Introdução: A Virtude que Emerge na Dificuldade
Meus caríssimos cursistas, parceiros de jornada,
Sejam bem-vindos a esta reflexão sobre uma das ferramentas mais potentes e, por vezes, subestimadas no arsenal terapêutico: o grupo terapêutico. Em nossa exploração dos medos, vimos como o eu pode se fragmentar e como a angústia pode sequestrar o corpo. Hoje, nosso foco se volta para uma forma de intervenção que aposta na força do coletivo como o principal agente de cura e de resistência. Vivemos em uma era marcada por uma crescente medicalização do sofrimento psíquico, uma tendência a buscar na pílula a solução rápida para dores que, em sua essência, são existenciais e relacionais. A proposta psicanalítica, sem negar a importância da interdisciplinaridade e do apoio psiquiátrico quando necessário, nos convoca a um olhar crítico sobre essa hegemonia farmacológica.
Nossa jornada será guiada por duas máximas da sabedoria antiga. A primeira, “Virtus in arduis” (A virtude se mostra nas dificuldades), nos lembra que a verdadeira força, a clareza e a convicção emergem precisamente quando confrontamos nossos maiores desafios. O medo e a angústia não são apenas obstáculos, mas a “tela onde pintamos o nosso caráter”. A segunda, “Sic parvis magna” (De pequenas coisas, fazem-se as grandes), nos ensina que as mais profundas transformações começam com o primeiro passo. Enfrentar temores modestos nos treina para confrontos maiores; cada passo, por menor que seja, diminui a montanha. Este artigo se propõe a demonstrar como o grupo terapêutico é o ginásio onde esses pequenos e corajosos passos podem ser dados, fortalecendo os “músculos da alma” e reafirmando a potência da palavra compartilhada.
## A Conexão Psicanalítica: A Função Continente de Bion e a Força do Coletivo
Para compreender a eficácia de um grupo terapêutico, é fundamental recorrer ao conceito de função continente, desenvolvido pelo psicanalista Wilfred Bion. Bion, a partir de sua experiência com grupos e pacientes psicóticos, descreveu a “função alfa” da mente, que é a capacidade de processar experiências emocionais brutas e transformá-las em elementos que podem ser pensados e simbolizados.
- A Mãe como Primeiro Continente: Originalmente, essa função é exercida pela mãe (ou cuidador primário). O bebê, inundado por afetos que não compreende (fome, medo, dor), os projeta na mãe. A “mãe suficientemente boa” é aquela que consegue receber essas angústias “brutas” (que Bion chamou de elementos beta), metabolizá-las internamente e devolvê-las ao bebê de uma forma mais digerível, nomeada e contida (os elementos alfa).
- O Grupo como Continente Secundário: Bion percebeu que um grupo terapêutico pode funcionar, para o adulto, de maneira análoga a essa função materna. O grupo se torna um continente psíquico. O indivíduo, paralisado por medos e angústias que não consegue pensar ou simbolizar sozinho, pode “projetar” esses afetos no grupo. O grupo, com suas múltiplas vozes, identificações e com a mediação do terapeuta, “recebe” essa angústia, a processa coletivamente e a devolve ao indivíduo de uma forma transformada, agora passível de ser pensada.
O grupo, portanto, oferece um espaço de ressonância e identificação que quebra o isolamento radical do sofrimento. Ao ouvir a dor do outro, o sujeito percebe que não está sozinho em sua angústia, o que por si só já tem um efeito terapêutico imenso. A palavra do outro ajuda a nomear o que, em si mesmo, era inominável. O sofrimento, antes um fardo individual e vergonhoso, torna-se uma experiência compartilhada.
## A Sensibilização: A Potência da Palavra Compartilhada
No palco da existência, a potência da palavra compartilhada é um hino que reafirma que, como dizia Victor Hugo, “os que vivem são aqueles que lutam” — e lutar, em psicanálise, significa lutar para dar voz ao sofrimento. A hegemonia farmacológica, com seu uso excessivo de ansiolíticos (benzodiazepínicos), muitas vezes opera na lógica oposta: a do silenciamento químico. A pílula, embora possa ser um alívio necessário em crises agudas, corre o risco de induzir uma passividade e um congelamento que impedem a elaboração psíquica.
O grupo terapêutico é o antídoto para esse silenciamento.
- Do Isolamento à Partilha: A porta do consultório de grupo revela a promessa de um encontro onde a solidão do sofrimento pode ser, enfim, partilhada e aliviada. O grupo se torna um espaço onde a dor é nomeada, perdendo seu poder paralisante.
- A Redução da Medicalização como Efeito: Nesse contexto, a redução da dependência de medicamentos surge como um efeito colateral natural da reconquista da autonomia. À medida que o sujeito desenvolve a capacidade de conter sua própria angústia através da palavra e do suporte do grupo, a necessidade da “muleta” química diminui. A palavra, quando circula em um ambiente de confiança, se torna o mais potente dos ansiolíticos.
