Introdução: O Eu na Multidão
Em algum momento, todos nós já sentimos: a eletricidade de um estádio em uníssono, a fúria unificada de um protesto, o silêncio pesado de uma multidão em luto ou o pânico irracional que se espalha em uma situação de crise. Nesses instantes, algo curioso acontece com nossa individualidade. As fronteiras do eu parecem se dissolver, e somos tomados por uma emoção que não é inteiramente nossa, mas que pertence a todos e a ninguém. A este fenômeno, a psicanálise e as ciências sociais dão o nome de afetividade de massa. É o processo pelo qual o medo, a euforia, o ódio ou a esperança transcendem o indivíduo e se espalham no corpo social como uma névoa contagiante.
Este artigo propõe uma exploração psicanalítica profunda deste fenômeno. Partindo da premissa de que o medo coletivo é um dos sintomas mais potentes do nosso tempo, iremos investigar o seu mecanismo fundamental — o contágio psíquico, como descrito por Freud —, as suas raízes na nossa condição de fragilidade e desamparo e, finalmente, o papel da elaboração simbólica como o único antídoto duradouro. Diante de um mundo onde as massas são cada vez mais mobilizadas, seja nas ruas ou nas redes, a tarefa da psicanálise é a de sustentar um espaço para a reflexão, guiada por duas máximas de coragem: “Nil desperandum” (Jamais desesperar), pois a paralisia é o triunfo do medo; e “Per aspera ad astra” (Por ásperos caminhos até as estrelas), pois a travessia do sofrimento, por mais árdua que seja, é o que nos permite alcançar a luz da consciência.
As Fundações Psíquicas da Massa: Freud e o Contágio da Alma 🧠
Para compreender como um afeto se torna coletivo, é imprescindível retornar ao trabalho seminal de Sigmund Freud, especialmente em sua obra “Psicologia das Massas e Análise do Eu”. Freud foi um dos primeiros a investigar a metamorfose que ocorre na psique do indivíduo quando ele se torna parte de uma multidão. Sua análise desvela um processo de regressão a estados mentais mais primitivos.
O Indivíduo na Multidão: A Regressão e a Perda da Crítica Freud observou que, ao entrar em uma massa psicológica, o indivíduo sofre uma transformação radical. As inibições caem, a responsabilidade pessoal se dilui e, o mais importante, a capacidade de crítica e de pensamento racional é drasticamente reduzida. O sujeito deixa de ser governado por seu próprio Ego para ser levado pela emoção e pela sugestão do coletivo. É por isso que as massas são capazes de atos de heroísmo ou de barbárie que um indivíduo isolado raramente cometeria. A máxima ouvida na adolescência — “o grupo sempre infantiliza” — encontra aqui sua justificação teórica: a massa nos faz regredir a um estado psíquico menos diferenciado, mais impulsivo e mais sugestionável.
O Mecanismo da Identificação e a Libido Coletiva Qual é o motor por trás dessa transformação? Freud identifica a libido — a energia das pulsões de vida, de amor e de ligação — como a cola que mantém a massa unida. Não se trata de uma libido sexualizada, mas de laços afetivos e de identificação. Este é o mecanismo chave. Os indivíduos no grupo se identificam uns com os outros por compartilharem o mesmo afeto ou a mesma ideia. Mais crucialmente, eles operam uma substituição psíquica fundamental: cada um coloca a figura do líder (ou uma ideia abstrata que o substitua) no lugar de seu próprio Ideal de Ego ou Superego.
Em outras palavras, a voz da consciência individual, a instância que julga e que estabelece os ideais a serem seguidos, é terceirizada. O líder passa a ser o ideal comum a todos, e o que ele diz ou representa se torna a nova lei. É essa dupla ligação libidinal — a identificação horizontal com os pares e a identificação vertical com o líder — que cria a coesão e a homogeneidade da massa.
O Contágio Psíquico como Consequência O contágio psíquico é a consequência direta desse processo. Uma vez que as barreiras do Ego individual estão enfraquecidas e a identificação com o grupo é massiva, os afetos se propagam sem resistência, como uma infecção. A emoção de um indivíduo ressoa imediatamente nos outros, não através da lógica, mas de uma sugestão inconsciente, amplificando-se em um ciclo que pode levar rapidamente à euforia ou ao pânico. É um fenômeno que vemos de forma explícita na fúria de uma torcida organizada, no fervor de uma manifestação política ou no pânico que se espalha em um incêndio.
A Condição Estrutural: Por Que Somos Suscetíveis ao Contágio? 💔
A análise de Freud sobre a psicologia das massas seria incompleta se não a conectássemos a uma condição ainda mais fundamental da existência humana: a nossa fragilidade inerente e a experiência do desamparo original. Por que abrimos mão tão facilmente de nossa crítica individual em troca da segurança do grupo?
O Desamparo Original e a Busca por Proteção O ser humano, diferente de outras espécies, nasce em um estado de imaturidade extrema, totalmente dependente do cuidado do outro para sobreviver. Esta experiência primordial de total dependência e vulnerabilidade, que Freud chamou de desamparo (Hilflosigkeit), marca nosso psiquismo para sempre. Ela gera um sentimento de angústia fundamental que nos acompanha ao longo da vida. Passamos a existência construindo defesas, buscando segurança em relações, na cultura, na ciência e nas crenças para manejar essa sensação de desamparo.
