Introdução: O Evangelho do Superego Feroz
Meus caríssimos cursistas, parceiros de jornada,
Sejam bem-vindos a uma escavação arqueológica. Hoje, nosso trabalho se volta para uma das ferramentas mais fundamentais e reveladoras da clínica psicanalítica do burnout: a anamnese do trabalho. Longe de ser uma mera coleta de dados curriculares, a anamnese psicanalítica é uma arte, uma arqueologia da vida profissional que trata a carreira não como uma linha reta de progressão, mas como um palimpsesto — um manuscrito antigo cujas camadas de texto foram apagadas e reescritas, mas onde as marcas da história original ainda assombram a superfície.
A máxima da Roma Antiga, “Labor omnia vincit improbus” (O trabalho árduo vence tudo), serve como o evangelho do Superego feroz que rege a cultura corporativa. Esta frase sustenta a fantasia onipotente de que não há limites para o esforço humano, negando a necessidade do descanso e as fragilidades do corpo e da psique. É precisamente esta ideologia que pavimenta o caminho para a exaustão. Nossa tarefa, neste artigo, é desvelar o que se esconde sob essa superfície de performance e sacrifício. Investigaremos como o escritório se torna um teatro de fantasmas, como somos movidos por fantasias secretas sobre o que o trabalho deveria nos dar, e como a superação do burnout passa, necessariamente, pelo doloroso, mas libertador, trabalho de luto por esses ideais impossíveis.
A Conexão Psicanalítica: A Carreira como Palimpsesto e o Escritório como Teatro 🎭
A proposta psicanalítica para a anamnese do trabalho é radical: o burnout não é um evento presente, mas o desfecho de uma narrativa iniciada há muito tempo.
- A Arqueologia da Vida Profissional: Tratar a carreira como um palimpsesto significa escutar para além do currículo. Significa entender que, sob a história oficial de cargos e promoções, existe uma história oculta de desejos, sacrifícios, identificações e traumas. O primeiro emprego, neste sentido, é visto como uma cena primordial, um momento fundador que muitas vezes inscreve roteiros de sucesso ou de sacrifício que serão repetidos ao longo de toda a vida.
- O Escritório como Teatro de Fantasmas: O ambiente de trabalho é um palco privilegiado para a transferência. De forma inconsciente, nós projetamos figuras parentais em nossos chefes e figuras fraternas em nossos colegas. Os intensos conflitos de autoridade, as rivalidades e as buscas por reconhecimento no escritório não são apenas sobre a dinâmica atual; são ecos de batalhas familiares antigas. É por isso que uma crítica de um gestor pode nos ferir de forma tão desproporcional: não estamos reagindo apenas ao chefe, mas ao eco do pai crítico ou da mãe exigente que ele, para o nosso inconsciente, passou a representar.
- A Fantasia Secreta sobre o Trabalho: Somos movidos por uma fantasia inconsciente sobre o que o trabalho deveria nos dar: salvação, reconhecimento absoluto, um sentido para a vida. O burnout é a amarga desilusão que ocorre quando essa fantasia colide brutalmente com a realidade da exploração, da indiferença ou da falta de sentido. A cura, portanto, não está em encontrar um novo trabalho que “cumpra a promessa”, mas em realizar o luto por esse ideal impossível, libertando o desejo para buscar satisfação em fontes mais reais e sustentáveis.
A Sensibilização: Os Fantasmas do Passado que Assombram o Presente 👻
Inspirados pela literatura de William Faulkner, entendemos que “o passado não está morto; ele nem sequer é passado”. Esta é a essência da experiência do sujeito em burnout.
- Os Roteiros Inconscientes: O passado profissional — com suas experiências fundadoras, projeções e fantasias — não fica para trás. Ele assombra o presente, governando secretamente nossas escolhas, reações e vulnerabilidades. Somos regidos por roteiros que escrevemos há muito tempo e dos quais não nos lembramos.
- A Compulsão à Repetição como Sintoma: O principal sintoma dessa assombração é a compulsão à repetição. Repetimos os mesmos erros, escolhemos os mesmos tipos de chefes abusivos, nos colocamos nas mesmas situações de sobrecarga, não porque somos masoquistas, mas porque estamos presos em uma tentativa inconsciente de “consertar” o passado no presente.
