Vivemos um paradoxo central na contemporaneidade: uma sociedade que opera em um regime de hiperatividade, aceleração e estimulação incessante, mas que, ao mesmo tempo, exige de seus membros, especialmente das crianças, uma capacidade sobre-humana de calma, foco e produtividade. Nesse cenário de contradições, o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) emerge não apenas como um diagnóstico cada vez mais prevalente, mas como um sintoma da própria cultura. Como aponta o professor Jombarrus em sua introdução, a criança com TDAH funciona como um “canário na mina de carvão”, um sinalizador sensível das fraturas e do mal-estar do nosso tempo.
Enquanto a abordagem biomédica tradicional, pautada em manuais diagnósticos como o DSM, oferece uma compreensão valiosa sobre as bases neurobiológicas do transtorno, ela corre o risco de reduzir o indivíduo a um conjunto de déficits a serem medicados e comportamentos a serem corrigidos. A proposta de um mergulho psicanalítico no universo do TDAH, como a que se delineia no curso, convida a uma mudança radical de perspectiva: do sintoma ao sujeito. Trata-se de uma convocação para uma “escuta profunda na era da velocidade”, um esforço para decodificar o que a agitação, a desatenção e a impulsividade estão tentando comunicar. Afinal, como sugere a poderosa metáfora, “a hiperatividade é uma caligrafia da alma, que por não ter voz aprende a escrever com o corpo”.
Este artigo busca aprofundar essa visão, explorando as bases de uma leitura psicanalítica do TDAH, suas implicações clínicas e seu diálogo necessário com a educação, a família e a sociedade em geral.
Do Transtorno ao Sujeito: A Mudança do Olhar Psicanalítico
A psicanálise não nega as possíveis predisposições biológicas ou os fatores genéticos associados ao TDAH. No entanto, ela se recusa a parar nesse ponto. Onde a medicina vê um déficit neuroquímico, a psicanálise pergunta: “O que este corpo agitado está dizendo?”. Onde se aponta uma falha na função executiva, ela questiona: “Qual é a função deste sintoma na economia psíquica deste sujeito?”.
Essa mudança de foco é fundamental. O sintoma, na perspectiva psicanalítica, não é um mero erro ou disfunção a ser eliminado. Ele é uma formação de compromisso, uma solução, ainda que precária e geradora de sofrimento, que o sujeito encontrou para lidar com conflitos, angústias e desejos inconscientes. A hiperatividade, por exemplo, pode ser entendida como uma descarga motora maciça de uma tensão psíquica que não encontra vias de simbolização e elaboração pela palavra. A criança não consegue “dizer” sua angústia, então ela a “atua” com o corpo todo. É uma tentativa desesperada de se fazer notar, de se livrar de um excesso que a inunda, ou mesmo de se defender de pensamentos e sentimentos intoleráveis.
Da mesma forma, a desatenção pode ser mais do que uma simples incapacidade de focar. Pode ser uma defesa. A atenção exige um investimento de desejo, uma escolha sobre o que será privilegiado em detrimento de todo o resto. A criança que não consegue se fixar em um objeto pode estar, na verdade, fugindo de um ponto de angústia, ou pode estar refletindo uma dificuldade em constituir um desejo que a ancore. Sua mente vagueia como uma forma de proteção, um modo de não se confrontar com um vazio ou com uma realidade interna dolorosa.
A missão do profissional orientado pela psicanálise, portanto, não é a de silenciar o sintoma, mas a de lhe dar voz. É um trabalho de tradução. O analista, o terapeuta, o educador sensível, se oferece como aquele que pode ajudar a criança a transformar a “caligrafia do corpo” em palavras, a dar sentido à sua agitação, a nomear suas angústias.
O Palco Familiar e Social: O Sintoma em Contexto
A psicanálise compreende que o sujeito se constitui na relação com o Outro. Uma criança não se desenvolve no vácuo; ela é tecida pelos desejos, expectativas, angústias e pela história de seus pais e de sua cultura. Portanto, é impossível compreender o TDAH de uma criança sem olhar para o sistema no qual ela está inserida.
Muitas vezes, a agitação da criança é um espelho da agitação familiar. Ela pode estar encenando uma ansiedade não dita dos pais, ou respondendo a uma demanda implícita de performance e sucesso que a sobrecarrega. Em uma família onde não há espaço para a lentidão, para o erro, para o não-saber, a hiperatividade pode ser a única forma de a criança expressar seu protesto e seu sofrimento.
Além disso, a função paterna, conceito psicanalítico que não se refere necessariamente à figura do pai, mas à função de interdição, de estabelecimento de limites e de inscrição da lei simbólica, é crucial. Essa função organiza o mundo psíquico da criança, oferecendo-lhe contornos e ajudando-a a regular seus impulsos. Falhas nessa inscrição podem se manifestar como uma dificuldade em adiar a gratificação, em lidar com a frustração e em organizar o pensamento e a ação – características centrais do TDAH.