A imersão em uma massa psicológica é, talvez, a defesa mais potente e sedutora contra essa angústia. Dentro do grupo, o sujeito se sente protegido, anônimo e parte de algo onipotente, muito maior que seu próprio eu frágil. A sensação de isolamento desaparece, substituída por um sentimento de pertencimento e força absolutos. A massa funciona como um “útero social” que promete nos proteger da incerteza do mundo.
O Preço da Segurança: A Perda do Eu Contudo, o preço a pagar por essa segurança é altíssimo: é a renúncia à própria singularidade. Para ser aceito pela massa, o sujeito precisa silenciar suas dúvidas, reprimir suas discordâncias e se conformar com o afeto dominante. O “eu” é sacrificado em nome da coesão do “nós”. É por isso que o pensamento crítico e a dúvida são vistos como traição dentro de grupos altamente coesos. A pintura “A Liberdade Guiando o Povo” de Delacroix retrata o lado heróico dessa fusão, onde a paixão coletiva se une por um ideal libertário. No entanto, o mito das Bacantes de Dionísio, seguidoras que em seu fervor coletivo e irracional eram capazes de atos de extrema violência, nos mostra o lado sombrio e destrutivo dessa mesma dissolução do eu.
O Palco Contemporâneo: A Afetividade de Massa no Século XXI 📱
No século XXI, o fenômeno da afetividade de massa encontrou um novo e poderoso amplificador: a internet e as redes sociais. O contágio psíquico, que antes dependia da proximidade física, agora ocorre na velocidade da luz, em escala global.
As Redes Sociais como “Massa Digital” As plataformas digitais são incubadoras perfeitas para o contágio psíquico. Os algoritmos criam bolhas de confirmação, agrupando pessoas com visões de mundo semelhantes e reforçando suas crenças, enquanto as protegem de ideias dissonantes. O like e o compartilhamento funcionam como mecanismos de validação e de propagação afetiva instantânea. A indignação viral, o pânico moral e a euforia coletiva se espalham sem o filtro da deliberação ou da verificação dos fatos. O algoritmo, de certa forma, se torna o “líder” invisível que dita qual afeto deve predominar.
A Polarização Política e o Pavor Social A polarização política contemporânea pode ser lida não apenas como um desacordo de ideias, mas como a formação de massas psicológicas antagônicas. Cada lado se unifica em torno de seus líderes e ideais, com intensa identificação interna, enquanto projeta no grupo oposto toda a agressividade e os aspectos negativos. O outro deixa de ser um adversário com quem se debate para se tornar um inimigo a ser aniquilado. O pavor social também é amplificado: notícias de crimes ou de crises, reais ou falsas, se espalham pelas redes, criando uma sensação de perigo iminente e de colapso social que muitas vezes é desproporcional à realidade estatística, mas que tem efeitos concretos na vida das pessoas, como o medo de sair às ruas.
A Resposta Psicanalítica: Da Névoa à Palavra 🗣️
Qual é o papel da psicanálise diante desse cenário? Sua tarefa não é a de julgar ou de oferecer soluções políticas, mas a de sustentar um espaço ético e clínico para a desconstrução e a elaboração.
A Elaboração Simbólica como Antídoto A principal ferramenta da psicanálise é a elaboração simbólica. Este é o processo psíquico de transformar as experiências brutas, os afetos avassaladores e os traumas em símbolos, narrativas e representações. É a capacidade da mente de dar forma e significado ao caos. O pavor social, quando não elaborado, permanece como uma angústia difusa e paralisante. A clínica psicanalítica, seja individual ou em grupo, funciona como um espaço para essa alquimia. É no setting analítico que o grito silencioso da massa pode ser traduzido em palavra, e a dor coletiva pode ser, enfim, compreendida em sua singularidade. O “Bolero” de Ravel, com seu crescendo hipnótico e inexorável, é uma metáfora musical perfeita para o contágio psíquico que a elaboração simbólica busca interromper e analisar.
O Resgate da Voz Individual O objetivo ético final da psicanálise é ajudar o sujeito a resgatar sua voz individual do coro ensurdecedor da massa. Isso implica um trabalho clínico que:
- Questiona as Identificações: Ajuda o paciente a analisar com quem e por que ele se identifica, desnaturalizando laços que pareciam óbvios.
- Fortalece o Ego: Auxilia na reconstrução da capacidade de pensamento crítico, de tolerar a dúvida e a ambivalência.
- Sustenta a Angústia da Solidão: Acompanha o sujeito no processo doloroso de se diferenciar do grupo, de ousar pensar por si mesmo, o que inevitavelmente o confronta com uma sensação de solidão.
O analista, neste processo, deve se abster de se tornar um novo líder, uma nova figura idealizada. Sua função é a de sustentar um espaço de questionamento, permitindo que o paciente encontre seu próprio Ideal de Ego, seu próprio norte.
Conclusão: A afetividade de massa é uma das forças mais poderosas e ambivalentes da experiência humana. Arraigada em nossa mais profunda vulnerabilidade — o desamparo original —, ela nos oferece a sedutora promessa de segurança e pertencimento, mas ao custo de nossa singularidade e de nosso pensamento crítico. A jornada psicanalítica, em sua essência, é um ato de coragem contra essa sedução. É a escolha de atravessar os ásperos caminhos da dúvida e da angústia para alcançar as estrelas da própria consciência. Em um mundo que nos empurra cada vez mais para a reação uníssona da massa, a escuta psicanalítica se afirma como um ato de resistência radical, um espaço precioso onde a voz singular do sujeito pode, mais uma vez, ser ouvida.