Chegamos ao final de nossa jornada. Como em toda travessia significativa, não saímos como entramos. O percurso pela psicanálise e pela sexualidade nos convidou a desconstruir certezas, a nomear silêncios e a encarar a complexidade do desejo humano. Agora, no encerramento, não fechamos uma porta, mas abrimos outra: a de viver a sexualidade com mais consciência, liberdade e verdade. Este artigo final é uma tentativa de sintetizar essa passagem, transformando as provocações do curso em um manifesto para o futuro. A premissa é simples e revolucionária: o desejo não precisa mais ser censurado; ele pode, e deve, ser escutado.
1. A Dor que Transcende o Íntimo: A Dimensão Político-Afetiva da Sexualidade
A escuta psicanalítica nos ensina que a dor psíquica, embora vivida na singularidade de cada um, não nasce apenas do íntimo. Ela se alimenta de contextos sociais adoecidos. Como apontou Erich Fromm em sua obra seminal, “O Medo à Liberdade”, uma sociedade que negligencia o apoio emocional e os vínculos comunitários aprofunda o sofrimento individual. Traumas familiares, por exemplo, ganham outra direção quando a pessoa encontra acolhimento fora do núcleo primário. Um adolescente que sofre violência doméstica e encontra suporte em uma ONG ou em um centro de escuta transforma a solidão em possibilidade de resiliência.
Nessa perspectiva, cuidar da saúde emocional alheia transcende o ato humanitário; é um ato político, crítico e civilizatório. Quando a sociedade entende que a dor do outro também é sua, ela rompe o ciclo da indiferença que permite que os traumas se perpetuem. Políticas públicas de acolhimento e campanhas educativas não são gastos, mas investimentos na saúde mental coletiva. Prevenir traumas é cultivar uma cultura de cuidado onde ninguém precise sofrer em silêncio.
2. A Máquina do Desejo: Protagonismo e Armadilhas na Era Digital
Marshall McLuhan nos advertiu que nós moldamos nossas ferramentas e, em seguida, elas nos moldam. Em nenhum campo isso é mais verdadeiro do que nos dispositivos contemporâneos do desejo. Aplicativos de encontro, pornografia online, sexbots e brinquedos conectados não apenas criam novas vias para o prazer, mas redefinem o corpo, o vínculo e o próprio tempo erótico. O desafio é garantir que sejamos protagonistas, e não reféns, desse novo cenário.
- O Paradoxo de McLuhan e a Crítica Lacaniana: A internet prometeu uma liberdade sexual absoluta, mas frequentemente entrega pacotes prontos de prazer. A vivência erótica mediada por telas pode enriquecer a imaginação, mas, como adverte a psicanálise lacaniana, o desejo precisa de falta para existir. O excesso de estímulo instantâneo, a promessa de um gozo total e acessível, captura o sujeito num circuito de repetição sem simbolização. Quanto mais se busca esse gozo ideal nos atalhos digitais, mais a falta cresce, alimentando o mal-estar. O imprevisível — um vibrador que desconecta, uma falha na conexão — pode servir como um lembrete do “não-todo” lacaniano: o prazer não é uma fórmula, mas uma presença subjetiva aberta ao inesperado.
- O Real que Resiste – A Lição do Filme ‘Her’: A relação de Theodore com a inteligência artificial Samantha, no filme de Spike Jonze, é a ilustração perfeita desse dilema. A voz sem corpo preenche a carência narcísica de Theodore de forma tão completa que, ao anular a falta, expõe o vazio de forma ainda mais nítida. Como Freud já intuía, o desejo precisa de uma dose de frustração para se manter vivo. Ao tentar ser tudo para Theodore, Samantha elimina a alteridade e colapsa o jogo erótico. O filme nos alerta para o risco de terceirizar o desejo a sistemas que prometem plenitude sem fricção, nos lembrando que o erotismo pulsa onde há surpresa, corpo e o encontro com um outro real, com suas imperfeições.
