Após uma série de reflexões provocativas que estabeleceram o tom crítico e humanista do nosso percurso, adentramos agora o primeiro capítulo do curso “Psicanálise e TDAH”. A tarefa que se impõe é foundational: responder à pergunta “O que realmente é o TDAH?”. Longe de oferecer uma resposta simples, este ponto de partida nos convida a um exercício de desmistificação, distinção e, acima de tudo, de aprofundamento. A proposta é ousada: reconhecer a premissa neurobiológica do transtorno para, em seguida, transcendê-la, demonstrando sua radical insuficiência para capturar a complexidade do sofrimento humano.
Este capítulo inaugural age como uma porta de entrada, oferecendo o vocabulário oficial e necessário, mas o faz com um propósito subversivo: desconstruir os preconceitos que esse mesmo vocabulário muitas vezes carrega. Para tanto, a reflexão se apoia em duas metáforas centrais que guiarão nossa análise. A primeira é a “armadilha do mapa”, uma crítica psicanalítica à rigidez dos diagnósticos que, embora úteis para uma orientação inicial, podem se tornar celas confortáveis que nos impedem de explorar o vasto e singular território do sujeito. A segunda, e mais profunda, é a da “orquestra oculta da alma”, uma imagem poética que representa o inconsciente freudiano e nos convida a uma nova ética do cuidado: não a de silenciar os instrumentos dissonantes, mas a de ajudar o sujeito a se tornar o maestro de sua própria e complexa sinfonia interna.
Este artigo irá explorar essa jornada, partindo da desmistificação do TDAH, mergulhando na crítica ao diagnóstico como mapa, aprofundando a compreensão da subjetividade como orquestra e, por fim, reinterpretando a tríade sintomatológica clássica não como uma lista de falhas, mas como a manifestação de uma potência vital que se recusa a ser domesticada.
O Ponto de Partida Necessário: Desmistificação e a Distinção Fundamental
O curso estabelece, de partida, uma premissa honesta e inegociável: o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade é, em sua base, um transtorno neurobiológico. Negar esta dimensão seria um ato de obscurantismo, desrespeitando o sofrimento real e as dificuldades concretas que afetam a capacidade de atenção, o controle da impulsividade e a regulação da atividade motora. Este reconhecimento é crucial, pois estabelece uma ponte para o diálogo com outras disciplinas e valida a experiência de quem vive com o transtorno.
Contudo, a grande virtude deste primeiro capítulo é demonstrar que este ponto de partida não pode ser o ponto de chegada. A principal tarefa aqui é a desmistificação, que opera em dois níveis. Primeiro, separar o fato científico dos mitos populares e, principalmente, do julgamento moral. Ao afirmar a base neurobiológica, deslocamos imediatamente o problema do campo da culpa (“essa criança é preguiçosa”, “falta de educação”, “não se esforça”) para o campo da necessidade de cuidado. Esta distinção fundamental é um ato ético que liberta a criança e a família do peso esmagador da responsabilidade moral por uma condição que não escolheram.
Em segundo lugar, a desmistificação nos convida a recolocar o diagnóstico em seu devido lugar. Ele é uma cartografia inicial, um mapa que nos ajuda a nomear um sofrimento e a traçar as primeiras rotas de intervenção. No entanto, a psicanálise nos alerta para a insuficiência deste mapa e nos convida a questionar o que existe sob a superfície descritiva dos sintomas. É aqui que a perspectiva psicanalítica inicia sua revolução.
A Armadilha do Mapa: Diagnóstico como Início, Jamais como Destino
A metáfora do diagnóstico como um mapa é profundamente elucidativa. Um mapa é uma ferramenta essencial quando se está perdido. Ele oferece um nome para o lugar desconhecido, mostra os contornos gerais do terreno e sugere possíveis caminhos. Da mesma forma, um diagnóstico de TDAH pode trazer um alívio imenso. Ele dá nome a uma angústia difusa, valida uma experiência de inadequação e permite que a família e a escola comecem a pensar em estratégias de suporte.
O perigo, no entanto, reside na “armadilha do mapa”. O que acontece quando confundimos o mapa com o território? O que ocorre quando a etiqueta médica, que deveria ser um guia, se torna uma identidade, uma “cela confortável”? O diagnóstico, quando absolutizado, pode se transformar em uma profecia autorrealizável que aprisiona o sujeito em uma definição redutora de si mesmo. A criança passa a ser “o TDAH”, e todas as suas ações, pensamentos e dificuldades são lidos através dessa lente única, impedindo a exploração da riqueza e da singularidade de sua vida psíquica.
É para escapar desta armadilha que a psicanálise propõe a sua inversão mais fundamental, uma mudança na própria formulação da pergunta clínica. O olhar diagnóstico, focado no mapa, pergunta: “O que ele tem?“. É uma pergunta que busca um objeto, um transtorno, uma falha a ser catalogada. O olhar psicanalítico, interessado no território, pergunta: “O que ele tem a nos dizer?“. Esta pergunta transforma o sujeito de um portador passivo de um defeito em um agente ativo de uma mensagem. O sintoma deixa de ser um ruído a ser eliminado para se tornar uma comunicação a ser decifrada. É esta mudança de pergunta que abre a porta da “cela confortável” e nos permite entrar no fascinante e complexo mundo da subjetividade.