- O Burnout como Colapso do Presente: O burnout é o momento crítico em que esses fantasmas se tornam ruidosos demais. É o colapso do presente debaixo do peso de um passado que não foi elaborado. A exaustão que sentimos não é apenas do trabalho atual; é a exaustão de lutar batalhas antigas em cenários novos. A anamnese psicanalítica, como uma arqueologia da alma, não visa exorcizar esses fantasmas, mas escutar suas histórias, dar-lhes um enterro digno e transformar a assombração em memória consciente, libertando o sujeito de seu destino repetitivo.
Os Conceitos em Foco: A Sedução Perversa e a Ecologia do Desejo 🌱
Para aprofundar a análise, recorremos à obra de teóricos como Florencia Caffaratti (referenciada como “Sopranzi”), que nos oferecem uma visão crítica e afiada da lógica do trabalho contemporâneo.
- O Burnout como Sedução Perversa: A tese central é que o esgotamento atual não nasce primariamente da coerção, como no capitalismo industrial, but from a perverse seduction. The system does not force us to exhaust ourselves; it seduces us to do so. Ideologies like “management by happiness” and the mantra “work with what you love” are manipulative tools.
- O Imperativo Superegóico do Gozo: A consequência psíquica dessa sedução é a instalação de um imperativo do Superego para o gozo. Como vimos, é um comando que exige uma performance ilimitada e, mais perversamente, que sintamos paixão por essa performance. O sujeito é lançado na trágica trajetória que vai da paixão à exaustão, onde a fonte de seu maior prazer se converte, dialeticamente, no motor de sua própria destruição.
- O Colapso e a Resistência como “Profanação”: O burnout é o colapso inevitável desse processo, o esgotamento da fonte libidinal explorada em nome de uma obrigação disfarçada de desejo. A verdadeira resistência, nesse contexto, não é ser mais “resiliente” (o que apenas reforça o sistema), mas um ato de “profanação”: o resgate do desejo das garras do mercado. Trata-se de criar uma “ecologia do desejo”, um ecossistema psíquico pessoal onde seja possível amar e trabalhar de uma forma que nutra, em vez de queimar.
O Diálogo Cultural: Dramas Familiares, Fantasias e Heranças 🎬
A cultura, mais uma vez, nos oferece um palco para visualizar essas dinâmicas transgeracionais e inconscientes.
- A Saga Star Wars (George Lucas): A vida profissional é um palco para a reedição do drama familiar. A luta de Luke Skywalker com a figura paterna aterrorizante e sedutora de Darth Vader é a saga edípica por excelência. A análise da saga nos mostra, de forma mítica, como nossos maiores desafios de carreira — nossa relação com a autoridade, a rivalidade com os “irmãos” (colegas), a busca por um lugar no “império” (a organização) — são frequentemente o eco de conflitos primários não resolvidos.
- “Grandes Esperanças” (Charles Dickens): A obra de Dickens é um estudo profundo sobre o poder de uma fantasia inconsciente em ditar toda uma trajetória de vida. O protagonista, Pip, molda todas as suas escolhas e ambições em torno da fantasia de que foi destinado a uma vida grandiosa por uma benfeitora misteriosa. Sua carreira torna-se um longo sintoma dessa ilusão. O colapso do burnout, muitas vezes, coincide com este doloroso confronto com a verdade por trás da fantasia que sustentava nossa identidade profissional.
- O Mito de Mayã-ry-tsainĩ (Mitologia do Alto Xingu): Este conceito expande a dimensão histórica para a transgeracional. A ideia de um genograma laboral nos convida a pensar que não atuamos apenas nossos próprios dramas, mas também os mandatos e as fantasias sobre o trabalho herdados de nossa linhagem familiar. O burnout pode ser o ponto de ruptura de uma dívida simbólica que não é nossa, mas que carregamos inconscientemente por nossos pais e avós.
Conclusão: A Anamnese como Ato de Ressignificação
A anamnese psicanalítica do trabalho, como vimos, é uma ferramenta fundamental que lê a história profissional como uma narrativa psíquica singular, e não como um simples currículo. A crise atual torna-se ininteligível sem esta imersão na história. O foco da investigação — os primeiros empregos, as fantasias inconscientes, a reedição dos conflitos parentais na relação com a autoridade — revela que o burnout não é um acidente, mas o destino quase inevitável de uma longa trama.
O objetivo final da anamnese não é apenas diagnosticar, mas historizar o sofrimento. Ao desvendar esse enredo, ao conectar os pontos entre o colapso presente e os fantasmas do passado, a psicanálise oferece ao sujeito a possibilidade de deixar de ser um personagem em um roteiro repetitivo para se tornar o autor de uma nova história. É a condição necessária para ressignificar o final e construir um futuro profissional mais autêntico e, finalmente, mais vivo.