Uma jornada ao âmago da teoria freudiana para compreender como os primeiros afetos, interdições e relações moldam a nossa vida erótica e afetiva, ecoando nos debates atuais sobre consentimento, comunicação e identidade.
Introdução: O Olhar de Olímpia e o Despertar do Desejo
Em 1863, Édouard Manet chocou o Salão de Paris com sua obra “Olímpia”. Diferente das Vênus idealizadas do Renascimento, sua Olímpia, uma prostituta parisiense, encara o espectador diretamente. Seu olhar não é de submissão, mas de consciência. Ela domina a cena, sexual e ciente disso, invertendo o jogo de poder visual. Esta pintura serve como uma poderosa metáfora para a proposta da psicanálise: descortinar a realidade do desejo, olhá-lo de frente, sem as idealizações e véus morais que o recobrem.
Este artigo, inspirado em um curso sobre psicanálise e expressões da sexualidade, mergulha na tese fundamental e revolucionária de Sigmund Freud: a de que a sexualidade é inaugurada na infância. A partir dessa premissa, exploraremos como os primeiros traços do desejo são desenhados e como essas marcas primordiais se manifestam na complexa tapeçaria das relações adultas, dialogando com as urgentes questões do século XXI, como o consentimento afirmativo, a comunicação erótica e a performance na era digital.
O Pilar Freudiano: A Sexualidade Inaugurada na Infância
O ponto de partida de nossa análise é a convicção freudiana de que a sexualidade não surge na puberdade, mas é uma força motriz — uma pulsão (Pulsa~o) — presente desde os primeiros momentos de vida. Diferente do instinto, que tem um objeto fixo, a pulsão é plástica, parcial e se satisfaz de múltiplas formas, ligando-se a funções vitais.
As primeiras relações, trocas de afeto, e também as primeiras censuras e interdições, são cruciais na modelagem dessa pulsão. O modo como a criança é tocada, alimentada, cuidada e repreendida inscreve em seu psiquismo as matrizes do que mais tarde serão seus roteiros de prazer, afeto e desejo.
- O Impacto dos Interditos: As proibições e os “não” ditos em relação ao prazer infantil (a autoexploração, a curiosidade) não eliminam o desejo, mas o deslocam, o transformam, e muitas vezes o enviam para o território do inconsciente.
- A Escuta das Fantasias: Para a psicanálise, as fantasias e memórias da infância, mesmo que distorcidas ou “reescritas”, são um portal privilegiado para a interpretação dos conflitos e fixações que se manifestam na vida adulta.
- As Fases do Desenvolvimento Psicossexual: Freud mapeou este percurso através das fases oral, anal, fálica, de latência e genital, demonstrando como a zona erógena principal e os conflitos associados a cada etapa deixam marcas indeléveis na estruturação da personalidade.
Do Berço ao Divã: O Eco da Infância na Vida Adulta e o Paradigma do Consentimento
Se a infância é o palco onde o desejo é moldado, a vida adulta é onde esse roteiro é encenado, repetido e, com sorte, reelaborado. As questões contemporâneas sobre sexualidade, embora pareçam novas, encontram raízes profundas nesses primeiros aprendizados.
A Ética do Consentimento: Do “Não é Não” ao “Só o Sim é Sim”
O debate sobre consentimento evoluiu. Deixou de ser uma simples negativa (“não é não”) para se tornar um processo dialógico, fluido e contínuo. Como aponta a filósofa Amia Srinivasan, a máxima “só o sim é sim” implica uma comunicação ativa. Consentir envolve analisar o contexto, as relações de poder, a linguagem corporal e verbal, e a vulnerabilidade. Essa necessidade de diálogo explícito ecoa a dificuldade fundamental que a psicanálise aponta: o desejo nunca é totalmente transparente.
