Introdução: Adentrando a Sala de Máquinas da Sabotagem
Se os módulos anteriores nos guiaram pelas paisagens da solidão contemporânea, da performance social e da quebra do reconhecimento, os capítulos sétimo e oitavo nos conduzem a um território mais profundo e perturbador: a sala de máquinas da psique. Aqui, a traição deixa de ser vista apenas como um sintoma de um mal-estar cultural ou de uma falha relacional, para ser compreendida como a manifestação de uma estrutura de personalidade patológica e da natureza intrinsecamente perigosa do próprio desejo.
Nesta etapa da jornada, deparamo-nos com duas lentes de aumento poderosas. No capítulo sétimo, “A Dinâmica da Sabotagem”, a teoria das relações de objeto de Otto Kernberg nos oferece um diagnóstico rigoroso da traição recorrente não como um erro, mas como a lógica inevitável de uma personalidade narcísica, regida pela cisão e pela inveja primitiva. A sabotagem emerge aqui como um destino compulsivo. Em seguida, no capítulo oitavo, “O Desejo que nos Queima”, a reflexão inspirada em autores como Spyros Tsirigotis e Stavros Ternopoulos nos confronta com a natureza ambivalente de Eros – uma força primal que tanto cria quanto aniquila. A traição é então analisada como a face destrutiva de uma potência que, para ser contida, exige um trabalho ético constante que chamamos de amor.
Este artigo irá aprofundar essas duas perspectivas, demonstrando como a incapacidade estrutural para o amor, descrita por Kernberg, e a força caótica do desejo, analisada por Ternopoulos, se entrelaçam para compor a mais trágica das cenas da traição: aquela que não é acidental, mas estrutural; não é uma busca por prazer, mas uma compulsão à destruição.
Parte I: A Dinâmica da Sabotagem – A Lógica Interna do Destruidor (A Tese de Otto Kernberg)
Kernberg desloca a análise da traição do campo dos “erros” ou “fraquezas” para o campo da estrutura. Para ele, quando a traição é um padrão recorrente, ela não é um deslize, mas a expressão coerente de uma organização de personalidade patológica, especificamente a narcísica.
1.1. O Mundo em Preto e Branco: A Cisão como Palco da Sabotagem
O mecanismo de defesa central que organiza essa personalidade é a cisão (splitting). Trata-se de uma incapacidade psíquica fundamental de integrar as qualidades boas e más, o amor e o ódio, em uma representação única e coesa do outro (e de si mesmo). A pessoa amada não pode ser vista como um ser humano complexo, com virtudes e defeitos. Em vez disso, ela é cindida em dois objetos distintos: um objeto totalmente bom (idealizado) e um objeto totalmente mau (desvalorizado).
Isso cria a “montanha-russa emocional” descrita na aula. A relação começa com uma fase de idealização intensa. O parceiro é perfeito, imaculado, a fonte de toda a bondade. No entanto, essa idealização é frágil, pois não se baseia na realidade, mas na necessidade do narcisista de se fundir com um objeto perfeito. Ao primeiro sinal de falha, de humanidade, de frustração, o mecanismo da cisão é ativado de forma violenta. O parceiro, antes visto como anjo, é subitamente percebido como um demônio. A mesma pessoa passa a ser o repositório de toda a maldade e frustração. É neste momento de desvalorização que o palco para a sabotagem está montado. A traição torna-se psicologicamente fácil, pois não se está traindo uma pessoa amada e complexa, mas sim punindo ou descartando um “objeto mau” que já foi internamente despojado de todo o seu valor. O ciclo se repetirá com o próximo parceiro, em uma compulsão à repetição trágica.
1.2. O Veneno da Inveja: O Desejo de Destruir o que é Bom
Kernberg introduz uma distinção crucial entre ciúme e inveja. O ciúme é um afeto triangular (“Eu tenho medo de perder você para um terceiro”). A inveja primitiva, por sua vez, é diádica e muito mais destrutiva. Ela se origina de um sentimento de vazio e inferioridade tão profundo que a bondade, a felicidade ou a virtude do outro não são admiradas, mas vividas como um “ataque insuportável ao self grandioso patológico”.
Na dinâmica da sabotagem, o traidor não é motivado pela busca de um parceiro “melhor”. Muitas vezes, o objeto da traição é indiferente. O verdadeiro alvo é o parceiro atual. O objetivo inconsciente é destruir a bondade do vínculo. A confiança, a felicidade, a estabilidade e o amor oferecidos pelo parceiro são o verdadeiro veneno. Para o narcisista, a bondade alheia ilumina dolorosamente o seu próprio vazio e maldade interna. A única forma de aliviar essa dor insuportável é “sujar”, “estragar”, “destruir” aquilo que é bom. A traição é o ato perfeito para isso: ela ataca a confiança, gera dor e arruína a felicidade. É um ato de triunfo invejoso, uma forma de dizer: “Sua felicidade e bondade não podem sobreviver ao meu poder de destruição”.
1.3. O Destino da Destruição: A Incapacidade Estrutural para o Amor Maduro
A consequência inevitável de uma psique regida pela cisão e pela inveja primitiva é uma incapacidade estrutural para o amor maduro. Como aponta a tese de Kernberg, o amor maduro não é a idealização, mas a capacidade de sustentar a ambivalência: amar uma pessoa real, reconhecendo e tolerando suas falhas ao lado de suas virtudes. Exige gratidão, a capacidade de receber a bondade do outro sem se sentir diminuído por ela. E requer empatia, a habilidade de se conectar com o estado emocional do outro.