A Orquestra Oculta da Alma: A Subjetividade por Trás do Sintoma
Se o diagnóstico é o mapa, a subjetividade é a “orquestra oculta da alma”. A metáfora, inspirada em Fernando Pessoa, representa o inconsciente freudiano – esse palco interno onde ressoam pulsões, desejos, conflitos e memórias que escapam ao controle da consciência. Cada ser humano carrega dentro de si essa orquestra, com seus instrumentos afinados e seus “instrumentos dissonantes”.
A nossa cultura, obcecada por ordem e funcionalidade, não tolera a dissonância. Ela exige que a orquestra toque uma melodia previsível e harmoniosa. Quando a orquestra de uma criança soa caótica – com os “metais” da impulsividade soando alto demais, as “cordas” da atenção parecendo dispersas e a “percussão” da hiperatividade em um ritmo frenético –, a demanda social é clara: silenciar os instrumentos dissonantes. A medicalização e as terapias puramente comportamentais, quando usadas de forma reducionista, funcionam como surdinas impostas a essa orquestra, buscando a paz do silêncio ao custo da supressão da expressão.
A proposta terapêutica da psicanálise é radicalmente outra. A superação do sofrimento não está no silêncio dos instrumentos, mas na apropriação pelo sujeito de sua própria orquestra. O trabalho do terapeuta se assemelha ao de um maestro que se põe a serviço da música que já existe. Ele não busca calar o trompete estridente da agitação, mas escutá-lo e perguntar: “O que esta nota está tentando expressar? Em que momento da sinfonia ela surge?”. O objetivo é ajudar a criança a reconhecer todos os seus instrumentos, a entender a função de cada som, mesmo os mais desafinados, e a, gradualmente, assumir a batuta. Tornar-se maestro da própria orquestra significa integrar as dissonâncias em uma composição mais complexa e autêntica, transformando o caos em criação.
Reinterpretando a Tríade: A Potência Escondida na Inquietude
Armados com a crítica ao mapa e com a escuta da orquestra, podemos agora revisitar a tríade sintomatológica clássica (desatenção, hiperatividade, impulsividade) não como um checklist de déficits, mas como a manifestação de potências incompreendidas.
- A Hiperatividade como “Força Vital”: A inquietude é reinterpretada como uma potência, uma energia vital que se recusa a ser domesticada por estruturas rígidas e, muitas vezes, sem sentido. Não é um déficit de controle, mas um excesso de vida que ainda não encontrou um canal simbólico para se expressar. Enquanto a escola e a sociedade tentam “controlar” essa energia, a psicanálise pergunta: “Como podemos ajudar esta força a se inscrever no mundo?”. A resposta está na canalização para a criação estética (a arte, a música), a transformação social ou a exploração intelectual. A tarefa não é parar a criança, mas ajudá-la a construir algo com o motor que a impulsiona.
- A Desatenção como “Foco Desregulado”: A psicanálise questiona a própria ideia de “déficit” de atenção. O que se observa é, na verdade, um foco desregulado que oscila entre uma dispersão aparentemente caótica e um hiperfoco de intensidade surpreendente. O curso nos provoca a pensar: e se o hiperfoco não for patologia, mas uma forma de resistência? Uma capacidade de imersão profunda em temas que fazem sentido para o sujeito, em oposição a um mundo que muitas vezes não oferece significado. E se a dispersão não for uma deficiência, mas uma busca inconsciente por estímulos que possam, finalmente, capturar o desejo e dar sentido à experiência? Medicalizar essa busca é arriscar-se a extinguir a própria chama da curiosidade.
- A Impulsividade como Dificuldade de Simbolização: A dificuldade de inibir respostas automáticas é vista não como uma falha moral, mas como um curto-circuito na capacidade de simbolização. O impulso irrompe em ato porque não houve tempo ou espaço psíquico para que ele fosse transformado em pensamento, em palavra. Ele é o “instrumento dissonante” que toca antes do tempo. O trabalho terapêutico consiste em criar esse espaço intermediário, esse compasso de espera, onde o afeto bruto possa ser nomeado e pensado antes de se converter em ação.
Conclusão: O Início da Jornada Honesta
O primeiro capítulo cumpre sua função de ser uma porta de entrada, mas o faz de modo a desconstruir o próprio portal. Ao aceitar a premissa neurobiológica para imediatamente revelar sua insuficiência, ele nos prepara para uma busca mais honesta e profissional. Ele nos ensina que o diagnóstico é um mapa que devemos aprender a ler, mas que jamais devemos ter medo de abandonar para explorar, com coragem e curiosidade, o território único e imprevisível da orquestra oculta que cada sujeito carrega dentro de si. A verdadeira jornada de compreensão do TDAH começa quando ousamos baixar o mapa, silenciar o ruído dos preconceitos e, finalmente, nos dedicarmos à complexa e fascinante arte de escutar a música da alma.