A Comunicação Erótica e a Escuta do Não Dito
O grande desafio da comunicação, como notou George Bernard Shaw, é “a ilusão de que ela ocorreu”. No campo sexual, essa ilusão é perigosa. Freud e Lacan nos ensinam que o inconsciente “fura” toda a fala. Lapsos, silêncios, desconfortos e evasivas são manifestações de que o desejo é complexo e ambíguo. Aprender a “escutar o não dito” torna-se, então, uma habilidade ética fundamental, exigindo uma sensibilidade que vai além dos contratos verbais e dos combinados explícitos.
O Superego Digital e a Lógica do Desejo Performático
Vivemos sob a tirania de um Superego digital. Diferente do Superego clássico que proibia, o contemporâneo exige: ele manda postar, performar e exibir um desejo editado para o engajamento. O resultado é uma cultura de ansiedade de performance. A pressão massacrante por atingir um ideal estético e performático, visível nas redes sociais e na pornografia mainstream, gera culpa por “desejar errado” e vergonha por não alcançar o padrão. Isso nos afasta de uma conexão autêntica com nosso próprio desejo, aquele forjado em nossa história singular.
Ferramentas de Leitura: A Cultura como Espelho do Desejo
Para compreender essas dinâmicas, a psicanálise se volta para as produções culturais, que funcionam como espelhos e laboratórios das expressões da sexualidade.
- “Oleanna” e a Incomunicabilidade: A peça e filme de David Mamet são uma aula sobre a falência da comunicação. A relação entre o professor e a aluna é atravessada por camadas de poder, classe e linguagem, onde o consentimento se torna um campo minado de ambiguidades, demonstrando brutalmente como a ausência de um “não” jamais pode ser lida como um “sim”.
- A Alfabetização Simbólica: Em um mundo que clama por clareza, paradoxalmente, empobrecemos nossa linguagem erótica. Emojis são atalhos, mas não substituem a complexidade do discurso. A “alfabetização simbólica” é a capacidade de nomear, descrever e compartilhar as nuances do desejo. Quando faltam palavras, o desejo retorna em forma de sintoma: ansiedade, confusão, retração.
- Pansexualidade como Expansão do Léxico: O conceito de pansexualidade — o desejo que transcende o binarismo de gênero, reconhecendo pessoas não-binárias e trans como parceiros potenciais — é um exemplo de expansão dessa alfabetização. Rótulos, quando usados para organizar a luta e nomear experiências antes silenciadas, importam. Eles desafiam padrões linguísticos e forçam uma educação sobre identidade e respeito.
A Práxis do Psicanalista: Imparcialidade e Escuta Crítica
Ao abordar temas tão sensíveis, é fundamental clarificar o lugar de fala. O psicanalista não é um educador que orienta para valores morais. Sua função é a de descortinar a realidade psíquica como ela se apresenta, mantendo uma distância crítica e uma rigorosa imparcialidade. Profissionais da escuta, terapeutas, agentes de saúde e educadores são convidados a suspender temporariamente suas próprias crenças — sejam elas religiosas, familiares ou culturais — para poderem enxergar o fenômeno com clareza. A meta não é julgar, mas compreender a complexa arquitetura do desejo humano.
Conclusão: Construindo Melhores Caminhos
Explorar os primeiros traços do desejo na infância a partir da psicanálise freudiana não é um exercício meramente acadêmico. É um ato de profunda relevância para entender quem somos. As dinâmicas de poder, as dificuldades de comunicação, as ansiedades de performance e os debates sobre consentimento que marcam nosso tempo são ecos diretos das primeiras relações que nos constituíram.
Para os profissionais que atuam na clínica da escuta, para pais, educadores e para todos os interessados em aprofundar o autoconhecimento, dominar essa perspectiva é fundamental. Conhecer para se tornar mais responsável; conhecer para fazer a diferença; conhecer para, com um olhar crítico e empático, ajudar a construir caminhos mais saudáveis e autênticos nas infinitas e fascinantes expressões da sexualidade humana.