A Traição Anônima: A Morte do Próximo e o Jogo do Silêncio na Cultura Brasileira

Introdução: Do Drama Privado à Análise da Civilização

Em seu arco diagnóstico final, o curso “Psicanálise, Traição e Autossabotagem” nos conduz para além das dinâmicas intrapsíquicas e dos conflitos do casal para o vasto e complexo terreno da cultura. Os capítulos quinze e dezesseis representam o ápice da análise, argumentando que a crise contemporânea da lealdade não pode ser plenamente compreendida sem um exame das mutações profundas que ocorreram no próprio laço social. A traição, aqui, deixa de ser um mero ato individual para se tornar o sintoma de um mal-estar que rege nossa forma de habitar o mundo e de nos relacionarmos com o outro.

Nesta imersão final, somos guiados por duas lentes poderosas e complementares. No capítulo quinze, “A Morte do Próximo”, a tese do sociólogo e psicanalista junguiano Luigi Zoja nos oferece um diagnóstico global: a dissolução da categoria ética do “próximo” na modernidade, o que levou a uma atrofia de nossa capacidade de lidar com a alteridade e criou as condições para uma indiferença generalizada. Em seguida, no capítulo dezesseis, “O Contrato, o Ciúme e o Segredo”, a análise de Contardo Calligaris nos oferece um estudo de caso cultural, mergulhando na “estranha civilização brasileira” para revelar como nossos arranjos culturais – a aversão a contratos explícitos, a tirania do subentendido e o “jeitinho afetivo” – criam um ecossistema perfeito para o florescimento da ambiguidade e da infidelidade.

Este artigo aprofundará essas duas perspectivas, demonstrando como o diagnóstico universal de Zoja (a erosão da alteridade) encontra uma manifestação particular e potente na cultura brasileira descrita por Calligaris. Juntas, essas teses revelam a traição não como uma falha moral isolada, mas como a consequência lógica de um mundo onde o outro se tornou um estranho e onde preferimos o silêncio cúmplice à difícil clareza dos pactos.

Parte I: A Morte do Próximo – A Raiz Global da Deslealdade (A Tese de Luigi Zoja)

Para entender por que a deslealdade se tornou tão prevalente, Zoja nos convida a examinar uma perda fundamental na estrutura da nossa experiência social: a perda do “próximo”.

1.1. O Vizinho Desaparecido e o Vácuo da Responsabilidade Concreta

A tese de Zoja é que a modernidade – através da urbanização massiva, da globalização e da tecnologia – eliminou a figura do próximo. O “próximo” não era necessariamente um amigo, mas o vizinho, o aldeão, o comerciante local; aquele que, por sua simples e inevitável proximidade física, nos convocava a uma responsabilidade concreta, face a face. Lidar com o próximo era um exercício diário e obrigatório de negociação com a diferença, com o incômodo, com a alteridade.

Em seu lugar, a modernidade nos deixou com uma polaridade estéril: de um lado, os íntimos (o círculo cada vez menor da família nuclear); do outro, os distantes (a “humanidade” abstrata, pela qual sentimos uma compaixão teórica, mas nenhuma responsabilidade prática). Entre esses dois polos, criou-se um imenso vácuo de responsabilidade. O espaço social concreto, o espaço da rua e da vizinhança, esvaziou-se de seu peso ético. O exemplo dos condomínios, onde o vizinho de porta é um estranho a ser evitado para “preservar a intimidade”, é a manifestação arquitetônica dessa morte simbólica. Se não somos mais responsáveis por quem vive ao nosso lado, por quem, concretamente, ainda nos sentimos responsáveis?

1.2. O Outro como Produto: A Atrofia da Alteridade na Era do Consumo

A consequência psíquica da morte do próximo é a atrofia de nossa capacidade de lidar com a alteridade. Sem a prática diária de encontrar e negociar com o “outro” real e complexo, nossa psique regride e passa a operar sob a lógica dominante da nossa cultura: a do consumo e da paranoia. O outro deixa de ser um sujeito a ser encontrado em sua irredutível complexidade para se tornar uma de duas coisas:

  1. Um produto a ser consumido: Um objeto que existe para preencher nossas expectativas e satisfazer nossas necessidades. As relações passam a ser avaliadas por um critério de custo-benefício, e o outro é descartado quando não “entrega” a performance esperada.
  2. Um estranho a ser temido: Um potencial invasor de nossa privacidade, uma ameaça à nossa segurança, alguém de quem devemos nos proteger.

O exemplo do pesquisador da USP que experimentou a “invisibilidade” de um funcionário anônimo é a prova contundente desse fenômeno. Ele não era um sujeito, mas uma função. Essa erosão da alteridade, essa incapacidade de ver e reconhecer o outro como um centro de experiência tão válido quanto o nosso, é, para Zoja, a raiz psíquica fundamental da deslealdade.

1.3. A Traição Anônima: Quando a Indiferença Social Entra em Casa

Este ponto conecta o diagnóstico cultural diretamente ao drama íntimo. Em um mundo onde o outro se tornou um estranho ou um objeto de consumo, a deslealdade deixa de ser uma falha moral para se tornar um comportamento lógico. A traição é a manifestação, na esfera íntima, da mesma indiferença que rege o laço social anônimo.

