Após assentar os fundamentos teóricos que posicionam o TDAH como um sintoma da nossa civilização e uma expressão da biografia do sujeito, adentramos agora o coração da prática clínica: o ato de avaliar. Longe de ser um procedimento técnico e neutro, a avaliação psicanalítica do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) se apresenta como uma “subversão metodológica”, uma revolução silenciosa que desafia a lógica predominante da medição e da rotulação. A premissa que ancora toda esta abordagem é de uma simplicidade e, ao mesmo tempo, de uma profundidade avassaladora: a criança não é um objeto a ser medido, controlado e ajustado, mas um sujeito cujo sintoma é uma forma de comunicar. E essa comunicação, cifrada e muitas vezes desesperada, não exige do clínico um checklist, mas uma escuta sintonizada com aquilo que não é dito.
Este artigo propõe-se a explorar a arte e a ética desta avaliação, diferenciando-a radicalmente do olhar médico tradicional. Investigaremos as ferramentas deste ofício, que se assemelham mais às de um detetive como Sherlock Holmes do que às de um técnico de laboratório, e que transformam a primeira entrevista em um gesto de “hospitalidade ao sofrimento”. Por fim, abraçaremos a complexidade de um “caminho do meio” que, sem negar a realidade neurobiológica do TDAH, recusa-se a banalizar o diagnóstico, buscando um equilíbrio fundamental entre o rigor científico e a compaixão humana. O objetivo é claro: mover o foco do código para a história, da etiqueta para o enigma, do diagnóstico que silencia para a escuta que liberta.
A Distinção Fundamental: O Que se Busca na Avaliação?
A primeira e mais crucial distinção reside no próprio objetivo do processo avaliativo. Enquanto a avaliação médica e a psicanalítica podem partir dos mesmos fenômenos observáveis, suas intenções e seus focos são radicalmente distintos.
A avaliação médica tradicional, muitas vezes pautada pela lógica do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), busca identificar um padrão de sintomas que corresponda a uma categoria nosológica pré-definida. Seu objetivo é nomear o transtorno, classificar o sofrimento para, a partir daí, traçar um plano de tratamento frequentemente focado na regulação comportamental e farmacológica. Embora útil para a organização do conhecimento e para a comunicação entre profissionais, esta abordagem carrega o risco inerente da rotulação. Como critica o curso, a descontextualização sistemática promovida pelo DSM remove os sintomas de suas histórias particulares, ignorando os contextos familiares e sociais. O consultório moderno corre o risco de se tornar uma “fábrica de diagnósticos”, onde o sofrimento é transformado em um código (como o F90.0 do CID), silenciando a narrativa singular do paciente.
A avaliação psicanalítica, por sua vez, opera uma inversão. Seu objetivo principal não é rotular, mas buscar o sentido do sintoma para construir uma história. O foco da investigação desloca-se da fenomenologia para a função do sintoma dentro da “economia psíquica” do sujeito. A pergunta-chave muda de “O que é isso?” para “Para que serve isso?“. Para que serve esta agitação nesta criança, nesta família, neste momento de sua vida? A agitação é uma defesa contra a angústia? Um apelo ao olhar dos pais? A encenação de um trauma não elaborado? A avaliação psicanalítica, inspirada na metáfora de Saint-Exupéry, busca “ver com o coração” o que é essencial e invisível aos olhos: a trama inconsciente que sustenta o sofrimento visível.
As Ferramentas do Investigador: A Escuta e a Observação Holmesiana
Para acessar essa dimensão invisível, o psicanalista lança mão de ferramentas que transcendem a mera coleta de dados. Sua postura é a de um investigador, um arqueólogo do psiquismo.
- A Entrevista como Gesto de Hospitalidade: As entrevistas preliminares e a anamnese, na perspectiva psicanalítica, não são interrogatórios em busca de sintomas. São, antes de tudo, um “gesto de hospitalidade ao sofrimento”. O clínico oferece um espaço de acolhimento e continência, onde o paciente (e sua família) se sinta seguro para começar a desdobrar sua narrativa. A escuta é “sensível às rachaduras do discurso” — aos lapsos, às contradições, às hesitações — e aos “ecos de histórias não contadas”. O que não é dito, o que é silenciado, muitas vezes revela mais do que as palavras explícitas.
- A Distinção Holmesiana: Ver vs. Observar: O curso nos presenteia com a brilhante distinção, inspirada em Sherlock Holmes, entre “ver” e “observar”. Ver é o ato passivo de registrar dados óbvios, aquilo que todos veem. O clínico que apenas aplica um checklist está a “ver”. Observar, contudo, é um ato ativo, uma investigação minuciosa. O psicanalista, como Holmes, “observa”: ele busca pistas, vestígios, indícios e detalhes sutis que, quando conectados, compõem a complexa narrativa do sofrimento. Um tique nervoso, a forma como a criança desmonta um brinquedo, uma palavra repetida pela mãe — nada é descartado, tudo pode ser um fio que leva ao coração do enigma.
