A Coragem de Escutar: A Revolução Psicanalítica Diante da Medicalização do TDAH

Chegamos ao limiar de uma jornada. Após circuncrever o território, apresentar os interlocutores e lançar as provocações iniciais, emerge com clareza a visão geral do curso “Psicanálise e TDAH”: trata-se de uma proposta de revolução. Não uma revolução de armas, mas uma revolução epistemológica, um deslocamento radical do olhar. A tese central, nosso leitmotiv, afirma que a crescente epidemia de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade é menos uma falha neurobiológica inerente às nossas crianças e mais um sintoma febril de uma sociedade ela mesma adoecida, patologizada em sua velocidade frenética e em sua incapacidade de acolher a singularidade.

A psicanálise, neste cenário, não se oferece como mais uma técnica no arsenal terapêutico, mas como uma abordagem que ousa inverter a ordem da compreensão. Ela desafia a resposta hegemônica da medicina contemporânea — a da solução química rápida, simbolizada pela Ritalina — não por um apelo anticientífico, mas por uma exigência de uma ciência mais humana. O convite é para uma práxis, uma relação dialética entre teoria e prática, que nos obriga a questionar: estamos a tratar sintomas ou a silenciar subjetividades? Este artigo se propõe a aprofundar essa visão geral, explorando o deslocamento do foco da neurobiologia para a dinâmica psíquica, detalhando as ferramentas da escuta singular e, finalmente, mergulhando no cerne do conflito ético que define o futuro da clínica: a escolha entre a prescrição que pacifica e a escuta que liberta.

O Deslocamento Revolucionário: Do Cérebro ao Sujeito

A abordagem psicanalítica é, em sua essência, revolucionária porque desloca o foco. Onde a neurobiologia busca identificar déficits e desequilíbrios químicos no cérebro, a psicanálise volta seu olhar para a complexa e turbulenta dinâmica do aparelho psíquico infantil. A pergunta fundamental muda de “Qual é o defeito neste cérebro?” para “O que esta alma está tentando expressar?”. A agitação, a impulsividade e a desatenção deixam de ser meros déficits a serem corrigidos para se tornarem expressões cifradas de conflitos inconscientes.

Esta não é uma negação do sofrimento real. A criança sofre, a família sofre. A diferença está na causalidade e, consequentemente, na abordagem. A psicanálise compreende que o sintoma é uma solução — ainda que precária e geradora de mais sofrimento — que o sujeito encontrou para lidar com uma angústia que não pôde ser nomeada, com uma história que não pôde ser simbolizada. Os “gritos silenciosos de angústia” que a criança hiperativa esconde são o material bruto do trabalho clínico. Sua agitação motora é uma narrativa que ainda não encontrou palavras. Sua desatenção é, talvez, uma defesa necessária contra um mundo percebido como intrusivo ou insuportável.

Compreender a dinâmica do aparelho psíquico infantil significa reconhecer que ele se constitui na relação com o Outro — com os pais, com a cultura, com a linguagem. Significa entender que a criança é atravessada por desejos, medos e fantasias que a precedem e a moldam. É neste terreno, e não apenas nas sinapses, que o drama do TDAH se desenrola. Ao fazer este deslocamento, a psicanálise transforma o TDAH de um “destino biológico” em um “acidente de percurso”, um nó na história do sujeito que é passível de elaboração e ressignificação.

As Ferramentas do Artesão: Desvelando a Narrativa Simbólica

Para navegar neste terreno complexo, a psicanálise utiliza ferramentas que se assemelham mais às de um artesão do que às de um técnico. Seu objetivo não é consertar uma peça defeituosa, mas compreender e trabalhar com a matéria-prima única de cada história.