É o ato que prova que o parceiro, com o tempo, deixou de ser um “próximo” – alguém por quem se tem uma responsabilidade concreta – e foi rebaixado à categoria de um estranho descartável. A forma como tratamos o funcionário invisível, o vizinho anônimo ou o usuário descartável de um aplicativo de relacionamento começa, sutilmente, a se tornar a forma como tratamos a pessoa que deveria ser a mais próxima de nós. A traição se torna, assim, um ato de indiferença anônima cometido dentro das paredes de casa.

Parte II: O Contrato, o Ciúme e o Segredo – A Expressão Cultural Brasileira (A Tese de Contardo Calligaris)

Se Zoja nos dá o diagnóstico da doença global, Calligaris nos descreve, com precisão cirúrgica, os sintomas e os mecanismos de defesa específicos da cultura brasileira ao lidar com essa doença.

2.1. O Contrato Invisível e a Tirania do Subentendido

Calligaris identifica uma forte aversão cultural brasileira à clareza dos contratos impessoais no amor. Vivemos sob a égide da “cordialidade”, a crença de que o afeto basta e que discutir regras, limites e expectativas de forma explícita é um sinal de desconfiança, uma frieza que “estraga” a espontaneidade do sentimento.

Isso resulta na proliferação de pactos de fidelidade subentendidos. Cada parceiro presume que o outro adere às mesmas regras invisíveis que ele tem em sua cabeça, sem nunca ter a coragem de perguntar ou combinar. Esse vasto território de ambiguidades é o campo perfeito para o mal-entendido, a decepção e, finalmente, a traição. Sofremos não pelo que foi dito e quebrado, mas por tudo aquilo que assumimos que o outro “deveria saber”, sem que isso jamais tenha sido articulado.

2.2. A Fronteira Fantasma: Ciúme e Segredo como Filhos da Ambiguidade

Como consequência direta dessa falta de clareza, emergem dois sintomas que definem muitos relacionamentos: o ciúme e o segredo.

  • O Ciúme: Longe de ser apenas uma patologia individual, o ciúme, nesta ótica, torna-se a resposta lógica e desesperada de quem tenta vigiar uma fronteira que nunca foi demarcada. É um pedido torto por clareza. Na ausência de um acordo explícito sobre o que é permitido e o que não é, o ciumento tenta, através da vigilância paranoica, impor um limite que o casal não teve a coragem de construir através do diálogo.
  • O Segredo (A Traição): Em paralelo, o segredo surge como uma busca, ainda que problemática, por um espaço psíquico de singularidade. Em um cenário relacional ambíguo, que pode ser vivido como fusional e sufocante justamente por não ter contornos claros, a traição pode funcionar como o único lugar onde o desejo individual pode ser exercido sem a necessidade de negociação. É uma tentativa torta de respirar, de se afirmar como sujeito separado, em um laço que a falta de contrato tornou perigosamente indiferenciado.

2.3. O Jogo do Silêncio: O “Jeitinho Afetivo” e a Tolerância Cúmplice

Este ponto final explora os mecanismos culturais que usamos para gerenciar a transgressão, uma vez que ela acontece.

  • O Jeitinho Afetivo: A traição raramente é enquadrada como a quebra de uma lei impessoal. Em vez disso, ela é justificada como um “jeitinho”, uma exceção pessoal motivada por uma circunstância particular (“foi só uma vez”, “eu estava carente”, “não significou nada”). Isso a retira do campo da ética e a coloca no campo das desculpas afetivas.
  • A Tolerância Cúmplice: O círculo social (amigos, família) frequentemente responde à descoberta da infidelidade com uma cumplicidade silenciosa. Opta-se pelo silêncio para “evitar o conflito”, “não se meter” e manter uma paz aparente. Este comportamento revela um complexo arranjo cultural que prefere perpetuar a hipocrisia a enfrentar a ruptura explícita do laço. Nosso medo de criar confusão acaba nos tornando cúmplices de arranjos que sustentam a infelicidade.

Conclusão: A Dupla Tarefa de Reencontrar o Outro

Ao final desta jornada, os diagnósticos de Zoja e Calligaris se entrelaçam em uma conclusão poderosa e desafiadora. Vivemos em uma era global que dissolveu a figura do “próximo”, atrofiando nossa capacidade de reconhecer a alteridade e nos empurrando para a indiferença (Zoja). E, no Brasil, potencializamos essa tendência com arranjos culturais que evitam a clareza, privilegiam o subentendido e gerenciam a transgressão com silêncio e cumplicidade (Calligaris).

A traição, portanto, emerge como o sintoma final dessa dupla condição. Ela é o ato de um sujeito que já não vê o outro em sua complexidade, dentro de uma cultura que não lhe fornece as ferramentas – e nem o incentivo – para construir pactos claros e honestos.

A saída para este labirinto não é simples nem aponta para um retorno a um passado idealizado. Ela exige uma dupla tarefa, um esforço consciente em duas frentes. Primeiro, uma tarefa ética e social: a de resistir à indiferença, a de lutar para reencontrar a figura do “próximo” em nosso cotidiano, de dar visibilidade e responsabilidade àqueles que nos cercam. Segundo, uma tarefa íntima e relacional: a de ter a coragem de recusar a tirania do subentendido, de sentar-se com o parceiro e fazer o trabalho difícil, adulto e contínuo de construir e reconstruir contratos explícitos. Trata-se, em suma, de aprender a ver o outro novamente e, então, ter a coragem de falar com ele.

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