A Bússola Quebrada: Um Diagnóstico Psicanalítico da Melancolia e do Apelo na Era da Perplexidade

Introdução: Navegando em um Nada Infinito

“Para onde vamos? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Ainda existe um em cima e um embaixo? Não vagamos por meio de um nada infinito?” Essas perguntas, lançadas por Friedrich Nietzsche há mais de um século, deixaram de ser filosofia para se tornar a descrição íntima de nossa experiência cotidiana. Sentimos essa queda livre ao navegar pela cacofonia das notícias, pela crise de nossas pseudo-democracias, pela incerteza do futuro. A bússola de nossa alma parece ter quebrado.

Este artigo é uma jornada ao coração desta desorientação. Mergulharemos em duas manifestações clínicas centrais do nosso tempo, que são, na verdade, duas faces da mesma moeda. Na Parte I, exploraremos a melancolia perplexa, diagnosticando, com Christopher Bollas, uma forma de depressão que nasce não de uma perda pessoal, mas do colapso das narrativas coletivas que davam sentido ao mundo. Na Parte II, voltaremos nosso olhar para o sintoma infantil, compreendendo-o, com Nicos Sideris, não como uma falha da criança, mas como um apelo desesperado que denuncia a crise e o desamparo no mundo dos adultos. Esta é uma investigação sobre o sofrimento que brota do vazio e sobre a responsabilidade de escutá-lo, uma tentativa de encontrar, no epicentro da perplexidade, as sementes para a criação de um novo sentido.

Parte I: A Melancolia Perplexa – O Luto pela Perda do Sentido (Capítulo 15)

A tese central que nos guia é a de que a forma predominante de depressão em nossa época mudou de qualidade. Ela não se liga primariamente a uma perda pessoal e nomeável, mas a um colapso mais vasto e difuso: o dos referenciais simbólicos e das narrativas culturais compartilhadas.

  1. O Diagnóstico: Um Mundo Sem Estrelas (Nietzsche e Bollas): A “morte de Deus” nietzschiana é a metáfora filosófica para o que o psicanalista Christopher Bollas diagnostica clinicamente como o colapso dos “idiomas comuns”. As grandes ideologias, as religiões, as tradições – o céu de nossas crenças coletivas que antes nos guiavam como constelações – se apagaram. Fomos deixados a sós, debaixo da vastidão de uma noite escura, com a tarefa impossível e exaustiva de ter que inventar, a cada manhã, as razões para nos levantarmos da cama. A depressão de hoje tem essa nova qualidade de perplexidade. É a angústia de termos perdido não apenas alguém ou algo, mas o próprio mapa do mundo.
  2. O Afeto: Um Luto Sem Nome: O resultado é uma forma de melancolia particularmente dolorosa, pois é um luto sem nome. Como podemos enlutar a perda do próprio sentido? Esse sofrimento se manifesta como um vazio profundo, uma apatia que não é preguiça, mas a paralisia de uma alma para quem nada mais parece importar fundamentalmente. É a dor de viver em um mundo que, embora cheio de coisas e estímulos, parece oco. Os exemplos contemporâneos são eloquentes:
    • O fenômeno da ecoansiedade ou “luto climático”, especialmente entre os jovens, é uma forma de melancolia pela perda da narrativa de um futuro seguro e de um progresso contínuo.
    • A apatia e o desengajamento político de uma parcela da juventude, desiludida com as narrativas ideológicas tradicionais, reflete um vazio de projetos coletivos, resultando em desorientação e cinismo.

Em ambos os casos, o sofrimento não vem de um evento biográfico, mas da implosão de um horizonte de sentido compartilhado.

  1. A Proposta Psicanalítica: Habitar a Perplexidade: A jornada de leitura e aprendizagem que a psicanálise nos oferece não promete novas certezas para repovoar o céu com novas estrelas. A proposta é algo mais corajoso: um convite para habitar a perplexidade. Trata-se de entender a anatomia do nosso vazio, não para preenchê-lo apressadamente com novas ilusões ou soluções de mercado, mas para, a partir do reconhecimento dessa perda fundamental, iniciar a tarefa mais humana que existe: a de criar, em nosso pequeno universo pessoal e em nossos laços mais próximos, um novo e singular sentido para a existência.

