elaborar essa angústia, ela permanece como uma energia bruta que se descarrega no corpo. O brincar, portanto, permite transformar a descarga motora caótica em uma elaboração simbólica, em uma história com começo, meio e fim. Ao brincar de se esconder e ser achado, por exemplo, a criança está dominando em um nível simbólico o drama universal do desaparecimento e do reencontro.

O Sintoma na Relação: O TDAH e o Laço Educativo

A perspectiva desenvolvimentista nos força a questionar a localização do transtorno. A pergunta “O TDAH existe no sujeito ou na relação?” é um convite para analisar como o sintoma emerge e ganha sentido no “laço educativo”. Muitas vezes, a agitação e a desatenção da criança manifestam um “curto-circuito” na relação com o professor e a instituição.

O diagnóstico de TDAH pode se tornar um “biombo conveniente”, uma tela que esconde a incapacidade da escola de sustentar vínculos educativos autênticos, de acolher a neurodiversidade e de questionar suas próprias práticas padronizantes. Ao rotular a criança, a instituição se isenta de sua responsabilidade na produção do mal-estar. A psicanálise aplicada à educação propõe uma mudança radical: entender o sintoma como uma emergência no laço, um sinal de que algo na relação não vai bem. Isso nos obriga a questionar: estamos a tratar cérebros ou a negligenciar nossos laços? O objetivo não é suprimir o caos da criança, mas operar uma mudança ética fundamental, saindo de uma cultura da culpa para uma da responsabilidade compartilhada, onde o analista (ou o educador com escuta) introduz perguntas onde só havia certezas diagnósticas.

Uma Condição Dinâmica: A Perspectiva Evolutiva e os Fatores de Proteção

Finalmente, uma visão desenvolvimentista completa deve reconhecer, como o faz Mário Rodrigues Louzão Neto, que o TDAH é uma “condição neurobiológica evolutiva”. Os mesmos traços neurológicos se manifestam de formas distintas em cada fase da vida. Isso nos confronta com um paradoxo incômodo: frequentemente, “tratamos uma condição dinâmica com ferramentas estáticas”. Insistimos em protocolos rígidos e diagnósticos que funcionam como “gavetas definitivas”, perdendo a essência transformadora de um cérebro que se reinventa a cada dia.

Esta perspectiva nos leva à noção crucial de “fatores de proteção”. O prognóstico de uma criança com TDAH não é um destino selado pela genética. Ele depende fundamentalmente da qualidade do ambiente que a acolhe. O diagnóstico precoce, o tratamento adequado (que deve ser multimodal) e, acima de tudo, ambientes acolhedores que reconheçam e valorizem a neurodiversidade são determinantes para o futuro. Um traço neurológico que em um ambiente hostil se torna um déficit incapacitante, em um ambiente empático e adaptado pode se revelar uma fonte de criatividade e energia.

Conclusão: Tornando-se Testemunhas Sensíveis

A arqueologia da alma que este capítulo propõe nos deixa com uma certeza: o sintoma do TDAH tem uma história. Ele não nasce do nada. Ele é o ponto de convergência de uma vulnerabilidade neurobiológica, dos impasses do desenvolvimento psíquico, da qualidade do ambiente primordial e da capacidade (ou incapacidade) de elaborar as angústias fundamentais da existência.

A lição mais profunda é a convocação a uma “transformação do olhar clínico e parental”. Nossa função transcende o controle. Somos chamados a nos tornarmos “testemunhas sensíveis”, arqueólogos pacientes, capazes de decifrar a história que se desenrola por trás dos comportamentos. É uma proposta que exige coragem: a coragem de permitir a fusão antes de exigir a separação, a coragem de valorizar o brincar tanto quanto a lição de casa, a coragem de questionar nossas próprias instituições. Acima de tudo, é a coragem de resistir à tentação de “medicalizar a alma” e, em seu lugar, oferecer à criança o que lhe é mais precioso: um porto seguro, uma escuta atenta e a confiança de que sua orquestra, por mais desafinada que pareça, pode criar a mais singular e bela das sinfonias.

Deixe um comentário