A Solidão do Protagonista: Um Diagnóstico Psicanalítico do Sofrimento na Sociedade do Espetáculo

Introdução: O Peso de Ser a Medida de Todas as Coisas

“O homem é a medida de todas as coisas”. A célebre frase do sofista Protágoras, que um dia selou a essência do humanismo, ecoa em nossa cultura contemporânea com o peso de uma força esmagadora. A promessa de que cada um de nós seria o soberano do próprio destino, dotado de autonomia plena, converteu-se em um fardo paradoxal. Ao nos tornarmos a única medida de nosso sucesso, fracasso e felicidade, tornamo-nos também os únicos responsáveis por cada revés, cada derrota. Este excesso de poder, desprovido do amparo de um grande Outro simbólico – a Lei, a tradição, a cultura –, é o alicerce de um sofrimento psíquico que, silenciosamente, consome a alma de nossa era.

Este artigo propõe-se a ser um diagnóstico dessa condição. Faremos uma imersão em duas paisagens que se complementam e se retroalimentam para produzir o mal-estar na hipermodernidade. Na Parte I, exploraremos a arquitetura interna deste sujeito contemporâneo, forjado na onipotência e condenado a uma solidão vertiginosa e a uma incessante ansiedade de desempenho. Na Parte II, analisaremos o palco externo no qual este sujeito é forçado a atuar: a sociedade do espetáculo, onde a vida se afasta numa representação e o ser é perigosamente substituído pelo parecer. Juntos, estes dois movimentos nos permitirão compreender as raízes da exaustão e o protesto do corpo que, em sua sabedoria irredutível, se recusa a continuar o show.

Parte I: A Arquitetura Interna – O Sujeito como Medida de Si Mesmo

O sofrimento psíquico no século XXI nasce de uma transformação radical na constituição do sujeito. Com o declínio das grandes narrativas coletivas e das figuras de autoridade que antes forneciam um norte, o indivíduo foi coroado o único rei de seu próprio universo. Mas este é um reino solitário e exaustivo.

  1. A Promessa de Onipotência e seu Preço: A modernidade tardia nos legou uma herança de autonomia radical. A mensagem implícita é que não dependemos de nada nem de ninguém para construir nossa própria história. Essa fantasia de onipotência, no entanto, tem um preço altíssimo. Sem o amparo de um laço social que o contenha e de uma lei simbólica que lhe dê limites, o eu se torna frágil, exposto a uma pressão insustentável. A responsabilidade por “ser a medida de tudo” se traduz em uma solidão vertiginosa, a angústia de quem precisa inventar o próprio mapa, a própria bússola e o próprio destino a cada passo, sem garantias.
  2. A Ansiedade de Desempenho como Estado de Ser: Esta solidão se manifesta clinicamente como uma ansiedade de desempenho crônica. O sucesso deixa de ser uma conquista pontual para se tornar uma corrida incessante contra o medo de não sermos suficientes. A vida se transforma em um projeto de otimização contínua. Como ilustra o fenômeno dos finfluencers e coaches de produtividade, somos bombardeados pela imagem de um sucesso ininterrupto, de uma alta performance que deve operar 24 horas por dia. O extremo dessa lógica é a cultura de “bio-otimização” do Vale do Silício, onde o próprio corpo se torna o projeto final de performance, numa tentativa desesperada de vencer o envelhecimento e a própria finitude.
  3. O Sintoma como “Solução” Individual para um Mal-Estar Coletivo: Diante dessa pressão, o sofrimento se instala. E a resposta que nossa cultura oferece é, em si mesma, um sintoma dessa mesma lógica individualista. O aumento contínuo nas vendas de antidepressivos e ansiolíticos no Brasil, consolidando o país como um dos maiores mercados consumidores do mundo, revela uma tendência a tratar um problema estrutural e existencial como uma questão individual e química. A dor que nasce da solidão e da pressão é silenciada com uma pílula, mascarando suas raízes coletivas. Da mesma forma, a crise imobiliária em grandes metrópoles, que gera segregação e intensifica a ansiedade social, é vivida como uma série de fracassos e angústias individuais. A psicanálise, ao contrário, nos convida a ler esses fenômenos como um sintoma social, uma crítica encarnada a um modelo que isola, gerencia e silencia a dor em vez de escutá-la.

