Em um mundo de “bússolas quebradas” e “céus vazios”, a psicanálise é convocada a uma de suas tarefas mais urgentes: a de diagnosticar e escutar as novas formas do sofrimento psíquico. O curso “Psicanálise e Religião” propõe uma jornada, uma “travessia” em cinco módulos, que se afasta dos antagonismos clássicos para forjar ferramentas de análise para o nosso tempo. Não se trata de uma repetição, mas de uma progressão em espiral, que sobe os degraus do básico ao intermediário e ao avançado, revisitando temas para aprofundá-los. O que se segue é um mapa detalhado deste percurso, uma visão panorâmica que revela a lógica interna e a profunda coerência de uma jornada que vai do diagnóstico da nossa condição de “órfãos” à desconstrução dos dogmas que nos aprisionam, em busca de uma nova e mais compassiva ética da escuta.
Módulo 1: O Diagnóstico – Uma Sociedade de Órfãos e o Sofrimento da Insuficiência
O ponto de partida da travessia é um diagnóstico contundente do nosso mal-estar. O curso argumenta que o sofrimento paradigmático do século XXI sofreu uma mutação fundamental. Ele não deriva mais, como na Viena de Freud, primariamente da repressão e da culpa geradas por uma moral severa. Hoje, o sofrimento brota da performance e da insuficiência.
- A Causa – O Colapso da Função Paterna: A genealogia desta crise aponta para o “declínio do Pai” – não o pai da família, mas a função simbólica da Lei, do limite e da autoridade que ancorava a realidade. A “morte de Deus” no Ocidente não foi apenas um drama filosófico, mas um “cataclismo cultural” que destituiu o mundo de seu princípio de orientação vertical, deixando-nos em uma horizontalidade sem referências claras.
- A Consequência – Uma Sociedade sem Bússola: Este colapso gera uma profunda crise na transmissão de valores. Sem mestres cuja palavra tenha peso, a sociedade se “orfaniza”, produzindo sujeitos “desprovidos de uma herança simbólica sólida”. Esta condição de orfandade gera uma desorientação generalizada, uma “adolescência perpétua” e uma liberdade que, sem o amparo da lei, converte-se em angústia e desamparo.
- A Dimensão Afetiva – A Melancolia Social: Em um mundo sem as garantias de salvação oferecidas pelas religiões tradicionais ou pelas utopias políticas, o afeto paradigmático torna-se a depressão, compreendida aqui como uma “melancolia social”. É a sensação de um luto coletivo não elaborado pela perda das grandes promessas que antes davam sentido e futuro à existência.
Módulo 2: Os Falsos Profetas – As Religiões Seculares e a Tirania do Gozo
A psique tem horror ao vácuo. O espaço deixado pela religião tradicional foi rapidamente preenchido por “novos deuses” e suas religiões seculares, que operam com dogmas, rituais e promessas de salvação próprias.
- Os Novos Deuses: O curso destaca o Capitalismo como Religião, com seu dogma da meritocracia. Esta nova fé opera através de uma lógica de sacrifício implacável (exaustão, precariedade) e, crucialmente, individualiza a culpa, convencendo o sujeito de que seu fracasso é um demérito pessoal. Outra divindade é a Tirania do Bem-Estar, que transforma a salvação em uma performance de otimização de si, e a Tecnologia, com suas promessas transumanistas.
- O Sujeito sem Gravidade e o Imperativo do Gozo: A subjetividade produzida por estes novos mestres é a do “sujeito sem gravidade”, que flutua sem a âncora da lei simbólica. Ele opera sob o “mandamento do gozo”, um imperativo para experimentar tudo, para não perder nada (o “FOMO” – Fear Of Missing Out), vivendo em um estado de hiperindividualismo.
- A Falsa Salvação: A promessa de salvação na autoajuda e no equilíbrio é desvelada por autores como Adam Phillips como uma “nova religião secular”, uma “tirania da perfeição” que gera mais ansiedade do que paz. A alternativa psicanalítica não é um novo ideal, mas a reivindicação da imperfeição e da ambivalência, trocando a busca pela completude pela ética mais modesta e libertadora de uma “vida suficientemente boa”.
Módulo 3: A Anatomia da Crença – Entre o Gozo, a Perplexidade e a Necessidade de Crer
Este módulo mergulha no “filé mignon” da proposta, utilizando as ferramentas da psicanálise para analisar a própria estrutura da fé.
- A Psicanálise como Método Crítico: A abordagem não busca eliminar a fé, mas compreender sua “gramática inconsciente”. Através da dialética entre alienação (a submissão a um mestre para obter uma identidade) e separação (a invenção de um lugar singular), a psicanálise investiga como qualquer sistema de sentido, seja ele religioso ou secular, se sustenta.
