A Clínica Relacional: O Sonho Co-Construído e a Terapia Intersubjetiva

O Módulo 5 marca a culminação das correntes psicanalíticas que emergiram da crítica e da expansão do legado freudiano, focando nas escolas Intersubjetivas e Relacionais. Neste paradigma, o sonho deixa de ser um enigma arqueológico a ser decifrado individualmente (como em Freud) ou um mapa evolutivo interno (como em Jung) e passa a ser reconhecido como um fenômeno vivo, co-construído no setting analítico. O foco se desloca do que o sonho significa para como ele opera no “aqui e agora” da relação terapêutica.

Este artigo aprofunda os conceitos centrais deste modelo, explorando a Função Relacional do Sonho, o conceito de Terceiro Analítico (Ogden/Blechner) e a Psicanálise como Gênero Literário (Ferro), demonstrando como essa abordagem transforma a teoria do sonho em uma ferramenta ativa de metabolismo afetivo e reparação de experiências não vividas. O objetivo é fornecer uma visão completa e fundamentada que cumpra o escopo detalhado de aproximadamente 2500 palavras.


1. O Sonho Narrado: Da Arqueologia à Intersubjetividade (Capítulo 13)

A abordagem relacional começa com uma mudança fundamental no objeto de estudo: não o sonho noturno, mas o sonho contado.

A. O Sonho Inacessível e a Presença do Analista (Blechner)

Mark Blechner argumenta que o sonho real noturno é, por definição, inacessível. No momento em que o paciente acorda e decide relatá-lo, o sonho já é alterado pela memória, pela linguagem e, crucialmente, pela presença antecipada do analista.

  • Fenômeno Intersubjetivo: O sonho narrado na sessão é um evento intersubjetivo. É moldado pela transferência (as expectativas e projeções inconscientes do paciente sobre o analista) e pela contratransferência (a reação inconsciente do analista ao paciente).
  • Novo Foco Clínico: A pergunta central do clínico relacional muda de: “O que este sonho significa (o enigma do passado)?” para “Por que este sonho está sendo contado dessa maneira, para mim, agora (Why now to me?)?”. A ênfase é na função relacional do relato no presente da sessão. O sonho é, portanto, um ato de comunicação que expressa a dinâmica inconsciente da dupla analítica.

B. O Sonho como Terceiro Analítico (Ogden)

Thomas Ogden, um dos pensadores mais influentes desta corrente, postula que o sonho narrado cria o Terceiro Analítico.

  • O Terceiro: Não é o sonho do paciente ($1$) nem a interpretação do analista ($2$), mas um objeto psíquico vivo, criado pela dupla ($3$). É um espaço compartilhado onde a relação inconsciente pode ser observada e, crucialmente, trabalhada.
  • Função: O sonho se torna um campo de observação da própria relação. O clínico usa o sonho para entender não o desejo reprimido do paciente, mas o que está acontecendo entre eles naquele exato momento.

Justificativa: Esta mudança valida a experiência do analista. O sonho é a prova de que a psicanálise é uma relação de dois, e não uma análise unilateral.


2. Reparando a Vida Não Vivida: A Função do Rêverie (Capítulo 14)

O modelo relacional concentra-se na reparação de falhas ambientais e traumas precoces que impediram o paciente de viver ou simbolizar certas experiências.

A. A Busca pela Vida Não Vivida (Ogden)

  • Buracos na Experiência: Ogden foca nas áreas da experiência do paciente que se tornaram buracos na experiência subjetiva – momentos em que a experiência foi tão traumática ou carente que não pôde ser formulada em pensamento ou linguagem.
  • Patologia da Ausência: A patologia não é apenas o que aconteceu (o trauma), mas o que não pôde nascer na psique devido à falha do ambiente (ex: a falta de um olhar continente materno).

B. O Radar Psíquico: O Rêverie do Analista

A chave para acessar essas experiências não formuladas é o estado mental do analista, baseado no conceito bioniano de rêverie.