- A Tecnologia como Cúmplice: Em contrapartida, a tecnologia também pode ser uma poderosa aliada da autonomia e do cuidado. A tecnologia médica — da PrEP (Profilaxia Pré-Exposição) aos DIUs hormonais de longa duração, dos testes rápidos de ISTs aos aplicativos que rastreiam o ciclo fértil — descentraliza a prevenção e o conhecimento, empoderando o usuário. Ferramentas como a realidade aumentada em cirurgias de afirmação de gênero mostram que a tecnologia, antes vista como fria, pode ser cúmplice do prazer seguro, aliando inovação e educação afetiva.
3. A Ética do “Sim” Entusiástico: A Revolução do Consentimento
O paradigma do consentimento vive uma de suas mais importantes evoluções. A máxima “não é não”, embora fundamental, já não é suficiente. A cultura pós-#MeToo avança para um novo axioma: só é sim se houver entusiasmo explícito e contínuo.
Este novo modelo transforma o consentimento de um evento único e presumido em um processo ativo, comunicativo e revogável a qualquer momento. A ética do “sim” entusiástico protege os mais vulneráveis, desnaturaliza a coerção sutil e transforma o prazer em uma co-criação responsável. Referências como o livro “Yes Means Yes” e o filme “Promising Young Woman” (Bela Vingança) expõem as fraudes do consentimento passivo, enquanto campanhas como a “Tea Consent” didatizam o conceito de forma genial, tornando-o acessível globalmente.
4. A Ética da Escuta: Um Manifesto para Ensinar e Aprender sobre Sexualidade
O encerramento do curso nos convoca a uma reflexão sobre a própria natureza do saber. Ensinar e aprender sobre sexualidade em tempos de polarização exige um conjunto de valores éticos que sirvam como bússola.
- Abrir Olhos, Não Impor Visões: O objetivo não é converter, mas ampliar horizontes. Como ensina a filósofa Judith Butler, a convivência depende da nossa capacidade de lidar com aquilo que não somos. O respeito à diversidade de crenças é o ponto de partida.
- Saber Não Dói: O que machuca, como escreveu Clarice Lispector, é não saber o que fazer com o que sentimos. A honestidade afetiva exige que conteúdos sensíveis sejam apresentados com cuidado e com avisos que convidem à autoresponsabilidade emocional.
- Desarmar a Culpa, Nomear o Desejo: A culpa é o maior entrave ao prazer. Influenciada por uma herança moralista, a cultura ocidental frequentemente transforma o desejo em vergonha. Como apontou Françoise Dolto, quando o corpo não encontra palavras, ele adoece. A função de um curso maduro é ajudar a nomear o que se sente, e não a se sentir mal por sentir.
- Fazer Pensar, Não Dar Respostas: A ferramenta mais eficaz não são as verdades absolutas, mas as perguntas reflexivas. “De onde veio o meu desconforto? Que medo esse tema me desperta?”. Como lembra bell hooks, a escuta paciente e a auto-reflexão são mais poderosas do que o debate impositivo.
Conclusão: Habitar o Próprio Corpo – O Destino da Jornada
Ao final, a jornada de conhecimento sobre a sexualidade nos leva a um destino inesperado e, ao mesmo tempo, fundamental. Como no belo pensamento de Mia Couto, depois de muito tempo vivendo na casa física, nos damos conta de que a verdadeira casa que habitamos é o nosso próprio corpo. Quando aprendemos a habitá-lo, a fazer dele a razão da nossa existência e o sentido da nossa vida, progredimos em sabedoria.
Este curso foi um convite para essa mudança de endereço. Um convite para aprender a dar linguagem aos nossos desejos, a simbolizar nossas fantasias longe das amarras da culpa e da vergonha. É um passo em direção a nós mesmos. Amar a si mesmo, como disse Oscar Wilde, é o começo de um romance para toda a vida. E nesse romance, saber nomear o próprio desejo é o ato que nos liberta da prisão do medo. A caminhada foi feita. A gratidão permanece. A esperança, a fé e a coragem nos impulsionam para os próximos desafios, no cenário de pluralidade e diversidade que se nos apresenta a cada amanhecer.