- Os Afetos Fundamentais da Busca: A análise aprofunda os afetos que movem a busca pelo sagrado. Investiga o “gozo do Outro” como a experiência de um excesso que define o êxtase místico (Braunstein); aborda a “perplexidade” como o afeto de desamparo em um mundo sem uma “gramática de vida” (Bollas); e aponta para a “incrível necessidade de crer” como uma pulsão fundamental que, mesmo na descrença, migra para novos objetos (Kristeva).
- A Tarefa Analítica Reinventada: Diante deste cenário, a tarefa da clínica se complexifica. Não se trata mais apenas de interpretar o recalcado, mas de ajudar o sujeito a lidar com o excesso de gozo, a navegar na perplexidade e a encontrar vias singulares para sua necessidade de crer. A psicanálise torna-se um espaço para a criação de um “idioma pessoal”, permitindo ao sujeito habitar suas crenças de forma mais crítica e menos dogmática.
Módulo 4: Arqueologia do Sagrado – Os Ecos Teológicos no Divã
Este módulo realiza uma escavação na psique para revelar como, mesmo na secularidade, somos assombrados e estruturados por um legado religioso.
- A Herança Sombria e o Duplo Teológico: A análise investiga a herança ambivalente da matriz judaico-cristã. Por um lado, um “legado sombrio”: a formação de um “supereu cruel” que internaliza mandatos de culpa e sacrifício. A própria prática da psicanálise, como aponta Sergio Benvenuto, pode ser vista como um “duplo teológico”, cuja estrutura de falta (pecado), pena (culpa) e reparação (trabalho analítico) ecoa inconscientemente o antigo ritual de redenção.
- A Herança Luminosa e a Ética da Palavra: Em contraponto, o módulo resgata a “herança luminosa” da mesma tradição, encontrando as raízes bíblicas da ética psicanalítica (Recalcati). Nesta visão, a Lei e a Palavra não são forças de repressão, mas os atos simbólicos que fundam o desejo ao barrarem o gozo mortífero, inaugurando uma ética da responsabilidade baseada no testemunho e na promessa.
- O Método Antropológico: Para decifrar como esses ecos persistem, o módulo propõe uma “antropologia analítica do inconsciente cultural”, que lê a arte e a literatura como laboratórios para escavar as matrizes mítico-religiosas que funcionam como o “software” inconsciente de uma cultura.
Módulo 5: Novos Horizontes – Diálogos, Relações e uma Ética da Abertura
A travessia culmina com um olhar para o futuro, propondo diálogos e novas fronteiras para o pensamento e para o cuidado.
- A Crítica das Novas Transcendências: O módulo se inicia com uma crítica às promessas de salvação da era digital, analisando o transumanismo como uma nova teologia política. Em contrapartida, explora o conceito de “ressonância” (Hartmut Rosa) como um análogo secular do sagrado, uma busca por uma relação vibrante com o mundo que se opõe à alienação.
- A Revolução Relacional: O debate avança para uma crítica ontológica do individualismo ocidental. Propondo a “verdade como acontecimento relacional” (Christos Yannaras), esta visão oferece um fundamento para uma ética da comunhão que se opõe à solidão do eu autossuficiente.
- A Desconstrução do Dogma: Por fim, o curso apresenta ferramentas críticas para uma relação mais livre com a crença. Utilizando o humor, a ironia e a “teologia queer” (Ola Sigurdson), a proposta é desarmar a rigidez fundamentalista, não em nome do niilismo, mas de uma “ética da hospitalidade” — uma postura de abertura radical ao desejo e à alteridade, que transforma a fé de uma fortaleza de certezas em um campo de questionamento e encontro.
Conclusão: Uma Caixa de Ferramentas para Artesãos Singulares
O percurso analítico através destes cinco módulos revela uma transformação radical do olhar. Ele nos oferece um diagnóstico profundo de nossa época e uma caixa de ferramentas sofisticada para navegá-la. A proposta final do curso, e sua maior contribuição, é a de que o futuro da psicanálise e do cuidado reside em sua capacidade de se reinventar, de se adaptar e de resistir à tentação da massificação. É um convite para que clínicos, pensadores e todos os companheiros de jornada se tornem “artesãos de soluções singulares”, construindo pontes entre a teoria e as urgências cotidianas, e garantindo que, em meio ao ruído dos novos deuses, a escuta da singularidade humana permaneça como a nossa mais preciosa e inabalável bússola