  1. A Anamnese como Arqueologia da Alma: Na prática psicanalítica, a anamnese vai muito além de uma coleta de sintomas. É um trabalho arqueológico que busca desenterrar a história singular da criança, entendendo como o sintoma se entrelaçou em sua trama familiar, em suas vivências e em suas marcas subjetivas.
  2. A Ludoterapia como Via Régia: O brincar é a linguagem por excelência da criança. É no espaço lúdico, seguro e contido do consultório que a criança pode encenar seus conflitos, seus medos e seus desejos. O terapeuta, com sua escuta atenta, ajuda a transformar a “agitação motora em uma narrativa simbólica”. O carrinho que bate incessantemente, o boneco que não consegue ficar em pé, a torre que desmorona repetidamente — tudo isso é linguagem, um texto a ser decifrado que revela verdades sobre o mundo interno da criança.
  3. A Palavra e a Escuta como Agentes de Ressignificação: O processo terapêutico, em sua essência, é um trabalho de tradução e nomeação. Através da palavra do analista, que pontua, questiona e interpreta o brincar e a fala da criança, o sintoma começa a ser ressignificado. Aquilo que era um ato puro, uma descarga caótica, começa a se conectar com uma causa, com um afeto, com uma história. Essa elaboração simbólica é o que permite que o sujeito se aproprie de sua experiência e encontre saídas mais criativas e menos dolorosas para sua angústia.
  4. A Continência Emocional sobre o Controle Comportamental: A psicanálise prioriza a continência sobre o controle. Em vez de focar em técnicas para suprimir o comportamento, o objetivo é oferecer um ambiente emocionalmente seguro onde a criança se sinta compreendida e acolhida em sua angústia. Essa continência, oferecida pelo terapeuta e ensinada aos pais e educadores, permite que a criança desenvolva, gradualmente, seus próprios recursos psíquicos para lidar com seus impulsos, em vez de depender de um controle externo.

O Dilema da Ritalina: Silenciar Subjetividades ou Cuidar do Sofrimento?

O curso posiciona o debate “psicanálise versus Ritalina” não como uma guerra, mas como o epicentro de um dilema ético fundamental. Reconhece-se que há “erros e acertos dos dois lados” e que a abordagem ideal é sempre “multimodal, multidisciplinar e interdisciplinar”. A crítica não é à farmacologia em si, mas à sua utilização como primeira, e muitas vezes única, resposta a um sofrimento complexo.

A sedução da solução química é imensa. Ela oferece rapidez, eficiência e alívio imediato para um sistema (familiar e escolar) que não tem tempo nem recursos para escutar. No entanto, a psicanálise nos obriga a perguntar: a que custo? Ao multiplicarmos receituários de metilfenidato, corremos o risco de criar “uma geração quimicamente pacificada, mas psiquicamente comprometida”. A medicalização precoce e indiscriminada pode interromper processos cruciais de elaboração simbólica. Ela pode “transformar conflitos estruturantes em patologias a serem suprimidas”. O conflito com a autoridade, a dificuldade em lidar com a frustração, a angústia diante das regras — todos esses são momentos essenciais para a constituição de um psiquismo saudável. Ao medicarmos a inquietação que esses conflitos geram, não estamos, talvez, impedindo o desenvolvimento de recursos psíquicos genuínos e duradouros?

A impressão, como o curso aponta, é que estamos em um momento histórico de “silenciamento de subjetividades”. A escolha entre escutar e medicar define não apenas o futuro de uma criança, mas o próprio futuro da clínica. Ela nos força a decidir se seremos profissionais que perpetuam protocolos reducionistas ou que abraçam a desafiadora complexidade da condição humana.

Conclusão: A Coragem de Devolver à Infância o seu Direito Fundamental

A visão geral do curso se cristaliza em um chamado à responsabilidade e à coragem. Aos profissionais da saúde mental, é exigido o poder de escolher. A coragem de “sustentar a angústia da escuta”, de resistir à sedução da solução imediata que o mercado e a cultura exigem. A coragem de ser o espaço onde os “gritos silenciosos” possam finalmente encontrar um eco, uma escuta, uma possibilidade de se transformarem em palavra.

Este não é um apelo contra a ciência, mas por uma “ciência mais humana”, que dialogue com a psicanálise sem preconceitos corporativistas. É um apelo por uma práxis que reconheça que o caminho mais rápido nem sempre é o melhor caminho, e que a verdadeira cura emerge da elaboração, não da supressão.

A reflexão final nos deixa com a questão primordial, a que reverbera para além dos muros do consultório e nos interpela a todos. A nossa sociedade frenética, agitada, veloz e produtivista, com sua incapacidade de tolerar o diferente, o lento, o não-produtivo — será que ela não está, ativamente, a provocar, a produzir e a alimentar os transtornos que depois se apressa em medicar?

A resposta a essa pergunta define nossa tarefa. E a conclusão do curso é clara: a missão mais urgente é “devolver à infância o seu direito fundamental da compreensão, antes da medicação”. É garantir que a história única de cada criança não se perca nos protocolos, mas encontre um lugar onde possa ser ouvida, respeitada e, finalmente, reescrita.

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