Nos confins do curso “Psicanálise e Sexualidade”, chegamos a um dos temas mais pungentes e necessários da prática clínica contemporânea: a escuta terapêutica na sexualidade. Longe de ser uma mera formalidade, a escuta é o pilar que resgata a dignidade da sexualidade sem julgamentos, um farol em meio à tempestade da cultura do desempenho que assola o século XXI. Este artigo aprofunda-se na importância dessa escuta, explora os desafios impostos pela sociedade atual e oferece ferramentas para uma prática clínica verdadeiramente transformadora.
O Erótico em Cena: Resgatando o Prazer Autêntico
A aula se inicia com a provocação visual das “Nanas” de Niki de Saint Phalle, esculturas exuberantes que celebram a liberdade sexual e corporal. Essas imagens, vibrantes em erotismo e alegria, são um convite para pensar a sexualidade para além das amarras.
Prática Comentada: Observe as “Nanas” e reflita: como essas obras desafiam os padrões estéticos e as expectativas sociais sobre o corpo e o prazer? Discuta como a arte pode ser um ponto de partida para a desconstrução de normas e a celebração da vitalidade erótica.
Dica: Ao abordar a sexualidade, convide o paciente a explorar referências artísticas, literárias ou musicais que para ele representem liberdade, prazer ou até mesmo conflito sexual. Isso pode abrir portas para uma comunicação mais fluida e simbólica.
A Cultura do Desempenho: Um Novo Supereu Invasor
A grande questão da aula é a “cultura do desempenho” – um novo supereu que invadiu até mesmo a intimidade do quarto. Vivemos em uma sociedade obcecada por métricas, controles e indicadores, e, assustadoramente, essa lógica capitalista se estende à sexualidade. A duração da ereção, o número de orgasmos, a intensidade do gemido: tudo vira métrica de performance. O prazer, que deveria ser conexão e presença, torna-se uma tarefa, um resultado a ser alcançado, gerando uma ansiedade crônica e um profundo sentimento de inadequação. Como Byung-Chul Han aponta em “A Sociedade do Cansaço”, o sujeito moderno explora a si mesmo até no erotismo.
Exercício Prático: Reflita sobre exemplos cotidianos (em filmes, redes sociais, conversas com amigos) onde a “cultura do desempenho” na sexualidade se manifesta. Como essa pressão por performance pode comprometer a autoestima e a liberdade erótica? Anote suas percepções.
Justificativa: Compreender a origem dessa ansiedade de performance é crucial para a escuta. Muitos pacientes chegam à clínica sentindo-se “ineptos” ou “inadequados” porque não atendem a essas métricas impostas socialmente, e não por uma disfunção real.
Dica: Esteja atento a frases como “Eu preciso…” ou “Eu devo…” ao invés de “Eu desejo…” ou “Eu sinto…”. Essas expressões podem ser indicadores da internalização da cultura do desempenho.
A Escuta que Resgata a Dignidade: Pilares da Abordagem Terapêutica
No espaço sagrado da escuta terapêutica, o objetivo é resgatar a dignidade da sexualidade sem julgamentos. A clínica psicanalítica se posiciona como o primeiro lugar onde muitos indivíduos podem falar sobre seus desejos mais íntimos sem medo de condenação. Para que isso aconteça, três elementos são fundamentais:
- Neutralidade Empática do Terapeuta: Parece um paradoxo, mas é a capacidade de acolher o sofrimento do paciente (empatia) sem impor juízos de valor ou direções, permitindo que o sujeito desdobre sua própria narrativa.
- A Escuta como Construção Simbólica do Desejo: O terapeuta não apenas ouve, mas ajuda o paciente a dar sentido, a simbolizar seus desejos, fantasias e conflitos, muitas vezes inconscientes. É um processo de criação de novos significados.
- A Clínica como Ruptura com o Discurso Normativo: O setting terapêutico é um espaço de resistência contra as normas sociais sufocantes. Aqui, a individualidade da experiência sexual é valorizada e explorada em sua complexidade, longe das imposições de “certo” ou “errado”.
Prática Comentada: Discutiremos a diferença entre “aconselhar” e “escutar com neutralidade empática”. Como podemos evitar a armadilha de tentar “resolver” o problema do paciente e, em vez disso, ajudá-lo a encontrar suas próprias respostas?
Exercício Prático: Em duplas, simulem um diálogo terapêutico. Um atua como paciente, trazendo uma queixa relacionada à sexualidade (ex: ansiedade de performance). O outro atua como terapeuta, praticando a escuta empática e a não-julgamento. Depois, troquem papéis e deem feedback.