- O Brincar como Acesso ao Inconsciente: Especialmente com crianças, a análise do brincar é uma ferramenta técnica fundamental. O brincar é a linguagem primordial através da qual a criança expressa seus conflitos, medos e fantasias. É no “faz-de-conta” que ela revela o seu “roteiro psíquico”. O analista observa as cenas que se repetem, os personagens que são criados, as narrativas que se desenrolam, decifrando, através da brincadeira, o que ainda não pode ser dito em palavras.
- A “Alfabetização Específica”: O clínico precisa se alfabetizar em uma nova língua, a do inconsciente. Esta “alfabetização específica” é o que lhe permite transformar o aparente “não-senso” do sintoma (uma agitação sem motivo, uma dispersão ilógica) em “universos simbólicos complexos”. Trata-se de abraçar a dúvida e a incerteza como dimensões inerentes à verdade subjetiva, resistindo à tentação de fechar o sentido com uma resposta rápida.
O Caminho do Meio: Equilibrando Rigor Científico e Compaixão Humana
Uma crítica honesta e eficaz não pode cair no negacionismo. O curso, sabiamente, propõe um “caminho do meio”, inspirado na psiquiatra espanhola Mara Paradeda, que se afasta da polarização extrema entre a negação cética e a banalização diagnóstica.
Primeiro, é fundamental reconhecer que o TDAH é uma condição neurobiológica real, com evidências sólidas em neuroimagem, genética e neuropsicologia. Ignorar este rigor científico seria irresponsável e invalidaria o sofrimento genuíno de muitos pacientes. A ciência nos mostra que a dificuldade de controle inibitório, por exemplo, não é uma questão de “má vontade”.
Segundo, este reconhecimento da base biológica serve para desconstruir o mito da culpa e instaurar o campo da responsabilidade adequada. Não se trata de culpar pais ou escolas pelo cérebro da criança, mas de ajudá-los a assumir a responsabilidade de criar ambientes de cuidado, suporte e acolhimento que possam mitigar os desafios impostos pela condição neurobiológica.
O equilíbrio proposto valoriza simultaneamente o rigor científico e a compaixão humana. Ele nos protege tanto do “ceticismo infundado” quanto dos “diagnósticos precipitados”. A psicanálise não precisa negar a biologia para afirmar a primazia da subjetividade. Pelo contrário, ela se interessa justamente em como uma vulnerabilidade biológica é singularmente vivida, interpretada e tecida na biografia única de cada sujeito.
A Ética da Incerteza: A Postura do Clínico
A avaliação psicanalítica exige uma postura ética particular por parte do clínico. A verdade do sujeito, como nos lembra o curso, não advém da aplicação de teorias pré-concebidas, mas da “capacidade de se deixar afetar pelo enigma do outro”. Isso significa abandonar a posição de especialista que detém o saber e adotar uma postura de humildade e curiosidade radical.
O clínico deve estar disposto a não saber, a sustentar a angústia da incerteza e a se deixar guiar pela singularidade do caso. É neste encontro genuíno, nesta afetação mútua entre terapeuta e paciente, que uma verdade singular pode emergir. O objetivo da avaliação, portanto, transcende a mera regulação comportamental. Ele se constitui como uma busca mútua por um “reconhecimento subjetivo”, onde o sintoma, antes visto como um defeito, pode ser finalmente compreendido como um “grito por reconhecimento”.
Conclusão: Do Código à História, da Medida à Escuta
A avaliação psicanalítica do TDAH é, em sua essência, um ato de resistência. Resiste à pressa da nossa cultura, à fragmentação do cuidado, à comoditização do sofrimento. Ela opera uma subversão que nos move do código à história, da medida à escuta, do rótulo que fecha ao enigma que abre.
Ao transformar o ato de avaliar em uma investigação ativa e em um gesto de hospitalidade, a psicanálise não oferece respostas mais fáceis, mas certamente mais profundas e humanas. Ela nos convoca, como profissionais, a desenvolvermos uma arte – a arte de observar o invisível, de escutar o silêncio e de encontrar, por trás de cada sintoma ruidoso, a história singular que clama por ser ouvida. É um caminho mais longo e mais exigente, mas é o único que pode, de fato, honrar a promessa de não apenas tratar um transtorno, mas de verdadeiramente encontrar um sujeito.