Parte II: O Sintoma Infantil – O Apelo dos Pais em Crise (Capítulo 16)

Se a melancolia perplexa descreve o estado de desamparo do mundo adulto, o sintoma infantil é, muitas vezes, seu porta-voz mais sensível e trágico. A clínica contemporânea nos confronta com uma epidemia de diagnósticos na infância, e a psicanálise nos convida a uma inversão radical do olhar sobre este fenômeno.

  1. A Crítica à Medicalização da Infância: Estamos testemunhando uma crescente medicalização da infância e uma proliferação de diagnósticos como o TDAH. A criança que não se adapta, que é agitada, que não performa como o esperado, é rapidamente rotulada e, muitas vezes, medicada. Este movimento reflete uma cultura que patologiza a infância, tratando o desvio e o sofrimento como uma falha cerebral, um defeito individual a ser corrigido quimicamente. A pressão por performance, que adoece os adultos, agora se volta para as crianças, criando “mini-executivos” com agendas lotadas, gerando sintomas de ansiedade e recusa escolar.
  2. A Ressignificação do Sintoma como Apelo (Nicos Sideris): A intervenção contundente do psicanalista Nicos Sideris nos convida a ver o problema da criança como um sintoma que revela a verdade do desamparo dos próprios pais. O sintoma infantil não é um defeito da criança, mas um apelo, uma mensagem cifrada que denuncia uma crise no mundo dos adultos. Em uma era de perplexidade, onde os pais se sentem inseguros e sem referências para exercer sua função, a criança, com sua permeabilidade psíquica, absorve essa angústia não dita e a expressa através de seu comportamento. A agitação do filho com TDAH pode ser um espelho da ansiedade de uma mãe sobrecarregada; a dificuldade de aprendizagem pode ser a manifestação do sentimento de fracasso de um pai.
  3. O Deslocamento do Foco Clínico: A consequência clínica dessa compreensão é um deslocamento radical do foco. O verdadeiro paciente não é (apenas) a criança. A intervenção deve se dirigir primariamente aos pais e ao contexto. O objetivo não é “consertar” a criança, mas ajudar os pais a reconhecerem e elaborarem seu próprio desamparo, para que possam, então, recuperar sua capacidade de exercer a função parental de continência e de transmissão de sentido. A crescente tendência em países europeus de desprescrever psicofármacos para crianças, priorizando intervenções familiares e escolares, é um reconhecimento dessa verdade clínica: o sintoma da criança é um mensageiro da crise no mundo adulto, e é a esse mundo que a responsabilidade deve ser devolvida.

Conclusão: A Interdependência do Sofrimento

Ao justapor a melancolia perplexa do adulto com o sintoma-apelo da criança, emerge uma verdade profunda sobre a interdependência do sofrimento. A desorientação e o vazio de sentido que afligem a cultura (Parte I) criam as condições de desamparo e crise para os pais, que, por sua vez, são “denunciados” pelo sofrimento de seus filhos (Parte II). A criança, em sua vulnerabilidade, torna-se o sismógrafo mais sensível dos abalos sísmicos que atravessam nossa civilização.

A psicanálise, portanto, nos oferece uma clínica que é, em sua essência, relacional e contextual. Ela nos ensina a ler os sintomas não como falhas isoladas, mas como nós em uma vasta e complexa rede de significados e afetos. Aprender a escutar o luto sem nome do adulto e o apelo cifrado da criança é a mesma tarefa: a de recusar a simplificação, de acolher a complexidade e de insistir que, por trás de cada sofrimento, por mais perplexo ou ruidoso que seja, existe uma história e uma verdade esperando para serem escutadas. E é nessa escuta que reside a possibilidade de, juntos, começarmos a tecer um novo horizonte de sentido.

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