Justificativa: A neutralidade empática não significa frieza, mas sim a ausência de preconceito e a capacidade de suportar o que o paciente traz, por mais “diferente” que possa parecer ao terapeuta.
Dica: Desenvolva a arte de fazer perguntas abertas que convidem à exploração, ao invés de perguntas fechadas que buscam respostas diretas. Isso estimula a simbolização do desejo.
Ressignificando o Prazer: Presença e Autenticidade
Diante da cultura do desempenho, é vital ressignificar o prazer. Trata-se de trocá-lo pela presença, valorizando a conexão, o toque e o ritmo próprio do encontro. Parar de performar para o outro e começar a se encontrar com o outro é o primeiro passo para uma nova ética do encontro sexual. A autoestima, inspirada em Oscar Wilde, é o fundamento da liberdade erótica: “Amar-se é o início de um romance que permite desejar sem implorar por validação.” Transformar a cama em palco de metas eróticas mata o desejo em nome do espetáculo.
Exercício Prático: Pense em situações em que você já se sentiu pressionado(a) a performar em qualquer área da vida. Como essa pressão afetou seu prazer ou sua liberdade? Transfira essa reflexão para o contexto sexual.
Prática Comentada: Analisaremos como o jogo e a dimensão lúdica, propostos por Winnicott, podem “renascer” o desejo quando o sexo deixa de ser um “dever” e volta a ser um “jogo inventado a dois”.
Dica: Incentive seus pacientes (e a si mesmo) a explorar o que lhes dá prazer de forma individual, sem a necessidade de um parceiro ou de um objetivo específico. O autoconhecimento erótico é a base para a liberdade.
Erotismo, Ansiedade Crônica e os Fetichismos
O erotismo hoje se manifesta como performance vigilante. O supereu moderno, em vez de proibir o gozo, paradoxalmente, o exige e o publica, gerando uma ansiedade crônica e sentimentos de inadequação. A clínica psicanalítica se torna um testemunho das vítimas dessa cultura do desempenho.
A série “Sex Education” (Netflix) é um excelente exemplo cultural que critica essa dinâmica, mostrando como a pressão por performance sufoca o desejo e cria sintomas como ansiedade sexual e bloqueios afetivos em adolescentes.
Prática Comentada: Discutiremos cenas específicas de “Sex Education” (ou outra obra similar) que ilustrem a cultura do desempenho e seus impactos. Como a série humaniza esses dilemas?
Justificativa: Utilizar produções culturais relevantes como “Sex Education” é uma ferramenta didática poderosa para ilustrar conceitos complexos de forma acessível e relacionável.
Dica: Ao assistir ou discutir conteúdos sobre sexualidade, questione sempre: qual a mensagem sobre prazer, desejo e performance? Há pressão implícita ou explícita por algum tipo de “resultado”?
Finalmente, revisitaremos os fetichismos. A internet permitiu que amantes de diversas preferências (pés, látex, roleplay) encontrem comunidades, levantando a questão crucial de distinguir preferências inofensivas de compulsões angustiantes. Espaços como fóruns e “safe spaces” online (como os mencionados “Horums King”) oferecem diálogo e guias sobre limites e consentimento para prevenir danos. O curso explora exemplos culturais como “Crash” (que erotiza acidentes rodoviários), “Fetish Fashion” (a influência do látex na moda) e “Lucky Hole” (fotografias de clubes BDSM japoneses dos anos 80), mostrando como o fetiche permeia diversas dimensões da cultura e do desejo humano.
Exercício Prático: Para uma reflexão mais profunda, pesquise sobre as histórias por trás de um dos exemplos culturais de fetichismo citados (ex: “Crash”, “Lucky Hole”). Como a psicanálise poderia interpretar a origem e a função desses fetiches para os indivíduos?
Prática Comentada: Debateremos em grupo a importância do consentimento e dos limites em todas as práticas sexuais, incluindo os fetichismos. Como o terapeuta pode abordar esses temas sem julgamento, garantindo a segurança e o bem-estar do paciente?
Justificativa: Compreender o fetichismo pela ótica psicanalítica permite ao terapeuta diferenciar uma preferência sexual que traz prazer e não causa dano de uma compulsão que gera angústia e sofrimento.
Dica: Ao abordar temas “tabu” como fetichismos, lembre-se que o objetivo da escuta terapêutica não é “curar” uma preferência, mas sim entender o seu significado para o indivíduo e como ela se insere em sua vida psíquica e relacional.
Esteja preparado para uma aula que não só enriquecerá seu conhecimento teórico, mas também aguçará sua sensibilidade e competência para atuar no campo da sexualidade com a dignidade e a profundidade que ela merece. Até breve!