A Biblioteca do Esgotamento: Uma Viagem Comentada pelos Teóricos que Iluminam o Burnout

Meus caríssimos cursistas,

Sejam bem-vindos a esta estação crucial de nossa viagem. Imagine nosso curso como um trem atravessando o vasto e complexo continente do sofrimento psíquico contemporâneo. Já partimos, com uma sensibilização inicial que nos convocou a pensar sobre nossa própria “casa de cacos”. Agora, antes de adentrarmos nos territórios dos capítulos, é fundamental que conheçamos os vagões que compõem nossa locomotiva: os quinze teóricos, nossos interlocutores, que selecionamos para nos guiar. Cada um deles é um vagão repleto de pedras preciosas, de insights e ferramentas que nos ajudarão a decifrar o enigma do burnout.

Como nos lembra a metáfora de Mia Couto, após muito tempo vivendo na casa física, nos damos conta de que a casa que verdadeiramente habitamos é o nosso corpo, com toda a sua rede de conexões afetivas, sociais e intelectuais. As paredes dessa casa-corpo “revestem a alma”. Os teóricos que visitaremos são como arquitetos e engenheiros da alma, que nos ajudarão a entender a estrutura, as rachaduras e as possibilidades de reconstrução dessa morada. Lembrem-se, nós somos seres colonizados; pessoas e ideias nos habitam. A tarefa é dialogar honestamente com esses novos “habitantes” teóricos, extraindo o melhor de cada um, para que eles não nos sufoquem, mas, ao contrário, alarguem nossa perspectiva de existência. Você nunca sairá como entrou.


## Vagão 1: A Gênese do Sofrimento – Onde a Injustiça se Banaliza

Christophe Dejours – A Banalização da Injustiça Social

Nossa viagem começa com o pai da psicodinâmica do trabalho. Dejours, psiquiatra e psicanalista francês, opera uma mudança de lente fundamental: a causa do sofrimento não reside primariamente em uma falha do indivíduo, mas na organização do trabalho. O burnout não é fraqueza, mas a consequência de como o trabalho é dividido, controlado e avaliado. Ele introduz dois conceitos cruciais:

  • O Sofrimento Ético: A dor lancinante de ser forçado a agir contra os próprios valores para sobreviver no emprego. Essa traição cotidiana, a necessidade de “vender a alma” para pagar os boletos, corrói a integridade psíquica silenciosamente.
  • A Banalização como Defesa Coletiva: Para não enlouquecer, os trabalhadores criam defesas coletivas que normalizam e racionalizam a injustiça. O paradoxo trágico é que, para manter a própria sanidade, o coletivo adoece, destruindo a solidariedade e perpetuando o sistema que o oprime.

## Vagão 2: A Clínica como Ato Político

Ana Magnólia Mendes & Carolina Moroni (Orgs.) – Clínicas do Trabalho

As pesquisadoras brasileiras nos trazem para a nossa realidade. A premissa é clara: a escuta do sofrimento individual é inseparável da análise crítica das dinâmicas de poder na organização.

  • A Clínica como Práxis Político-Clínica: A neutralidade é recusada. O consultório e o “chão de fábrica” não são mundos separados. A clínica se torna um ato engajado que conecta o sintoma psíquico (o burnout) à sua raiz social e organizacional, adaptando as teorias à especificidade do trabalho no Brasil.

## Vagão 3: A Psicanálise na Trincheira

Sonia Telles – O Psicanalista na Trincheira do Social

Sonia Telles nos convoca a uma bravura: a psicanálise deve sair de seu lugar protegido e atuar na “trincheira” — serviços públicos, ONGs, comunidades periféricas — onde o sofrimento é atravessado pela violência e pela precariedade.

  • Transferência Socialmente Marcada: Nesses contextos, a transferência não reedita apenas figuras parentais, mas o próprio sistema: o Estado ausente, a classe social, a raça. O analista precisa estar ciente de seu próprio lugar social para manejar essa dinâmica.
  • Adaptação Radical da Ética: A ética da neutralidade precisa ser repensada em favor de uma ética da responsabilidade, que por vezes exige atos concretos no real para preservar a vida do paciente.