Parte II: O Palco Externo – A Vida como Representação

“Tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação”. Esta frase, escrita por Guy Debord há mais de meio século em “A Sociedade do Espetáculo”, soa hoje menos como uma teoria e mais como uma profecia sombria, cumprida em nossas telas de celular. A arquitetura interna do sujeito solitário e performático encontra seu par perfeito na arquitetura externa de um mundo que se tornou um palco.

  1. A Substituição da Ética pela Estética: Como aponta o psicanalista Joel Birman, assistimos a uma substituição da antiga moralidade, baseada no dever e na culpa, por uma nova e implacável estética do espetáculo e do sucesso. A questão que nos assombra já não é “Sou uma boa pessoa?”, mas sim “Minha performance é digna de aplausos? Recebe likes?”. O “ser” torna-se perigosamente sinônimo de “parecer ser”. Cada um de nós se tornou o curador de um museu pessoal, o diretor de um filme sobre a própria vida, onde cada postagem é um ato e cada story é uma cena.
  2. O Custo Psíquico da Encenação: A Hemorragia Silenciosa: O custo psíquico desta encenação contínua é uma hemorragia silenciosa. A autoestima, antes ancorada na interioridade e no reconhecimento de um círculo próximo, torna-se volátil, dependente da validação de uma multidão anônima e virtual. Vivemos como atores exaustos, aplaudidos por uma multidão de solitários, mas assombrados pela sensação de que, quando as cortinas se fecham e as telas se apagam, não há ninguém por trás da máscara. Este sentimento de inautenticidade, de ser um impostor na própria vida, é uma das fontes mais profundas de sofrimento na contemporaneidade.
  3. O Colapso do Ator: O Protesto do Corpo: É então que o corpo, em sua sabedoria irredutível, se recusa a continuar o show. O burnout é o colapso do ator, exausto de sustentar um personagem que não lhe corresponde mais. A ansiedade é o pânico de palco que se tornou crônico. A depressão é o luto por uma vida diretamente vivida, que foi sacrificada no altar da representação. Os distúrbios de hoje não são falhas em nosso roteiro; são protestos da carne, da verdade do corpo, contra uma performance que se tornou insustentável.

Conclusão: O Resgate do Protagonista Real

A psicanálise, ao diagnosticar a arquitetura interna do sujeito-medida-de-si-mesmo e o palco externo da sociedade do espetáculo, nos oferece uma chave de leitura poderosa para a exaustão que nos define. Ela nos mostra que a solidão e o cansaço são as duas faces da mesma moeda: a de uma vida que se afastou de sua própria experiência autêntica.

Este diagnóstico, no entanto, não é um veredito final, mas um convite. Um convite para olhar para além do espetáculo, para questionar o imperativo da performance com coragem e honestidade. A jornada analítica nos propõe a pergunta fundamental: em nossas vidas, o que ainda é vivido? E o que já se afastou numa representação?

A busca por essa resposta não promete um final feliz para o filme de nossas vidas, mas algo muito mais precioso: a possibilidade de resgatar um protagonista real para a nossa própria história. Que a frase de Protágoras, em lugar de um imperativo de onipotência, se torne uma provocação para uma reflexão. Que o homem, ao se reconhecer não como a medida de tudo, mas como parte de um todo, possa encontrar na fragilidade o seu maior potencial. E que a psicanálise seja a bússola para essa jornada, um convite a construir um novo sentido de ser, para além da solidão que a onipotência nos impõe.

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