## O Conceito em Foco: A Crítica à Hegemonia Farmacológica
Marcelo Rodrigues, em sua obra e prática, desafia a hegemonia farmacológica ao posicionar os grupos terapêuticos como uma via poderosa e eficaz para o tratamento de transtornos de ansiedade. Sua abordagem se baseia em uma crítica contundente à medicalização excessiva do sofrimento.
- A Medicalização que Silencia: Rodrigues alerta que o excesso de pílulas muitas vezes serve para silenciar a dor, em vez de compreendê-la. O sintoma, que para a psicanálise é uma mensagem cifrada do inconsciente, é tratado como um erro bioquímico a ser corrigido. Isso pode trazer um alívio temporário, mas não resolve o conflito subjacente e pode cronificar o sofrimento.
- A Potência da Interação Grupal como Motor da Cura: Para Rodrigues, a eficácia dos grupos reside na capacidade de ressignificar a angústia e fortalecer o eu através da identificação e da solidariedade. O motor da cura é a interação, a troca, o reconhecimento no olhar do outro.
- A Conexão Corpo-Palavra como Chave da Libertação: A proposta terapêutica visa reintegrar o corpo e a palavra. O sujeito aprende a escutar a linguagem de seu corpo (os sintomas do pânico) e a traduzi-la em uma narrativa psíquica.
- A Autonomia como Horizonte Ético: O objetivo final não é apenas diminuir os ataques de pânico, mas capacitar o sujeito a ser protagonista de sua própria vida, livre da tirania do medo e da dependência das pílulas.
## O Diálogo Cultural: A Força do Coletivo na Arte e no Mito
A cultura, em suas diversas manifestações, sempre explorou a tensão entre o indivíduo e o grupo, e a força que emerge da união.
- “Um Estranho no Ninho” (Filme, 1975): Esta obra-prima é uma alegoria poderosa sobre a luta pela autonomia contra um sistema opressor e medicalizante. O protagonista, McMurphy, embora não seja um terapeuta, funciona como um catalisador que mobiliza os pacientes de uma instituição psiquiátrica a questionarem a sedação química e a opressão institucional. Ele os incita a encontrar força no coletivo, a redescobrir a palavra, o riso e a rebeldia. O filme ilustra dramaticamente como o grupo pode se tornar uma força de resistência e de resgate da subjetividade contra um poder que busca homogeneizar e silenciar.
- “A Dança” (Pintura, Henri Matisse, 1910): A pintura de Matisse, com suas cinco figuras nuas dançando em uma ciranda de mãos dadas, é a imagem da energia vital que emerge da interação grupal. O movimento é fluido, a conexão é total, as cores são vibrantes. A obra simboliza a potência da coesão, a alegria e a força que nascem quando os indivíduos se unem em um ritmo comum. É a representação visual da pulsão de vida que um grupo terapêutico funcional busca despertar.
- As Musas (Mitologia Grega): As nove musas, divindades inspiradoras das artes e das ciências, podem ser vistas como uma metáfora para a potência polifônica de um grupo. Cada musa rege uma área, representando uma voz singular (a história, a poesia, a música, a tragédia). Juntas, elas não formam um coro uníssono, mas uma harmonia complexa que inspira a criação. O grupo terapêutico, em seu melhor, funciona como um encontro de musas: cada membro, com sua história e sua voz única, contribui para a criação de um sentido coletivo que é muito mais rico do que a soma das partes.
- “Cânone em Ré Maior” (Música, Johann Pachelbel, c. 1680): A estrutura do cânone é uma analogia musical perfeita para a dinâmica de um grupo terapêutico. Na peça de Pachelbel, diferentes vozes (instrumentos) entram em momentos distintos, tocando a mesma melodia, mas de forma defasada. Elas se entrelaçam, se apoiam, se complementam, criando uma harmonia complexa e bela a partir de uma regra simples. Da mesma forma, no grupo, cada membro entra com sua “melodia” (sua história), que ecoa e dialoga com as dos outros, criando um todo coeso e terapêutico que é muito maior que a soma das partes. A escuta mútua e a construção coletiva de sentido permitem que a angústia seja contida e elaborada.
Conclusão: O Encontro como o Verdadeiro Remédio
Nossa jornada nos mostra que, diante do medo que isola e da angústia que paralisa, a psicanálise faz uma aposta radical na força do laço social. Em uma cultura que muitas vezes oferece a solução rápida e solitária da medicalização, a proposta do grupo terapêutico é um ato de resistência que reafirma a centralidade do encontro e da palavra.
O grupo funciona como um continente bioniano, que recebe e metaboliza os afetos brutos que o indivíduo não consegue processar sozinho. Ele é a prova viva de que a palavra compartilhada tem o poder de ressignificar a dor e de que a conexão humana é o mais potente dos ansiolíticos. Ao nos deixarmos provocar pela rebeldia de McMurphy, pela vitalidade de “A Dança” de Matisse, pela polifonia das Musas e pela harmonia entrelaçada do “Cânone” de Pachelbel, compreendemos que o caminho para a redução da dependência química e para o florescimento da autonomia passa, necessariamente, pela reconstrução do coletivo. A cura, em última instância, é a redescoberta de que, para suportar as dificuldades, não há virtude maior do que a de poder contar com o outro.