A análise se estende à sociedade, como já mencionado. As pressões tecnológicas, com seus estímulos rápidos e fragmentados, a cultura do imediatismo e o modelo educacional que muitas vezes privilegia a conformidade em detrimento da criatividade, criam um ambiente paradoxal. Exige-se da criança uma capacidade de foco prolongado em tarefas que, muitas vezes, são desprovidas de sentido para ela, enquanto, do lado de fora da sala de aula, ela é bombardeada por uma infinidade de estímulos que a convidam à dispersão. A criança, nesse contexto, pode estar simplesmente “refletindo as contradições do mundo adulto ao seu redor”. A tarefa, como propõe o curso, é desenvolver a sensibilidade para distinguir entre uma patologia real e uma resposta a um ambiente “patogênico”.
Uma Abordagem Multidisciplinar e Humanizada
A riqueza da proposta delineada no vídeo de apresentação está em sua amplitude, reconhecendo que o TDAH impacta e é impactado por todas as esferas da vida. A escuta psicanalítica não é uma ferramenta exclusiva de psicólogos e psicanalistas, mas uma postura que pode enriquecer a prática de diversos profissionais.
- Para Pais e Educadores: Significa aprender a olhar para além do mau comportamento. Em vez de perguntar “Como eu faço essa criança parar?”, a pergunta se torna “O que essa criança está tentando me dizer com esse comportamento?”. Implica em criar estratégias pedagógicas que valorizem a criatividade e a energia, canalizando a hiperatividade de forma produtiva, como sugere o trabalho com educadores físicos, e promovendo ambientes de inclusão real.
- Para Profissionais de RH e Líderes: Representa o desafio de criar culturas organizacionais que não apenas tolerem, mas valorizem a neurodiversidade. Profissionais com TDAH frequentemente exibem características como pensamento “fora da caixa”, alta criatividade, capacidade de multitarefa em ambientes dinâmicos e uma energia contagiante. Compreender suas necessidades de adaptação (por exemplo, ambientes de trabalho menos distrativos, instruções claras e por escrito) é o primeiro passo para aproveitar seus talentos únicos, transformando um suposto “déficit” em um diferencial competitivo.
- Para Advogados e Assistentes Sociais: A perspectiva psicanalítica oferece uma profundidade crucial para entender as dinâmicas familiares, as disputas de guarda e os desafios educacionais. Permite a construção de argumentos e planos de intervenção que consideram o sofrimento psíquico subjacente, defendendo os direitos do sujeito de forma mais qualificada e humana, indo além do laudo.
- Para Profissionais de Tecnologia e Artistas: O convite é para criar e desenvolver ferramentas e metodologias que dialoguem com diferentes padrões de atenção. Designers podem projetar interfaces mais intuitivas e menos sobrecarregadas, enquanto artistas e arte-terapeutas podem utilizar a linguagem da arte como um poderoso canal para a expressão e elaboração de conflitos que não encontram palavras, potencializando a criatividade frequentemente associada ao TDAH.
A Prática Clínica: O Resgate da Lentidão
O tratamento psicanalítico com uma criança diagnosticada com TDAH se afasta de protocolos rígidos. O setting terapêutico, com o uso de brinquedos, desenhos, argila e histórias (a ludoterapia), torna-se um laboratório seguro onde a criança pode “escrever” sua história com o corpo e com os objetos. O analista não dirige a brincadeira, mas a escuta, pontua, interpreta e ajuda a construir um sentido para aquele aparente caos.
É um processo que, em si mesmo, se opõe à lógica da pressa. Como o vídeo enfatiza, o curso “defende a importância da lentidão no processo terapêutico-educativo”. É preciso tempo para que a confiança se estabeleça, para que os conflitos inconscientes possam emergir de forma segura e para que a criança possa, gradualmente, substituir a atuação motora pela elaboração simbólica.
Isso não significa uma oposição dogmática à medicação. Em muitos casos, o tratamento medicamentoso pode ser um aliado importante, ajudando a diminuir a angústia e a desorganização a um nível que torne a criança acessível ao trabalho psicoterapêutico. A diferença crucial de perspectiva é que a medicação é vista como um meio, e não como o fim do tratamento. Ela pode ajudar a “baixar o volume” do sintoma para que a escuta de sua mensagem se torne possível.
Conclusão: Tornando-se Tradutores do Mistério Infantil
O TDAH, quando visto através das lentes da psicanálise, deixa de ser apenas uma lista de critérios diagnósticos para se tornar um enigma fascinante sobre o ser criança em um mundo que, muitas vezes, “esquece como abrigar a infância”. A proposta de um curso com essa profundidade é um chamado à responsabilidade ética de todos que lidam com crianças e adultos neurodivergentes.
Trata-se de um convite para desenvolver uma prática mais humana e eficaz, que não se contenta com respostas automáticas, mas que se atreve a questionar: Qual a função dessa dança incessante? A quem se dirige essa mensagem corporal aparentemente desorganizada, mas profundamente significativa?
Ao nos propormos a ser “tradutores dessa linguagem particular”, como finaliza o professor, oferecemos à criança e à sua família o bem mais precioso: um olhar que enxerga para além dos sintomas, que reconhece o sujeito em seu sofrimento e em sua potência. É um esforço para resgatar a escuta profunda em uma era de ruído, para devolver a voz a uma alma que aprendeu a escrever com o corpo. É, em última instância, uma aposta na singularidade de cada ser humano e na capacidade transformadora da palavra e do afeto. Uma jornada contagiante e essencial para os nossos tempos.