## Vagão 4: O Lado Obscuro das Organizações

Leonardo Schlemenson – O Lado Obscuro da Organização

O psicanalista argentino nos revela que toda organização possui uma dimensão inconsciente, irracional e não dita que, de fato, governa seu funcionamento e é a principal fonte de adoecimento.

  • Liderança Narcísica e Pactos Denegatórios: Ambientes tóxicos são frequentemente criados por um líder narcisista que usa a empresa como espelho de sua grandiosidade. Isso é sustentado por pactos de silêncio coletivos, onde todos negam uma realidade abusiva para sobreviver.
  • Perversão Organizacional: Schlemenson introduz o conceito arrepiante de uma lógica onde o sofrimento do outro não é um acidente, mas um ingrediente necessário para o gozo perverso da estrutura de poder, como no assédio moral. O burnout, nesse caso, é um resultado esperado pelo sistema.

## Vagão 5: O Colapso da Função Simbólica

Carlos Dante Garcia – Clínica Psicanalítica com Problemáticas Atuais

O lacaniano argentino posiciona o burnout não como uma neurose clássica, mas como um colapso da função simbólica. O sujeito, incapaz de elaborar a angústia em palavras, é empurrado para o ato (a ruptura) ou para um esvaziamento total de sentido.

  • A Causa: O Ideal de Performance Impossível: O colapso é a consequência do encontro do sujeito com o imperativo do discurso capitalista, que exige uma performance ilimitada e perfeita, rejeitando a falta e o limite que são constitutivos do humano.
  • O Rigor do Diagnóstico Diferencial: É crucial ir além do rótulo “burnout” para identificar a estrutura clínica subjacente (neurose, psicose, perversão), pois a direção do tratamento dependerá fundamentalmente de “quem é o sujeito que sofre”.

## Vagão 6: A Captura do Desejo

Florencia S. Tuchin – El trabajo en la encrucijada

A psicanalista argentina faz uma análise afiada das novas formas de sofrimento na era digital e da precarização.

  • Captura do Desejo pelo Discurso Capitalista: O capitalismo contemporâneo não explora apenas a força de trabalho, mas captura e torna refém o próprio desejo. O mantra “trabalhe com o que você ama” mascara a autoexploração.
  • O Superego que Comanda o Gozo: A consequência é um Superego feroz que não proíbe, mas comanda: “Seja feliz! Seja apaixonado! Inove!”. Essa ordem impossível lança o sujeito em um ciclo de exaustão e culpa.
  • A Gestão por Felicidade como Ideologia: Os programas de bem-estar corporativo são criticados como um engodo que oculta as causas estruturais do sofrimento e culpa o indivíduo por sua própria infelicidade.

## Vagão 7: As Ansiedades Primitivas

Susan Long – Socioanalytic Methods

Vinda da tradição do Instituto Tavistock, Long sistematiza métodos para intervir nas dinâmicas inconscientes de grupos.

  • Ansiedades Primitivas na Organização: Sob estresse, as organizações regridem a estados mentais arcaicos, dominados por ansiedades de aniquilação (paranoides e esquizoides), gerando uma cultura de “nós contra eles”.
  • O Bode Expiatório como Defesa Grupal: Para lidar com essas ansiedades, o grupo elege um indivíduo ou departamento para carregar as falhas do sistema. O burnout é, frequentemente, o destino desse bode expiatório.

## Vagão 8: A Internalização das Normas

Lynne Layton – Rumo a uma Psicanálise Social

Layton nos ajuda a pensar a ponte entre a clínica e a crítica sociocultural, com foco nos efeitos do neoliberalismo.