O sujeito narcisista é incapaz de tudo isso. A cisão impede a ambivalência, a inveja impede a gratidão, e o foco em si mesmo impede a empatia. Para tal indivíduo, a intimidade genuína é a maior das ameaças. A vulnerabilidade que um laço verdadeiro exige é aterrorizante. Portanto, a traição deixa de ser um acidente e se torna o “destino compulsivo”. Destruir o laço é uma forma de se proteger da intimidade, de evitar o confronto com a própria fragmentação. É um ciclo de “construir e destruir” que garante que a verdadeira conexão, com sua assustadora demanda por mutualidade e reconhecimento da alteridade, nunca se consolide.
Parte II: O Desejo que nos Queima – A Lógica de Eros (A Tese de Tsirigotis/Ternopoulos)
Se Kernberg nos mostra a patologia que impede o amor, a perspectiva do capítulo oitavo nos mostra o perigo inerente ao próprio desejo, mesmo em indivíduos saudáveis. A traição aqui é vista menos como uma falha da estrutura individual e mais como uma manifestação da natureza dual de Eros.
2.1. O Jogo de Eros: A Dupla Face Criadora e Destrutiva do Desejo
Inspirada em uma longa tradição filosófica e psicanalítica, essa reflexão concebe o desejo (Eros) como uma “força primal, queimante”. Essa força é fundamentalmente ambivalente.
- Por um lado, Eros é criador: É a potência que gera a vida, a paixão, a curiosidade, a arte. É o impulso que nos impele para fora de nós mesmos, em direção à criação de vínculos, à fusão com o outro, à construção de projetos e famílias. É a energia que constrói pontes.
- Por outro lado, Eros é destrutivo: Em sua essência, o desejo é excessivo, caótico, sem limites. É uma força que, se não for contida, ameaça consumir as próprias estruturas que ajuda a criar. Ele não se satisfaz com a ordem, com o pacto, com a estabilidade. Ele anseia por mais, pelo diferente, pelo proibido.
A traição, nesta ótica, é compreendida como a manifestação da face destrutiva de Eros. É o momento em que a força que gerou o vínculo se volta contra ele, em um excesso que ameaça aniquilá-lo. O desafio existencial, portanto, é “honrar a potência criativa do nosso desejo, sem sermos completamente consumidos pelo seu poder de aniquilação”.
2.2. A Chama e a Lanterna: Como a Lei Dá Forma à Transgressão
Esta reflexão aprofunda a relação paradoxal entre a lei (o pacto de fidelidade) e a transgressão. Ao contrário do que se pensa, a lei não é a inimiga do desejo; ela é sua “condição de possibilidade”. É o limite que dá forma, intensidade e significado ao desejo. Sem a proibição, a transgressão perde seu “gosto” e sua excitação.
A imagem da “chama e a lanterna” é perfeita: a lei é a lanterna que contém a chama do desejo. Ela não apaga o fogo, mas o impede de causar um incêndio, dando-lhe uma forma e um propósito (o calor, a luz). A traição é o ato trágico que se alimenta da própria lei para existir. Só se pode transgredir aquilo que foi previamente sacralizado por um pacto. Se não houvesse pacto, se tudo fosse permitido, o ato de se relacionar com um terceiro perderia o poder simbólico da transgressão, tornando-se talvez banal. A traição extrai sua potência do fato de quebrar algo que foi definido como valioso.
2.3. O Guardião da Chama: O Amor como Cuidado Ético do Desejo
Aqui reside a diferença fundamental entre o desejo bruto e o amor. Se o desejo é o fogo primal e perigoso, o amor é o “trabalho ético e constante de cuidar do vínculo para que ele não se queime”. O amor não é um sentimento passivo; é uma prática, uma arte, um ato de vigilância constante.
O amor é a decisão de se tornar o “guardião da chama”. É a “arte de conter a chama”, não para extingui-la, mas para “transformá-la em calor” – em intimidade, companheirismo, segurança e paixão sustentável. A traição, neste sentido, é a falha radical desse cuidado. É o momento em que o guardião se distrai, se cansa ou, de forma descuidada, decide “brincar com o fogo”, esquecendo-se de seu poder aniquilador. É a falha em transformar a energia caótica de Eros em uma força que nutre o lar, permitindo que ela o consuma em chamas.
Conclusão: Estrutura, Desejo e a Tarefa Ética do Amor
A justaposição das teses de Kernberg e Ternopoulos nos oferece uma visão vertiginosa da traição. Elas nos mostram que a ruína de um vínculo pode vir de duas direções. Pode vir de dentro, de uma estrutura psíquica incapaz de amar, que compulsivamente sabota qualquer laço para se proteger da intimidade, como descreve Kernberg. Nesse caso, a traição é um destino, o sintoma de uma doença da alma.
Mas a ruína também pode vir da própria natureza do desejo, essa força magnífica e terrível que habita todos nós. Mesmo na estrutura mais saudável, o fogo de Eros está sempre presente, com seu potencial criador e destrutivo. Para estes, a fidelidade não é um estado natural, mas uma conquista diária, um “trabalho ético” de cuidado, atenção e imaginação.
A pergunta final que emerge é, portanto, profundamente pessoal e desafiadora: estamos agindo em nossos relacionamentos como quem, por uma falha estrutural, está destinado a atear fogo à própria casa? Ou estamos agindo como guardiões, conscientes do poder da chama que nos foi confiada, empenhados na difícil e bela tarefa de transformar seu poder aniquilador em uma lareira que aquece e ilumina o lar? A resposta a essa pergunta define a fronteira entre a sabotagem e o cuidado, entre a repetição e a construção, entre a ruína e o amor.