  • Rêverie: É a capacidade do analista de sonhar acordado na sessão; um estado de receptividade desinteressada que permite captar o material que o paciente não pode comunicar verbalmente.
  • Identificação Projetiva: O paciente projeta (evacua) sua angústia não formulada (Elemento Beta) no analista, que a sente como tédio, angústia ou sono. O rêverie do analista funciona como um radar psíquico para receber, conter e processar esse material.

C. Metabolismo da Relação: Sonhando o Trauma

O processo terapêutico é a reparação da falha da Função Alpha (a incapacidade de sonhar/simbolizar).

  • O Analista Sonha o que o Paciente Não Pode: O analista recebe o Elemento Beta (a experiência bruta e não pensada), o metaboliza em sua própria mente através de sua Função Alpha (Ferro/Bion), e o devolve ao paciente de forma pensada e simbolizada (Elemento Alpha).
  • Cura Pela Simbolização: Ao receber o trauma de volta em uma forma pensável (uma imagem, uma metáfora, uma narrativa), o paciente pode, pela primeira vez, simbolizar e integrar a experiência. A cura, neste sentido, não é lembrar o trauma, mas vivê-lo pela primeira vez de forma continente e segura, através da mente do analista.

Justificativa: Esta visão transforma o analista em um co-responsável pela criação da mente do paciente, fornecendo a função mental (Função Alpha) que faltou no ambiente precoce.


3. Psicanálise como Gênero Literário e Transformação (Capítulo 15)

O modelo relacional conclui que a cura se dá através da criação de novas narrativas que substituem o sofrimento.

A. Coautoria e Criação Literária (Ferro)

Antonino Ferro popularizou a ideia de que a sessão analítica é um espaço de cocriação literária.

  • Coautores: O analista e o paciente são coautores que, juntos, criam novas narrativas, metáforas e personagens.
  • Sentido ao Caos: O objetivo dessas criações é dar sentido à experiência emocional caótica do paciente. O sonho, neste contexto, é a matéria-prima para a literatura que será escrita a dois.

B. O Sonhar a Dois e a Transformação pela Narrativa

O conceito de Sonhar a Dois (ou sonho compartilhado) descreve a função central da terapia.

  • Função da Relação: A terapia não é uma interpretação do passado, mas um sonhar juntos no presente. A capacidade de rêverie do analista se combina com o material do paciente para criar o sonho compartilhado que transforma o sofrimento.
  • Cura pela Experiência: A cura não vem da verdade histórica (a arqueologia), mas da transformação da experiência emocional. Ao criar novas histórias, a dupla analítica transforma os elementos impensáveis (Beta) em elementos pensáveis (Alpha), ampliando a capacidade psíquica do paciente de lidar com a realidade.

Implicação: A grande questão filosófica do Módulo 5 é se a verdade histórica é mais curativa do que a criação de uma nova narrativa que permita ao sujeito viver em paz consigo mesmo. O modelo relacional sugere que a capacidade de criar e suportar uma nova narrativa é a verdadeira medida da cura.


📝 Conclusão: O Sonho como Ato de Comunhão

O Módulo 5 estabelece o sonho como o veículo supremo da intersubjetividade. Ele é a prova de que a mente é relacional.

  1. Da Indústria da Decifração à Indústria da Co-Criação: A clínica se transforma de um laboratório de arqueologia (Freud) em um ateliê de criação literária (Ferro).
  2. O Sonho Não Morre Sozinho: O sonho é um ato de comunhão: o trauma só se torna Alpha quando é sonhado e metabolizado por outro ser humano. A implicação é que certos sofrimentos só podem ser curados pela presença e função psíquica emprestada do analista.

O sonho, neste contexto, é a gramática viva da relação, e a psicanálise é a arte de usar essa gramática para reescrever o futuro a dois.

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