  • O Inconsciente Normativo: As normas sociais de gênero, classe e raça são internalizadas e passam a operar de forma inconsciente, parecendo ser parte da “natureza” do sujeito.
  • Mandatos Superegóicos Neoliberais: As pressões por produtividade, autossuficiência e resiliência são internalizadas como comandos de um Superego cruel que gera culpa e vergonha.
  • A Resiliência como Ideologia Perversa: Layton faz uma crítica contundente à resiliência como uma ideologia que transfere a responsabilidade por condições de trabalho tóxicas do sistema para o indivíduo, comandando-o a se adaptar ao inaceitável.

## Vagão 9: A Humanização do Terapeuta

Judy Leopold Kantrowitz (Org.) – Crendos Psicanalíticos

Esta coletânea corajosa humaniza a figura do analista, apresentando sua vulnerabilidade não como uma falha, mas como uma condição humana essencial e uma ferramenta para a conexão.

  • A Contratransferência como Risco e Ferramenta: Aprofunda a visão da resposta emocional do analista como fonte de informação, mas também como um grande risco para o burnout do próprio clínico se não for elaborada em supervisão e análise.
  • A Resiliência Psicanalítica: Propõe uma resiliência que não é sobre ser inquebrável, mas sobre ser capaz de processar o sofrimento (seu e do outro) e transformá-lo em conhecimento.

## Vagão 10: O Trabalho que Adoece

Riccardo G. T. A. T. I. – Il lavoro che ammala

O psicanalista italiano cria um guia prático e profundo para o diagnóstico e a intervenção.

  • O Diagnóstico Diferencial Preciso: Insiste na necessidade de diferenciar clinicamente o estresse (sobrecarga), o burnout (colapso dos ideais) e o mobbing (assédio moral), pois são fenômenos com lógicas psíquicas e tratamentos distintos.
  • A Anamnese Psicanalítica do Trabalho: Sua contribuição metodológica singular é a proposição de um roteiro de entrevista que torna a história laboral do paciente um elemento central da análise.

## Vagões 11 a 15: Crises Simbólicas, Novos Paradigmas e a Tirania do Tempo

Nossa viagem continua com paradas em outros pensadores essenciais:

  • Sergio Benvenuto (A Psicanálise e seu Duplo): Analisa o sofrimento no trabalho como uma consequência do declínio da função paterna (a Lei simbólica), que deixa um vácuo preenchido por um Superego feroz que comanda o gozo sacrificial.
  • Mauro Magatti (Cambio de Paradigma): Vê o burnout como um sintoma da crise do modelo neoliberal e propõe a superação através da revalorização do sentido do trabalho, da comunidade e do ser sobre o ter.
  • Christophe Dejours (de novo, em A Escolha): Reforça que o sofrimento no trabalho não é uma fatalidade, mas resultado de escolhas organizacionais que podem e devem ser contestadas através da criação de espaços de fala e deliberação coletiva.
  • Nicole Aubert (O Culto da Urgência): Critica a velocidade como uma ideologia que destrói a capacidade de pensar e elaborar. A tirania do tempo real elimina o tempo de latência necessário para o processamento psíquico, levando diretamente ao esgotamento.
  • Jean Furtos (O Sofrimento Psíquico e o Sofrimento Social): Referência na clínica em contextos de vulnerabilidade, afirma que para populações precarizadas, o sofrimento psíquico e o social são inseparáveis. O burnout dos excluídos nasce não da perda de um ideal de carreira, mas da luta incessante pela sobrevivência.

Conclusão: Montando Nossa Própria Casa de Cacos

Que maravilha! Cada teórico, cada obra, um mundo a ser descoberto. Esta constelação de pensadores nos oferece os “cacos” — fragmentos de teoria, conceitos, críticas — para que possamos, como Gabriel Joaquim dos Santos, construir nossa própria compreensão do burnout. Deixe-se provocar por essas teses. A jornada de 28 capítulos que temos pela frente será a nossa oficina de arquitetura. Nela, aprenderemos a identificar os materiais, a entender as estruturas e, quem sabe, a transformar os cacos de nosso sofrimento e do sofrimento de nossos pacientes em algo novo, com sentido e, por que não, belo. Bem-vindos ao nosso curso. A aventura está apenas começando.

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