Após desmistificar o conceito de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e situá-lo como um sintoma da nossa civilização, o curso nos convida a dar um passo adiante e aprofundar o olhar especificamente psicanalítico. A proposta aqui não é meramente complementar, mas sim revolucionária. Trata-se de uma “virada de mesa” conceitual que busca deslocar o eixo da discussão da Biologia para a Biografia, humanizando um diagnóstico que corre o risco de se tornar uma etiqueta redutora. A tese central, que ecoa como um poderoso contraponto à pressa diagnóstica contemporânea, é a de que o sintoma do TDAH não é um erro passivo do cérebro, mas um ato, uma linguagem cifrada que expressa a luta de um sujeito para se constituir. O objetivo último desta revolução é transformar a criança de uma mera “portadora de um transtorno” em uma potente “autora de sua história”.
Este artigo propõe-se a mergulhar nas profundezas desta perspectiva, explorando como a psicanálise reinterpreta os sintomas clássicos através do conflito entre as instâncias psíquicas (Id, Ego e Superego). Analisaremos a tese crucial da centralidade das funções simbólicas materna e paterna na estruturação da mente infantil e como suas falhas podem se manifestar como TDAH. Investigaremos o papel do trauma — dos microtraumatismos repetitivos aos legados transgeracionais — na arquitetura do psiquismo. E, finalmente, abraçaremos a complexidade de uma abordagem que, sem negar a sólida base genética do transtorno, insiste em um diálogo equilibrado, resgatando a história singular do sujeito por trás da inevitável realidade neurobiológica.
A Arquitetura da Psique: Id, Ego, Superego e as Funções Parentais
A psicanálise freudiana oferece um mapa da mente que vai além da neuroanatomia, postulando uma arquitetura dinâmica composta por três instâncias: o Id, reservatório das pulsões e do desejo bruto; o Superego, instância da lei, da moral e dos ideais internalizados; e o Ego, o mediador que busca conciliar as demandas do Id, as restrições do Superego e a realidade externa. Nesta ótica, os sintomas do TDAH são reinterpretados como manifestações visíveis de uma batalha inconsciente. A agitação e a impulsividade, por exemplo, refletem um Ego fragilizado, uma instância mediadora que se mostra incapaz de conter as exigências pulsionais do Id e de negociar com as injunções do Superego.
Contudo, o Ego não se constrói no vácuo. Sua força e sua capacidade de mediação dependem fundamentalmente da qualidade das primeiras relações objetais. É aqui que a psicanálise introduz uma de suas teses mais potentes: a centralidade das funções simbólicas parentais. Não se trata dos pais de carne e osso, mas das funções que eles (ou seus substitutos) exercem na estruturação da mente da criança.
A Função Materna refere-se à capacidade de oferecer continência (holding), de acolher as angústias do bebê, de funcionar como um espelho que reflete e dá sentido às suas experiências caóticas. Uma falha ou inconsistência nesta função — uma mãe ela mesma deprimida, ansiosa ou indisponível — pode deixar a criança em um estado de desamparo primordial, com um Ego incipiente e uma dificuldade crônica em metabolizar excitações, resultando em uma agitação constante como tentativa de auto-regulação.
A Função Paterna, por sua vez, é a que introduz a interdição, o “não”, a Lei. É a função que corta a díade fusional mãe-bebê e inscreve a criança na ordem simbólica, na cultura, ensinando-a a lidar com limites, com a frustração e com a necessidade de adiar a gratificação. Uma falha nesta função — um pai ausente, ou uma estrutura familiar que não consegue sustentar limites claros — pode resultar diretamente na impulsividade e na dificuldade de seguir regras, sintomas cardinais do TDAH. Quando a estrutura externa falha em oferecer contornos, a estrutura interna luta para se organizar.
A Biografia do Sintoma: O Impacto do Trauma e o Legado Transgeracional
A perspectiva psicanalítica nos obriga a considerar a biografia do sintoma, a história que ele carrega. O trauma precoce é descrito como um “terremoto que acontece durante a construção do edifício psíquico”, deformando sua arquitetura. Muitas vezes, não se trata de um grande evento traumático, mas de microtraumatismos repetitivos: experiências cotidianas de não reconhecimento, de ausência de acolhimento, de falhas na capacidade dos pais de dar sentido às experiências da criança. Essas falhas na simbolização ficam “congeladas” no psiquismo, como bolsões de angústia sem nome.
Os comportamentos do TDAH, nesta visão, podem ser compreendidos como “tentativas desesperadas do psiquismo de dar conta de uma excitação que não foi metabolizada”. A agitação motora torna-se uma forma de descarregar uma tensão que não encontra palavras; a desatenção, uma forma de se dissociar de uma realidade interna ou externa percebida como ameaçadora. O sintoma, portanto, é ao mesmo tempo o sinal do trauma e a tentativa precária de curá-lo.
Adicionalmente, a psicanálise contemporânea considera o impacto do legado transgeracional. Traumas não elaborados pelos pais, avós ou mesmo bisavós (lutos, segredos de família, violências silenciadas) se transmitem como “fantasmas” no psiquismo familiar, criando um ambiente de angústia não nomeada que a criança, como o membro mais sensível do sistema, pode acabar por “atuar” em seu corpo e em seu comportamento. Embora seja uma tese que encontra resistências, a clínica revela consistentemente como os sintomas de uma criança podem ser a encenação de um drama que não lhe pertence originalmente, mas que lhe foi transmitido como uma “herança” psíquica.
A Gramática do Corpo: O Sintoma como Linguagem e Arqueologia
A pergunta que a psicanálise incessantemente coloca diante de um sintoma é: “Qual é a história que ele nos obriga a escutar?”. Para a psicanálise, o movimento não é aleatório; ele possui uma “gramática corporal rigorosa”. O corpo hiperativo é um corpo que tenta, desesperadamente, reescrever através do movimento aquilo que não pôde ser inscrito pela palavra. A compulsão ao movimento surge como uma tentativa de produzir uma história pessoal através da acumulação de atos, na impossibilidade de construí-la de um modo simbólico.
A imagem do corpo como um “arqueólogo incansável” é particularmente poderosa. A criança, através de sua agitação, parece cavar as camadas de sua própria experiência, em uma “escavação existencial em busca de vestígios de sua própria presença”. O corpo que não para é um corpo em busca de si mesmo, tentando encontrar um contorno, uma borda, um sentimento de existência que talvez tenha falhado em se constituir solidamente. A tarefa do clínico é, portanto, a de um parceiro de escavação, ajudando a criança a encontrar e a dar nome aos “tesouros perdidos” – os pedaços de sua subjetividade soterrados pelo trauma ou pela falha na simbolização.
O Diálogo Necessário: Equilibrando Biologia e Biografia
Uma abordagem psicanalítica honesta e relevante para o século XXI não pode ignorar as contundentes evidências da neurociência. O curso faz questão de apresentar o dado de que o TDAH possui uma “sólida base genética, com 74% de herdabilidade”. Este fato não invalida a perspectiva psicanalítica; pelo contrário, ele a enriquece e a complexifica.
Primeiramente, este dado desconstrói na raiz o mito da “má criação”. Ele oferece um alívio imenso às famílias, retirando o fardo da culpa e reforçando a necessidade de cuidado. Reconhecer a base genética é um ato de respeito para com a realidade do transtorno.
Em segundo lugar, ele nos ajuda a diferenciar a indisciplina da condição neuropsiquiátrica. A criança com TDAH genuíno, como afirma o curso, “quer, mas não consegue se controlar” devido ao comprometimento real das funções executivas no córtex pré-frontal. Isso exige uma abordagem empática e estratégica, e não meramente punitiva.
Onde a psicanálise entra, então? Ela entra na pergunta sobre a biografia. Duas pessoas podem ter a mesma predisposição genética, mas a forma como essa vulnerabilidade se manifestará, o sentido que o sintoma tomará e as possibilidades de superação dependerão inteiramente de sua história de vida, da qualidade de seus vínculos e da estrutura de sua psique. A genética pode ser o “hardware”, mas a biografia é o “software” que roda nele.
Portanto, a proposta não é de oposição, mas de diálogo. É preciso um equilíbrio dialógico entre o olhar da biomedicina, que pode oferecer suportes importantes (incluindo, em casos bem indicados, o farmacológico), e o olhar da psicanálise, que insiste em escutar a “hiper-subjetividade” por trás da hiperatividade. A crítica psicanalítica não se dirige à neurociência, mas ao reducionismo neurobiológico que esquece que, por trás de cada cérebro, existe uma memória singular que clama por ser ouvida.
Conclusão: Por uma Clínica da Autoria
A visão psicanalítica do TDAH é, em última análise, um chamado à complexidade e à humanização. Ela nos convida a uma revolução na clínica, onde o objetivo não é meramente a supressão de sintomas, mas a promoção da subjetividade. Significa aceitar que “diferente não significa deficiente” e que o florescimento de cada pessoa passa pelo respeito às suas singularidades, sejam elas neurológicas ou psíquicas.
Ao deslocar a ênfase da biologia para a biografia, ao escutar a gramática do corpo e ao investigar a função dos sintomas à luz da história de cada um, abrimos um caminho. Um caminho onde a criança deixa de ser o objeto passivo de um diagnóstico para se tornar o sujeito ativo de sua própria cura. Um caminho que a transforma de portadora de um transtorno em autora de sua história. Esta é a revolução silenciosa, perceptiva e profundamente ética para a qual a psicanálise nos convoca.